terça-feira, 28 de dezembro de 2021

BIS067.10 Como perder a vida depois de perder ao jogo

O homem que dissera chamar-se Johnny Martin acolheu o regresso de Lucy ao «bar» com um irónico sorriso. 

—Uma partida entre mendigos — comentou. — Esse seu amiguito recebeu uma boa chicotada... vi e ouvi tudo daqui. Vinte mil dólares! Que tinha ele na mão? 

—Duas damas. 

— Que loucura! É ingénuo como um cachorro... Eu vi as cartas de Hedge: declarou não querer cartas sem ter absolutamente nada, e apostou até cinquenta mil dólares como. se tivesse na mão quatro ases. O seu amiguito deixou-se enganar. Porque não o previne? Porque não o aconselha? Perderá muito se continuar a jogar assim. 

Lucy, de repente, sentiu-se mal. 

— Não acredito no que diz das cartas do senhor Hedge. É impossível vê-las daqui. 

—Não é impossível, para quem está acostumado a fazer uso dos olhos. 

Fez-se um longo e incómodo silêncio. 

—Bem, que aconteceu à irmã de Charlie? — perguntou Lucy em tom forçado. 

— Oh! Essa — riu Martin — teve um mau fim. Interessa-lhe deveras a história? 

— Muito, deveras. 

O homem examinou o copo de cerveja, que estava vazio. 

— Charlie era irmão da rapariga raptada. Um mestiço bucólico e sonolento que ganhava por ano um punhado de dólares vendendo peles de castor, que gastava todos em genebra. Quando o coronel Byram, enfurecido, começou a percorrer as montanhas com os seus «scouts», como comandasse uma legião de demónios, Charlie apareceu e ofereceu-se-lhe como batedor e guia. Aceitaram-no. Mas a perseguição a Apache Kid não progrediu, embora chegassem a encontrar ainda acesas as fogueiras dos acampamentos do terrível bandido. Quase lhe sentiam a presença nas imediações. Desde que raptara a rapariga o cerco que lhe fizeram era angustioso. Até que um dia..., Não deve ter sido uma coisa agradável: os «scouts» descobriram o cadáver da jovem num lugar onde o bandido acampara a noite anterior. A pobre rapariga sofreu o inacreditável àquele selvagem e não era possível reconhecê-la. Mas Charlie reconheceu-a. Não disse palavra. Naquela tarde desapareceu e esteve ausente uns dias. Ao regressar, parecia muito tranquilo, o mesmo sonolento de sempre. Byram suspeitou o que se passara. Chamou o mestiço, e perguntou-lhe se encontrara Apache Kid, se o matara, que fizera dele. Charlie, meio a dormir, limitou-se a encolher os ombros e a murmurar: «Uff!», como os índios. E foi tudo. Ninguém mais viu Apache Kid. 

Lucy olhou com assombro e receio o homem. 

— Porque me contou tudo isso? 

— Em primeiro lugar porque mo pediu; em segundo, porque você é muito parecida com a irmã de Charlie, mas mais formosa que ela. 

— Não há outra razão? 

— Talvez. 

— Qual? 

Johnny Martin sorria vagamente. 

— Da história podem tirar-se conclusões que, de certo modo, se ajustam a si. 

Lucy mostrou-se desesperada, embora não o estivesse. O vago receio que experimentara ao princípio dominava-a por completo. 

— Não diga tolices! Que conclusões? Que as mulheres bonitas estão expostas a morrer brutalmente nas mãos dum bandido de qualquer espécie?

— Essa seria uma boa conclusão — concordou ele. — Mas há outra mais interessante ainda. É que um homem sozinho, com força de vontade e desejo firme de agir, consegue o que não conseguiria um regimento com o coronel à frente. A mulher baixou as pálpebras. 

— Não percebo uma palavra. 

— Tem a certeza? 

— Absoluta. Se insinua que essa suposta conclusão pode ajustar-se a mim, não entendo uma única palavra. 

Ele olhou-a fixamente. 

— Procurarei explicar-lho. Ajusta-se a si, porque aqui, no seu estabelecimento, há dois homens que reúnem as condições que acabo de lhe referir: força de vontade e firme propósito de agir. Um deles, é Francis Canopus Hedge... 

