sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

BIS067.06 Quando o piano deixa de tocar

Todos se fixaram nele quando empurrou o guarda--vento e entrou fazendo tilintar as suas grandes esporas de prata. Por alguma razão a sua aproximação era inquietante, mas ninguém poderia especificar qual era essa razão. Podia ser o revólver que trazia dependurado muito baixo e, todavia, havia muitos homens que o traziam à mesma altura; podia ser o seu aprumo, o seu ar sombrio ou o brilho metálico dos seus olhos, embora muitos homens tivessem idênticas características; podia ser o seu aspeto seco, duro, comi de filho do deserto, mas eram muitos os filhos do deserto que circulavam nas ruas de Paso. 

Aquele homem devia ter entre vinte e vinte e cinco anos de idade. Estava queimado como um índio. Vestia um casaco de pele e calças escuras; calçava botas de meio cano, adornadas com as grandes esporas de prata e trazia na cabeça um chapéu preto. Em todo o vestuário, botavam-se vestígios de poeira vermelha e toda a gente sabia no Paso que aquele pó procedia da região de Pecos, no Sudoeste de Estacado em território apache.

 

O homem entrou no estabelecimento sem olhar para ninguém, aproximou-se do «bar» e pediu cerveja. Eram dez horas da noite, mas havia muito pouca gente; no ar pairava uma espécie de expectativa. Dir-se-ia que os presentes aguardavam algum acontecimento invulgar. O homem notou-o, corno notou a insistência com que todos o olhavam mal entrou o guarda-vento; a curiosidade de que fora objeto e o vago alívio que experimentaram quando o iluminaram em cheio as luzes do «bar». 

Ficou indiferente, posto que, se esperavam realmente alguma coisa ou alguém, era impossível que o esperassem a ele. Acabava de chegar ao Paso depois de atravessar o deserto. Nenhuma daquelas pessoas o conhecia, nem sabiam dele uma palavra. 

Ao fundo do salão tocava um pianista. A música, talvez por contraste, fazia mais notável o silêncio. 

O homem bebera um golo de cerveja, quando alguém o interpelou: 

— Forasteiro. 

Voltou-se lentamente. 

À sua direita estava um indivíduo de tez macilenta e espesso bigode, que vestia uma camisa aos quadrados. Tinha na frente, sobre o balcão, um copo e uma garrafa de «whisky». Parecia muito nervoso, ou afetado por alguma forte emoção. Tinha um cinto com um revólver muito ao meio, quase sobre o estômago. 

O forasteiro mirou-o dos pés à cabeça antes de responder: 

— Deseja alguma coisa? 

— Não leve a mal. Desejo que se afaste de mim. 

— Estou aqui muito bem. 

O do bigode mordeu os lábios. 

— Pode não estar bem dentro de alguns minutos. Colocou-se entre mim e a porta, compreende? 

— Sim — disse o forasteiro. 

Mas não se moveu. Colocar-se entre a porta e o homem do bigode significava, evidentemente, colocar-se na trajetória das balas. Estava agora explicado o que aguardavam os clientes daquele «bar». 

Olhando em volta, o forasteiro viu que a parte central do estabelecimento estava completamente vazia. Deixaram o homem do bigode isolado. Alguém entraria pela porta dum momento para o outro, alguém a quem o homem esperava para se bater a tiro com ele. 

— Não quer afastar-se? 

— Não. 

— Então isso é consigo. Está avisado. 

O homem levou o copo de «whisky» aos lábios e a mão tremia-lhe de tal maneira, que entornou metade do líquido. O forasteiro comentou desdenhosamente: 

— Você dá todas as vantagens. Com um pulso y como o seu, é impossível acertar num cavalo a três passos. 

— Não se meta nisto! 

— Quer suicidar-se? 

— Repito que não se meta nisto! 

No extremo do «bar», havia três homens, dois dos quais fizeram um gesto para avançar quando o do bigode elevou a voz. Mas no mesmo instante bateram as portas do guarda-vento e uma descarga elétrica pareceu atravessar a casa. 

Entrara a pessoa por quem se esperava. 

Era um sujeito de mediana estatura, atarracado, de braços compridos. Trazia ao pescoço um lenço azul. 

— É a ti que procuro, Fly Stanton — disse com voz rouca. 

