quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

BIS067.04 Morte no «saloon»

Quando Johnny Martin estava completamente borracho, ardia nos seus olhos o fogo do inferno. Assim, com os olhos chamejantes, arrasado, acabrunhado, chegou ao hotel, altas horas da noite. Tinha o cérebro como que envolto em densa neblina. Tomou vagamente conhecimento de que Link não regressara ainda, mas ele não estava em condições de pensar em Link nem em nada. Isto, porém, foi de princípio. 

Depois, quando subiu ao quarto, enquanto refrescava o rosto na bacia do lavatório, lembrou-se de repente que Link tinha em seu poder o dinheiro, produto da venda do gado. Essa recordação conseguiu atravessar os vapores do álcool e inundar a sua consciência. Link tinha o dinheiro e não regressara ainda ao hotel. 

A sua longa ausência não podia obedecer a embriaguez, porque Link era incapaz de se embriagar sozinho, e ele estava só. Só podia obedecer a um motivo. Imóvel, com a cabeça a escorrer água, Johnny Martin pronunciou uma selvagem maldição. Cometera uma imprudência irremediável. Alícia Cheyne, os seus juramentos, tudo para o diabo! Era uma consequência da sua estupidez! 

Nunca, nunca devia ter deixado o dinheiro nas mãos de Link, sabendo, como sabia, que veneno tinha Link na alma! A antiga e horrível imagem passou pela sua memória: o homem morto sobre a sua secretária, o revólver, o charco de sangue. Não havia lugar em Richmond para os filhos dum suicida arruinado pelas dívidas de jogo. Tiveram de arranjar aquele refúgio no agreste coração de Panhandle e era impossível que num momento de desvairo se malograsse o que tantos e tão dolorosos esforços lhes custara! 

Johnny pôs em ordem o fato e saiu do quarto. Não podia culpar inteiramente Link. Ele, Johnny, é que fora cego. Procurara cobardemente na bebida o remédio para as suas ilusões desfeitas. Perdera horas e horas! Que teria acontecido a Link durante esse tempo? 

Desceu à cavalariça do hotel, localizou o seu cavalo e selou-o novamente, com gestos e movimentos entorpecidos. Depois encontrou-se na rua sem saber como. Sentia-se doente, zumbiam-lhe os ouvidos e sentia vómitos. Avançava num mundo impreciso. Tudo parecia saltar e dançar na sua frente. Ignorava para onde ia. Deixava-se conduzir pelo cansado animal. 

Assim, vagueou pela cidade durante algum tempo, até que serenou o suficiente para visitar um após outro os locais públicos a tentar descobrir seu irmão entre a assistência. Homens que deambulavam, tão borrachos como ele, davam-lhe encontrões sem se preocuparem; tropeçou com desconhecidos, caiu algumas vezes, mas a sua mente aclarava-se com maior rapidez à medida que decorriam os minutos e crescia a sua angústia. 

Por fim, quando se encontrou ante seu irmão, quando o viu ali, com o rosto descomposto sentado a uma mesa, reconheceu a sua lógica, procurando-o nas tavolagens. Foi o instinto que ó guiou ali. 

— Link! 

A sala andava à roda, ante os seus olhos. Johnny conseguiu aproximar-se da mesa. 

— É amigo desse rapaz? — perguntou alguém. — Leve-o daqui... Perdeu uma fortuna. Está muito bêbedo para continuar. 

— Não se meta nisto! 

— Procuro fazer-lhe um favor.

Link continuava sentado, mas os outros três parceiros puseram-se de pé. 

O que falou vestia uma elegante sobrecasaca, tinha o rosto comprido e moreno, um sorriso atraente e olhava-o de frente. 

Os dois restantes. eram um «cowboy» taciturno e um homem com cara de rata. Pareciam ambos muito interessados em escapar-se antes que aparecessem complicações, ciosos sem dúvida do pequeno lucro que acabavam de obter no jogo.  

— Estás absolutamente bêbedo, Link? — perguntou Johnny, com estranha solenidade. 