Johnny Martin interrompeu-se de repente. As suas palavras caíam novamente no vácuo. A atenção de Lucy estava outra vez longe dele, na mesa do «poker». 

— Não me ouve? 

—Desculpe-me. Já venho para ouvir o resto. 

E afastou-se. Somente Hedge se levantou desta vez, quando ela chegou junto à mesa. Os restantes ficaram sentados e praticamente sem dar pela sua presença. Na cara de Tommy estava gravado um grande assombro. 

— Como vai isso? —inquiriu Lucy. 

Só recebeu como resposta alguns grunhidos. Sobre a partida, parecia pairar agora uma estranha ameaça. A atmosfera era agreste, dramática, hostil. O alemão e o mineiro estavam a perder muito: muitíssimo mais do que calculavam perder como passatempo. Mas muito mais do que eles, perdia Tommy Roswell. 

Tommy não deixara de perder em crescente progressão desde a aziaga jogada em que teve de se curvar ante os cinquenta mil dólares de Hedge. Este, o único tranquilo e sorridente do Quarteto, ganhava tudo. O mais grave para Tommy, todavia, era que, além do dinheiro, perdera o domínio dos nervos e estava já no declive fatal que conduz o jogador ao desastre. Procedia mecanicamente, anuladas todas as faculdades de raciocínio. Nunca acreditou que se pudesse perder tanto dinheiro, e ante um homem que do «poker» possuía a ideia mais rudimentar e que jogava com a mesma concentração como se fuma um cigarro. 

Quando Tommy se deteve a calcular a repercussão que aquelas estúpidas perdas teriam na sua fortuna, quando pensou no remoto e quimérico que lhe parecia o saco de ouro com o Qual descera um dia da montanha, caiu de repente no abismo da desmoralização. 

Centenas de pensamentos alheios ao jogo atravessavam-lhe o cérebro: os loucos projetos que fizera ao sorrir-lhe a sorte, o imbecil que fora não os realizando quando o podia fazer, as suas alegrias, a sua frenética vida durante o inverno que então terminava, o ingrato que se mostrava com o seu destino... 

Se não se refizesse no final da partida, ser-lhe-ia preciso voltar a começar, muito antes do que supusera. Voltar a começar! Parecia impossível que, para proporcionar a Hedge uma pequena distração, as coisas tomassem tão terrível aspeto. 

Naturalmente, restava-lhe a mina, o secreto jazigo bem oculto nos penhascos. Tommy nem sequer sorriu. Que importavam uns milhares de dólares a menos? Que importavam, se ali, nos inóspitos cumes da montanha o esperava a sua mina? Podia permitir-se uma partida de «poker» ruinosa ou até cem partidas! Porque não? Estava em condições de enterrar em ouro Hedge ou qualquer outro cavalheiro se se desse a esse capricho! Porquê preocupar-se? 

De repente, enquanto os seus pensamentos o afastavam cada vez mais da mesa, julgou entrever nela a sua grande oportunidade. Foi no princípio duma jogada muito parecida com as outras anteriores, mas que o encontrou com um jogo aproveitável. 

Hedge pedira uma só carta e fez imediatamente uma aposta de mil dólares, e Tommy tinha uma sequência alta. Em várias puxadas anteriores, Hedge procedera de maneira semelhante, sempre com solte. Agora, não obstante, anunciou os seus mil dólares em tom estranho. 

Tommy não estava tão cego, para não advertir que o Hedge a quem naquele momento enfrentava não era o mesmo que iniciara o jogo, mas os triunfos contínuos, e a enorme soma de dinheiro ganho davam-lhe aprumo, segurança e confiança. Poucas vezes demonstrava precaução, e o gesto de esfregar o nariz, pelo qual o rapaz se guiava para saber quando jogava pelo seguro ou em falso, tornara-se menos frequente. Não obstante, depois de anunciar a abertura com mil dólares, escapou-lhe e repetiu-o ao cabo duns segundos. 