Dirigia-se ao homem do bigode. O forasteiro notou qualquer falta e demorou algumas frações de segundo para compreender que era o piano. Cessara a música. O silêncio tornava-se insuportável. 

O homem do bigode, de repente, pareceu atacado por uma convulsão trémula e a sua mão tremente precipitou-se para a coronha do revólver que trazia no cinto. 

O outro homem adiantou-se. Um «Colt» 45 apareceu como, por encanto na sua mão. 

Mas o que se seguiu foi tão rápido, que nenhum dos presentes conseguiu ver que o recém-chegado puxara por uma arma; soou um tiro e esta voou da sua mão. 

Soaram mais dois tiros sucessivamente. Ouviu-se um gemido de dor. Um dos dois homens que estiveram prestes a intervir levou a mão à boca. O outro voltou-se, estupefacto, para ver onde caíra o revólver que uma bala acabava de lhe arrebatar. O forasteiro disse para o do bigode: 

— Puxe lá pelo seu calhamaço se se atreve. 

O homem soltou a coronha como se queimasse e apoiou as mãos no balcão. Estava pálido como um morto. Ninguém se movia. Ninguém falava. 

Decorridos uns segundos, o do lenço azul recobrou a calma e tentou retroceder para a porta; mas bastou que o desconhecido elevasse um centímetro o cano do revólver ainda fumegante que tinha na mão, para que se detivesse novamente. 

Então, com toda a calma o forasteiro acrescentou: 

— Não me agradam pendências à minha volta. Você venha beber um copo. E vocês — fez um gesto aos dois outros homens também. 

Os três obedeceram contra vontade. Um dos dois últimos, disse: 

— Você perdeu o juízo, rapaz. Isto vai custar-lhe um desgosto. 

O seu companheiro, disfarçadamente, colocou-se atrás do homem do lenço azul, como querendo cortar-lhe a retirada. O resto dos clientes observava a cena com muda atenção. O forasteiro semicerrou os olhos. Vira no colete dum dos homens que estavam no «bar» e na camisa do outro, emblemas de rangers. 

— E porquê, um desgosto? — perguntou. — Por malograr a vossa ascorosa emboscada: Por frustrar um assassínio? 

O que falara antes, replicou asperamente: 

—Quem é você? Chamo-me Johnny Martin. 

— Entregue-me o seu revólver e acabemos esta farsa duma vez. Este indivíduo, Boyde Buchanan, é procurado pelas autoridades, acusado de ladrão de gado. Temos contra ele uma ordem de prisão; não íamos matá-lo, mas somente prendê-lo. Servimo-nos da sua rixa com Fly Stanton para lhe armarmos uma ratoeira atraindo-o à cidade. E você, interpondo-se ao cumprimento da Lei, suportará as consequências. 

Johnny Martin fitou o ranger nos olhos. 

— Não acredito. Era impossível prender este homem antes dele disparar contra Stanton. Vocês matá-lo-iam pelas costas. 

— Admito que as coisas não saíssem lá muito bem, mas Joe e eu não atiraríamos a matar. Agora entrega--me o seu revólver? 

— Não — disse friamente o forasteiro. Olhou para o homem do bigode. — Você, Stanton, sabia da emboscada? 

— Sim — murmurou Stanton. 

— Embora não tivesse uma probabilidade entre um milhão de disparar antes de Buchanan? 

— Confiava neles — Stanton titubeou. — Não podia fazer outra coisa. Buchanan jurara matar-me e era melhor liquidar o assunto desta maneira. 

— Não vejo a coisa muito clara. 

Johnny voltou pela primeira vez a sua atenção para o chamado Buchanan, que permanecia impassível, inexpressivo, apoiado rigidamente ao «bar». Perguntou-lhe: 

— Você é ladrão de gado, Buchanan? 

— De facto — confirmou o interpelado, fitando-o nos. olhos. 

— Que tem contra Stanton? 

— Matou meu irmão. Deu-lhe um tiro pelas costas, quando ele estava sentado a uma mesa jogando o monte. 

O rosto de Johnny Martin enrugou-se. 

— Isso é verdade? 

— Não! — exclamou Stanton, atrapalhado. — Matei-o, mas juro que não foi pelas costas! Juro! 

— Porque o matou? 

Foi Buchanan quem respondeu: 

— A Associação dos Ganadeiros oferecia cem dólares por ele. 