Em seguida viu a enorme quantidade de fichas empilhadas no lugar que o homem da sobrecasaca ocupara à mesa. 

— Eh, Link! — exclamou. — Quanto perdeste? 

— Deixa-me em paz! — respondeu Link torvamente. 

Quis pôr-se de pé como os outros, mas tropeçou nos pés da cadeira, perdeu o equilíbrio e caiu no chão. 

O homem da sobrecasaca protestou: 

— Isto é grotesco, senhores! Não pode continuar a Partida. Com licença. Vou-me embora. 

Os outros dois apressaram-se a reunir as suas fichas. O da sobrecasaca dispunha-se a imitá-los, quando Johnny o reteve por um braço. 

— Tu, batoteiro, mãos quietas! 

O rosto do homem empalideceu. 

— Tenho nome: Francis Canopus Hedge. 

— Vá à fava. e mais o nome! Disse tivesse as que mãos quietas! 

— Que quer você? — Hedge recuou um passo — Está tão bêbedo como ele! 

— Embora bêbedo, reconheço-o muito bem, seus canalhas, víboras nojentas, batoteiros! — gritou Johnny, fora de si. — Não consentirei que roubes esse dinheiro ao meu irmão, percebes? 

— E não consentirei que me insulte — replicou o virginiano com os lábios apertados. O seu rosto tinha agora uma expressão gelada. — Meça bem as suas palavras ou juro-lhe que por muito borracho que esteja... 

Johnny não o. deixou concluir: com as costas da mão deu-lhe forte na boca. Hedge recuou e ele lançou-se sobre as fichas agarrando-as atabalhoadamente... 

Nessa altura, Link agarrou-se a uma cadeira e punha-se de pé. 

— Ajuda-me! — ordenou-lhe o irmão. — Fazia-la bonita se eu não venho aqui! Creio que cheguei na altura própria... 

Interrompeu-se. Dera meia-volta com as mãos cheias de fichas e deu de caras com Hedge. O virginiano empunhava um revólver calibre 38. 

— Deixe essas fichas e ponha-se a andar! 

Johnny hesitou. Mesmo embriagado, teve uma claríssima noção do perigo. 

— Quanto perdeste, Link? — Voltou a perguntar sem afastar os olhos da arma que lhe estava apontada. 

A voz do irmão fez-se ouvir, rouca: 

— Tudo. 

Tudo! Johnny olhou para as fichas que tinha entre os dedos. Representavam dois anos de solidão e trabalho esgotante. Com aquelas fichas tinham de fazer frente à vida a partir de então. Link e ele. Eram absolutamente suas e desgraçado do elegante batoteiro se tentasse arrebatar-lhas! Deu um passo em frente. 

— Não julgue que é brincadeira — acrescentou Hedge em tom cortante, — porque se arrependerá. Esse dinheiro perdeu-o aquele rapaz em jogos leais e pertence-me. Saiba que não me agrada matar um bêbedo, mas... assim farei! Alto! 

— Será um assassínio — replicou Johnny avançando outro passo. — Nunca usei armas. Atire, vamos, atire e enforcá-lo-ão! 

— Ainda está por fazer a corda que me enforque a mim! 

Parecia muito seguro de si mesmo, e, todavia, não disparou. A advertência do jovem não era descabida. O rapaz estava desarmado. Hedge sabia de sobra a que se arriscava se lhe desse um tiro. Mas isto não significava que o deixasse escapar. 

Quando Johnny retomou a marcha, levantou o revólver e tentou bater-lhe com ele na cabeça. Johnny esquivou o golpe que o atingiu no ombro. Louco de fúria, atirou com as fichas em riste. Hedge viu aqueles punhos a um palmo dos olhos. Deu um salto para trás e, naquele momento, a boca do seu 38 cuspiu chamas. 

Johnny caiu para a frente como fulminado por um raio e, com o impulso, arrastou-se no chão alguns metros. Depois ficou imóvel. Hedge murmurou uma praga. 

— Johnny! — gritou Link. 