Voltando à realidade imediata com um esforço, e concentrando-se na partida, Tommy estudou o seu adversário. Mil dólares significavam, apesar de as apostas se terem elevado muito, uma mão fraca, e a tentativa de a aproveitar forçando audazmente a abertura. Tinha de ser assim, segundo o confirmava a pequena reação nervosa de Hedge. Tommy fez uma análise da situação, tão exata quanto pôde e esperou que o alemão falasse. 

— Vou aos mil — declarou este. 

Então anunciou a sua aposta: 

— Terá de ir aos cinco mil. 

O mineiro pôs as cartas na mesa. Já se resignara a que a sorte o não acompanhasse aquela noite. 

— A dez mil—cobriu Hedge. 

O alemão acompanhou-o aos dez mil e, não obstante, a Tommy não o incomodava o alemão, que era incapaz de suportar a pressão duma forte soma. Ao contrário, satisfazia-se que Hedge tivesse coberto os seus cinco mil; aquilo equivalia a um desafio, ao sinal de luta. E Hedge não tinha jogo. Se na ocasião dos cinquenta mil o duvidou, agora tinha a certeza. O cavalheiro quase estremecera ao ouvir a sua aposta de cinco mil, esfregara o nariz, pestanejou inquieto. Leu no seu rosto o que ele pensava, com mais facilidade que num livro. Hedge não fecharia as apostas, o que significava perder. Pelo contrário, puxaria, puxaria mais e mais, procurando atingir uma cifra que o amedrontasse. Ele próprio lho aconselhara e, como disse o alemão, os conselhos no «poker» têm duas caras. Tommy não se deixaria dominar. 

— Vinte e cinco mil. 

Lucy, que deixara o «bar» aproximou-se naquele momento e colocou-se atrás de Tommy, que ficou radiante. Assim, ela poderia assistir ao seu. triunfo. Deixou-lhe ver as cartas do seu jogo. Desta vez, porém, Lucy não lhe pôs a mão no ombro, como se o facto de ele perder na jogada anterior lhe pudesse suscitar algum reparo. 

Levantando a cabeça, o rapaz viu-a brincar, pensativa, com o seu estranho colar de pepitas de ouro. Sorria. Passava entre os seus dedos delgados, uma a uma, aquelas pepitas, como se fossem contas de um rosário. Era evidente que os vinte e cinco mil dólares tinham impressionado Hedge. Demorava em replicar. Hesitava. 

Por um instante, Tommy julgou que ele ia desistir, e teve pena. Aquilo representaria ter de enfrentar o alemão, acerca de cujo jogo não tinha qualquer indicação. Mas Hedge não desistiu. 

— Cinquenta mil — declarou. Não parecia muito convencido. 

— Vou aos cinquenta mil — resmungou o alemão. 

Tommy ficou contrariado. Frustraria aquele maldito armazenista todos os seus cálculos? Cinquenta mil dólares! Começou também a pôr-se nervoso e muito lhe custou dominar-se. Pensou na sua mina. Pensou no gesto de inquietação de Hedge. Isto restabeleceu a sua confiança. 

— Sejam então cem mil! — exclamou. — Parece que chegou a minha desforra, senhor Hedge! Que dirá agora? 

O cavalheiro fez um sorriso crispado. Num segundo, esfregou três vezes o nariz e depois começou a folhear o monte de notas que tinha na frente. Por fim, puxou por um livro de cheques. A sua voz era cava: 

— Digo que são quinhentos mil. Naturalmente que não tenho comigo essa importância em dinheiro. Passarei um cheque. Como os senhores não conhecem a minha solvência financeira, proponho que a nossa querida Lucy, que a conhece, analise este cheque. — Olhou para a mulher com o seu sorriso forçado. — De acordo, querida? Caneta e tinta por favor... 

Murmurando uma palavra pesada, o alemão atirou com as cartas. 

— Os senhores estão loucos varridos! — protestou. — Não há quem resista a isto... Nem mesmo você. Tommy. Pela minha parte, creio que já perdi bastante. 

Tommy não replicou. Estava lívido. Meio milhão de dólares! E Hedge tão nervoso! E a advertência que ele lhe fizera de que só uma cifra elevada poderia assustá-lo! Como se mostrava aquele homem tão audaz, e ao mesmo tempo tão ingénuo? Acaso não ligaria ele importância ao dinheiro? 

