segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

BIS067.02 Retorno a um velho vício

Link Martin saiu do restaurante e deambulou sem rumo pelas ruas da cidade. O calor era mais suportável. Dodge voltava à vida. Começavam as primeiras cenas do espetáculo de animação buliçosa que, como todas as noites, se repetia sem alteração. Dodge não variava. Não variaria nunca, enquanto o gado e o caminho de ferro ali coincidissem. 

Mas a Link tudo aquilo deixara de interessar. Duas horas antes teria estremecido de excitação; teria parado para escutar o charlatão que apregoava as maravilhas do seu unguento antirreumático com uma serpente enrolada ao pescoço, ou engrossaria o número de curiosos em torno de dois «cowboys» que lutavam a murro numa esquina; teria assobiado à passagem da morena de curvas generosas que apanhava a saia para atravessar a rua, ou teria parado em frente da Repartição do xerife para admirar o gesto altivo com que o famoso Bat Masterson, com os dedos polegares nas cavas do colete, exibia o seu distintivo e o revólver, contemplando a gente que passava. 

Agora, para Link, já tudo aquilo não tinha importância. Só tinha o fogo que queimava o seu sangue e lhe assomava aos olhos, só a batalha que se travava no seu íntimo. De vez em quando parava, como se lhe faltassem as forças, mas depois continuava o seu vaguear. Passou indiferente ante os salões de dança, modestas tabernas e salas luxuosas e voltou para trás quando chegou ao extremo da cidade onde brilhava uma série de pequenas lanternas vermelhas naquele cair da noite. Nem sequer verificou que naquela casa, outros homens com dinheiro, como ele, se divertiam. Não era diversão o que procurava. 

Tinha a fronte perlada de suor. Enterrado na algibeira das calças, a sua mão acariciava o molho de notas que até àquela manhã tinham sido uma centena e picos de «herefords» e «vacas de Sonora». «Johnny pensou — porque me deixaste?». E enquanto assim pensava, sorria como uma criança. Metade daquele dinheiro era seu. Completamente seu. Dois anos de esforços. Podia dispor daquela metade como lhe aprouvesse, sobretudo agora, que uma etapa da sua vida terminara e precisava de iniciar a seguinte, quanto mais depressa melhor. 

«Toma, Johnny, aqui tens a tua parte. Devemos separar-nos. Que sejas muito feliz.... Não, não me aconteceu nada, pensei tudo muito bem... Sim, parto, no rancho seria um estorvo... Não, por favor, Johnny... Tenho dinheiro, muito, muitíssimo dinheiro. De sobra, para começar. Poderei bem desembaraçar-me só...». 

— Dizia alguma coisa? 

— Como? 

Link olhou com surpresa o rosto enrugado que tinha na sua frente. Um velho, vaqueiro enfrentava-o de braços cruzados. 

— Pergunto-lhe se dizia alguma coisa. Não gosto que murmurem nas minhas costas. 

— Não — Link apertou as fontes com ambas as mãos. — Falava comigo mesmo. Não reparei que o fazia em voz alta. Não era nada consigo. 

Atrás do vaqueiro havia uma grande tabuleta que rezava assim: «Mayflower Saloon». Link caminhou até ali. Mas parou à porta. Fora horrível, horrível! Viu-a repentinamente, como se fosse uma cena real; um homem tombado sobre a secretária, a mão direita crispada sobre um revólver, com o qual fizera saltar os miolos e um grande charco de sangue... Em Richmond, Virgínia. Seu pai. Cinco anos antes. A paixão doentia do jogo arruinara-o. Johnny e ele fugiram do 'opróbrio e da miséria e ocultaram-se em Panhandle, como se o sangue de seu pai lhes manchasse o rosto. 

Link fechou os olhos. «Meu Deus, livra-me disto... Meu Deus... não o consintas... eu não... eu não...». 

Voltou atrás bruscamente. 

Então, tropeçou em alguém. 

— Oh! Desculpe — ouviu dizer em tom cortês; e depois, com surpresa: — Eh, ouça, andava precisamente à sua procura! Você não é o senhor Bowie? 

A voz tinha um sotaque inconfundível, que era, para Link, o mais belo do mundo: o sotaque de Virgínia, da sua terra natal. Olhou para o homem como se despertasse dum sonho. Viu um indivíduo de uns trinta anos, alto, bem proporcionado, de rosto comprido e sereno, que se cobria com um chapéu de fino feltro preto e vestia uma sobrecasaca. O seu sorriso atraía. Os seus olhos eram francos, claros. 

O rapaz notou: 

— O senhor está confundido. O meu nome é Link Martin. 

—E o meu Francis Canopus Hedge. Obrigado! O desconhecido dissimulou com um sorriso a sua contrariedade. — Mais uma vez lhe peço que me desculpe; mas fizeram-me uma descrição de Jimmy Bowie que coincide perfeitamente consigo. Compreenderá que, como sou forasteiro, torna-se-me muito difícil localizar as pessoas. Ficar-lhe-ei muito 'agradecido se puder indicar-me onde posso encontrar Bowie neste momento. 

— Eu também sou forasteiro. Não conheço aqui ninguém. 

Hedge riu-se. 