O seu grito fora como o grasnar duma ave. Ao voltar-se para ele, Hedge assustou-se com a expressão satânica do rapaz que saíra de repente do seu torpor. Num segundo lançara-se sobre o homem com cara de rata que se encontrava à sua esquerda e arrebatou-lhe o revólver que ele levava à cinta. 

Hedge tinha bastante medo para levar as coisas com calma. Provavelmente Link, que não parecia. habituado ao manejo das armas e estava cego de cólera, não era um grande perigo com um revólver na mão; mas o jogador não se deteve nestas considerações. Voltou a disparar. Precisou fazê-lo em sucessão de três vezes, para que Link caísse exatamente a seus pés. A última das balas atingiu-o na cabeça. Link morreu antes de chegar ao chão. 

Nenhuma das pessoas que presenciaram a sua morte o soube, mas aquele ferimento era idêntico ao que pôs fim à vida dum homem em Richmond, Virgínia, cinco anos antes. 

No salão, reinava agora um denso silêncio. Os clientes. que ocupavam as mesas 'próximas debandaram para se refugiarem atrás do balcão ou junto das paredes. Quando resolveram aproximar-se do lugar da cena, Hedge estava a recolher as fichas, deitando-as no seu chapéu de castor. 

— Lamento muito o ocorrido, senhores — declarou tranquilamente, — mas creio que o- procedimento desses dois pobres bêbedos desculpa a minha conduta. Procurem prestar-lhes o auxílio que eles necessitem. 

Rompera-se o silêncio. Os homens agrupavam-se em -volta dos dois rapazes estendidos no solo, falando com excitação. 

— Este já não precisa de auxílio — anunciou alguém. 

Referia-se a Link. Os que rodeavam Johnny pelo contrário levantaram-no do chão e estenderam-no sobre uma mesa. Era evidente que vivia, embora se encontrasse desmaiado e jorrasse da cabeça um caudal de sangue. A bala de Hedge, segundo parecia, apenas lhe raspará um parietal. Todos os olhos se voltaram para o jogador. Este disse: 

— Repito que lamento isto.  

Não estava a gostar do aspeto que o assunto tomava. Sentia-se apertado num círculo de hostilidade. A atitude da assistência exprimia uma clara ameaça. 

— Aconteceu alguma coisa de especial? 

— É melhor pôr-se a andar quanto antes! 

— Se me permitem, acabo primeiro de recolher as fichas. 

— É melhor pôr-se a andar quanto antes!

Hedge hesitou. Olhou para aqueles homens um a um. Eram capazes de o crivar de balas se não seguisse o seu conselho, mas devia correr o risco se queria o dinheiro. Devia afrontar a morte se queria levar o bolo. E afrontou. 

Durante uns intermináveis minutos, permaneceu sob as ameaças dos canos dos revólveres, enquanto atirava febrilmente com as fichas de várias cores para dentro do - chapéu. O suor escorria-lhe em bica pelo rosto, os lábios tremiam-lhe e estava pálido como um Cadáver. 

Recolhera até à última ficha quando se ergueu. Ninguém disparara, mas a tensão era tal que alguma coisa parecia estar prestes a estoirar. Hedge caminhou em direção à caixa. Passou sucessivamente ante o cadáver de Link e o corpo ensanguentado de: Johnny. 

— Troco — disse para o caixeiro. 

Este contou as fichas e empurrou para Hedge um montão de notas. Uni enorme montão de notas. 

Hedge compreendeu que triunfara. Procurou não pensar nos revólveres que tinha nas suas costas. Isso permitiu-lhe dirigir-se para a saída com passo firme, direito, altivo, solene, embora tremendo por dentro. 

Teria caído de joelhos, se alguém se decidisse a detê-lo. Mas ninguém se decidiu. O silêncio pesava agora como uma lousa. Francis Canopus Hedge desapareceu pela porta da rua. 

Um homem alto exigiu: 

— Chamem o médico. Este rapaz ainda vive. 

Johnny Martin vivia. E viveria. 


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