Fosse como fosse, saíra com a sua. Tommy não tinha na sua conta quinhentos mil dólares. Era-lhe impossível responder ao desafio no momento exato em que todas as vantagens estavam a seu lado. Faltava-lhe dinheiro. Sacrificara inutilmente cem mil dólares, além dos milhares e milhares que perdera desde o começo da partida. Estava esmagado. 

Um criado trouxe caneta e tinta. Hedge preencheu e assinou o sou cheque. Lucy continuava nas costas da cadeira de Tommy. Ninguém falava:

— E então, senhor Roswell? 

O cheque estava no meio da mesa. Tommy fechou os olhos. 

— Sou proprietário de uma mina de ouro nos montes São João — declarou lentamente. O seu valor, embora não esteja calculado, é sem dúvida muito superior a quinhentos mil dólares, mas, para o caso, poderíamos fixá-lo nessa importância. Se aceita uma declaração de dívida garantida pela propriedade da mina, aposto com muito prazer o meio milhão. Abriu os olhos para os fixar em Hedge, pensando que se este julgava vê-lo recuar ante a sua cifra, se enganava redondamente. Ele não se assustava: Jogava sobre o seguro. Podia arruinar Hedge e a uma dúzia de Hedges se a isso se dispusesse, mas a coisa fora longe, demasiadamente longe. O cavalheiro era amigo de Lucy. Puxar de mais, seria um acto criminoso. 

Claro que a Hedge restava o recurso de se recusar a aceitar a declaração e salvar-se. Sem honra, sem glória, mas salvar-se. Tommy esperou ansioso a resposta. 

— Aceito. 

Era realmente um cavalheiro, concordou o rapaz. Um autêntico cavalheiro. A nobreza obriga. Submetia-se à derrota, antes que mostrar-se desleal, baixo. Havia no mundo poucos homens assim. 

Tommy redigiu triunfalmente a declaração de dívida e atirou-a para cima da mesa, junta ao cheque, às notas e às fichas de cores. Hedge suspirou. 

— Senhor Roswell, meu caro Tommy, o seu jogo deve ser estupendo — ponderou visivelmente emocionado. — Tenho verdadeira curiosidade de saber com que se atreveu a seguir-me, arriscando-se dessa maneira. 

Rapidamente. Tommy Roswell estendeu as cartas na mesa. A sua sequência. Em torno da mesa produziu-se um murmúrio de assombro. 

— Só uma sequência? — exclamou Hedge. — Santo Deus! Não compreendo como... Veja, eu tenho um «full». Receava que você tivesse outro superior, ou talvez um «poker». Como se atreveu á tanto com uma sequência? 

Tommy ficou mudo de horror. De maneira que o jogo dele era realmente bom! De maneira que o cavalheiro apostara no seguro! Que tremendo equívoco, que fantástico, que incrível equívoco! Parecia que o mundo se lhe desmoronava sobre a cabeça. Tudo acabara. Não tinha nada, nem sequer a mina! Era possível? Nem sequer a mina. Encontrou-se sem forças para se emocionar, absolutamente incapaz de compreender a magnitude do que lhe acontecera. Só uma coisa lhe apareceu clara: o seu sonho de casar com Lucy desfizera-se para sempre. Era novamente um homem pobre, um lava-pratos, um pesquisador de ouro, um miserável. 

Ouviu-se a voz do alemão: 

— Nunca mais voltarei a jogar com imbecis. Eu, sim, que tinha um «full» superior ao seu, Hedge, mas Tommy, forçando á subida das apostas, tirou-me as possibilidades de intervir. Isto não é para mim. 

— Nem para mim—reforçou o mineiro. Ambos abandonaram a mesa. 

— Lamento o acontecido, amigo — disse Hedge tristemente. — Evidentemente que me tem à sua disposição, não só para a desforra, se a desejar, como para qualquer coisa em que possa ser-lhe útil. É impossível que isto fique assim... ganhei-lhe demasiado -dinheiro. Maldita hora! Porque me lembrei de jogar contra si? 

Tommy pôs-se de pé com dificuldade. Vacilava. Parecia viver um pesadelo. 

— Não tem importância — articulou. 