— Que fizera ele? 

— Roubar cavalos. 

Johnny Martin olhou para os dois rangers. 

— Este homem diz a verdade? 

Os dois rangers ficaram calados. Depois de esperar em vão a resposta deles, Martin acrescentou: 

— É seguro, pelo que vi, que Stanton não poderia matar nem um maneta, a não ser pelas costas. Apanhe o seu revólver, Buchanan, ponha-se a andar e boa sorte. 

Brilharam os duros olhos do homem do lenço azul. 

— Não está a brincar? 

— Não — Martin apoiou o dedo. no gatilho. — Ficará preso ao chão com um tiro, aquele que tentar impedi-lo. Ponha-se a andar! 

Buchanan não pronunciou mais qualquer palavra. Precipitou-se para o seu revólver que caixa junto à porta, agarrou-o e desapareceu. Dos dois rangers, o que falara primeiro tinha o rosto congestionado e tremiam-lhe os lábios de cólera. Começou a mastigar insultos. Depois ameaçou:

— Isto não ficará assim. Você não sabe o que fez, forasteiro. Talvez quando o souber, seja demasiado tarde para o lamentar. 

Johnny Martin encolheu desdenhosamente os ombros. 

— Podem apanhar os seus revólveres. Há uma rodada paga. Quem quiser aproveitá-la, está à sua disposição. 

— Eu não bebo com bandidos! — replicou o ranger violentamente. — Vamos embora, Joe. Este lugar empesta. 

Precedeu o companheiro até ao canto onde estavam as armas. Meteram-nas nos coldres. Não tentaram nada. Johnny Martin parecia não lhes prestar atenção, mas conservava o «Colt» 45 na mão e não o guardou senão depois deles saírem. O pianista tocava novamente. A tensão diminuíra. 

O murmúrio da assistência quase abafava a música. Começou a entrar gente, dirigindo a Stanton e ao forasteiro olhares curiosos. O «bar» encheu-se. Johnny Martin bebeu a cerveja e dirigiu a Stanton um sorriso gelado. 

— Não continua a beber o seu «whisky»? 

O homem do bigode estremeceu. 

— Receio que me tenha assentado mal. — disse com fraca voz — Oh! Você está louco, rematadamente louco! Não se pode impunemente desafiar os rangers! Dar-lhe-ão caça como a um animal, até ao fim dos seus dias! 

— Isso interessa-lhe? 

— Eu odeio-os. Até a mim próprio odeio. Quer saber? É verdade que matei Larry Buchanan pelas costas! Pagaram-me cem dólares por essa cobardia! —Stanton esfregou o queixo com a sua mão trémula. — Agora já não há remédio: Boyde Buchanan matar-me-á. A culpa é sua, mas não o censuro. Será bem empregue a morte num tipo como eu. — Tirou do bolso uma nota amachucada e atirou-a sobre o balcão. — Adeus, forasteiro. Lamento deveras tê-lo conhecido. 

Caminhou em linha recta para a porta, inclinado para a frente, como se tivesse recebido uma pancada na nuca e saiu para a rua. Johnny Martin fixou os seus olhos cinzentos no criado que se apressou a retirar a garrafa e o copo e a guardar o dinheiro de Stanton. 

— Disseram-me que encontraria aqui uma certa pessoa. Tenho a certeza de que você deve conhecer. 

— Certa pessoa? — perguntou o criado respeitosamente-. Não ocultava o nervosismo que lhe causava a proximidade daquele homem. — É possível, senhor. 

— É um homem chamado Francis Canopus Hedge. Se o vir, diga-lhe que Johnny Martin está em Paso e que o procura. 

O criado titubeou. 

— Não... não poderá ser, senhor. Lamento-o, mas não poderá ser. 

— Porquê? 

— Hedge saiu da cidade a semana passada. 

O rosto de Johnny ficou impassível. 

— E para aonde foi? 

— Não o disse a ninguém. E muitos pagariam para o saber, senhor. Muitos. Quase todos os que se deixaram escamotear do dinheiro por ele. Hedge era um jogador extraordinariamente afortunado. 

— A sorte acaba-se algum dia — murmurou Johnny. E voltou-se para ver como tocava o pianista ao fundo da sala. 


Sem comentários:

Enviar um comentário