— Agora compreendo o seu ar de náufrago que deve ser muito parecido com o meu. Que diabo de cidade, não acha? Que diz se unirmos a nossa. sorte? Dá-me licença que o convide a beber um copo? — Link hesitou, mas o outro acrescentou tomando-lhe o braço: — Sei reconhecer um virginiano embora o veja vestido de esquimó e você não veste assim, Martin. Donde é? De Richmond, sem dúvida? 

— Sim — confirmou Link. 

E num instante, sem saber como entrava, encontrou-se no estabelecimento cuja tabuleta lera momentos antes. Olhou em volta. Reinava ali um especial e tenso silêncio. Ninguém falava, nem ria; nem música, nem o tilintar dos copos. Homens de todas as idades estavam sentados ao redor de diversas mesas, calados, absortos como se cumprissem um rito. 

O «Mayflower Saloon» era uma casa de jogo. 

Link estremeceu. Porque entrara? Que génio diabólico pusera Hedge no seu caminho, quando já vencera a tentação? Porque acontecia agora o que durante toda a tarde desejara e temera ao mesmo tempo? 

Francis Canopus Hedge conduzira-o firme, mas amavelmente para o «bar», Link abandonou-se ao seu destino. Talvez, ao fim e ao cabo, encontrasse em Hedge uma ajuda. Já não acreditava só nas suas forças para lutar contra o mal que aumentava na sua alma. 

Em seguida notou que tinha na sua frente um copo de «whisky» no balcão, e que o virginiano conversava com ele. 

— A minha intenção, compreende, é adquirir uma grande manada — dizia ele. — Estabeleci indiretamente contacto com um ganadeiro do Texas, o Jimmy Bowie, com quem o confundi, e é possível que ele ma p- proporcione. Vou lançar-me em grande escala. Contratarei uma equipa que a conduza para o meu rancho, em Vale de Platte e garanto-lhe que dentro de alguns anos ouvirá dizer... Mas você não bebe? Que tem? 

Link sacudiu cabeça. 

— Nada. Estava distraído... ouvindo-o... 

Interessa-lhe o meu negócio? 

— É também o meu. 

— Talvez tenha vacas para vender? Se assim é, está você primeiro que Bowie. Prefiro um virginiano a um texano. 

O rapaz pensou fugazmente que Hedge era demasiado loquaz. Sentiu-se mal. Desejava observar os jogadores que o rodeavam, participar das suas emoções, mas Hedge impedia-o. Viu numa das mesas um grupo de maltrapilhos mexicanos que, não obstante a sua aparência apostavam no monte fortes paradas; noutra, dois «cowboys» sonolentos jogavam o «poker» com um homem gordo e outro magro de dedos compridos e delgados. Na maioria, jogava-se o «poker». Link apalpou com nervoso as notas que trazia no bolso. 

— Diga-me. Tem algumas vacas para vender? 

Fez uni esforço desesperado. 

— Vendi-as todas — replicou —, mas também não lhe conviriam; era um pequeno rebanho, a maioria de Sonora. O meu rancho fica a sudoeste daqui, a vinte dias nos vales altos do Canadian... Desculpe-me, senhor Hedge, mas tenho de me retirar — era preciso sair dali antes que se perdesse tudo. — A sua companhia é muito agradável, mas tenho um compromisso. 

— Os compromissos dispensam-se, quando nós queremos — sugeriu o virginiano, fazendo um trejeito amistoso. — Bowie, tarde ou cedo, aparecerá por aqui e vou esperá-lo. Faça-me companhia, peço-lhe. Morro de aborrecimento quando estou só. Que lhe parece, por exemplo, se jogássemos uma partida pare passar um bocado? 

Link quase gritou: 

— De maneira nenhuma! 

Mas Hedge pareceu não notar a violência da resposta. 

— Não? --- disse tranquilamente. — Confesso que o julguei mal. Pareceu-me que o seduziam as cartas. Mais ainda, creio que tem gravado no rosto o domínio do «poker». 

— Não — murmurou o rapaz. — Não! Não! 

Porque havia de acontecer-lhe aquilo à última hora? 

— Como queira. Mais um copo então? 

— Não — repetiu Link. 

Subitamente, porém, produziu-se nele uma mudança. A tensão de nervos desfez-se. Desapareceram-lhe os vincos do rosto e acrescentou entre dentes: 

— Está bem, jogaremos o «poker» um bocado. Confio em que esse maldito Bowie não demore muito. 

— Magnífico! Você é feito duma peça só! 

Formaram uma mesa, com os primeiros dois parceiros que aceitaram o seu convite: um «cowboy» alto e taciturno e um outro homenzito com cara de rata. Francis Canopus Hedge mostrava grande vivacidade, uma alegria cortês, mas um pouco tonta. Parecia ter muito dinheiro e estar disposto a perdê-lo. Link estudou-o, cerrando os olhos. Seria implacável com ele, se perdesse, por muito virginiano que ele fosse. Precisava de todo o dinheiro que sobrava a Hedge. Precisava dele para começar, para seguir o caminho da sua nova vida. «Olha, Johnny, aqui tens a tua parte...» 

A sua consciência nada lhe censurava. Com infinito deleite pegou nas cinco primeiras cartas, e abriu-as em leque. Eram boas cartas. 

Cinco anos antes em Richmond, Virgínia, um homem de sorriso infantil iniciara também a sua última partida com muito boas cartas. Mas Link Martin já não se lembrava daquele homem. 


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