Lucy agarrou-o por um braço. 

— Sentes-te 'doente? 

Ele repeliu-a suavemente 

— Não... Preciso de ar. puro. A atmosfera está aqui um pouco pesada. Depois voltarei, querida. 

Dirigiu-se para a porta; parecia um cadáver a andar. Os ombros caídos e a cabeça curvada. Levava consigo o selo da morte. E era na morte que pensava; em morrer, antes que perder Lucy e mergulhar novamente na miséria e na obscuridade! 

— Pobre rapaz — murmurou Hedge quando ele desapareceu. — Doí-me a alma ter-lhe feito isto. 

— A mim doer-me-á até ao fim dos meus dias —replicou Lucy secamente. — Não supus que chegasses tão longe, Frank. És um canalha sem nome. 

— Pões-te -sentimental agora? — perguntou ele, trocista, arqueando as sobrancelhas. — Desconheço-te, querida Lucy. 

—É evidente que me desconheces... Vamos, põe-te a andar daqui, antes que me arrependa! Não quero ver-te mais nesta casa, nem na cidade, Frank, compreendes? Não quero ver-te! 

— Descansa, que não me verás — as sensíveis mãos de Hedge começaram a recolher a declaração, as notas e as fichas que estavam na mesa. —Agora sou um homem rico. Esta vida miserável acabou. Nunca mais, nunca! Nunca mais tocarei numa carta. Fixa bem o que eu te diga, Lucy. Nunca mais, juro-te! 

— Devias tê-lo jurado ontem — respondeu ela com amargura. 

Não se mexeu donde estava, enquanto ele guardava os lucros no chapéu e ia à caixa trocar as fichas, nem mesmo quando ele se dirigiu para a porta. Dali, Hedge cumprimentou-a com um gesto. Lucy continuou indiferente, rígida, muda. 

Ao regressar ao «bar», a luz dos seus soberbos olhos apagara-se. 

— Outra taça de champanhe, Paul — pediu ao empregado. 

Bebeu-a com avidez. Alguém disse muito perto dela: 

— Você prometeu ouvir-me depois e, se não me engano, esse depois é agora. 

Voltou-se sobressaltada. O inquietante cavaleiro ainda ali estava.

— Oh! Deixe-me em paz! Nem agora nem nunca quero voltar a ouvir as suas tolices e as suas... 

— Ouvirá — atalhou ele, notando que ela quase chorava. — Convém-lhe ouvir as minhas tolices, menina Mayer. Eu disse-lhe, lembra-se, que havia aqui dois homens com força de vontade e firme propósito de agir. Um era Francis Ganopus Hedge que, de momento, fez o que queria. Mas o outro sou eu. 

Lucy tentou ler nos seus olhos. 

— Você? 

—Uma segunda conclusão a tirar da história de Charlie — acrescentou o homem em tom decisivo. — É que se deve castigar com a morte a morte dum irmão. 

A mulher apertou as fontes nas mãos. 

— Por favor. Insisto em julgar que se equivoca. Parece empenhado em falar-me com duplo sentido, mas não o compreendo. Talvez não seja eu a pessoa que supõe. 

— Talvez assentiu ele. —De qualquer maneira lhe direi que estou aqui para matar Francis Canopus Hedge. 

Lucy recuou um passo. Fez-se um silêncio. 

— Quem é você? 

— Johnny Martin. 

—Um nome não significa nada! Se está aqui para matar Hedge, porque não o fez.? Porque não o matou antes dele sair? 

— Imagina que não me agradaria? 

— Bem, porque não o fez? 

— Porque Hedge estava desarmado. 

— Mas que tem contra ele? 

Martin riu com aspereza. 

— Pergunta-me o que tenho! Há muito tempo, menina Mayer, há anos, quando eu era uma criança, Hedge matou o meu irmão mais novo. Meu irmão e eu estávamos embriagados. Foi facílimo a Hedge matá-lo a ele, ferir-me a mim e roubar-nos o punhado de dólares que tínhamos economizado com indescritíveis sacrifícios. Mas fez mais: arrebatou-me a mulher que eu amava, manchou-a de lama e deixou-me aos vinte anos sem vontade de viver, sem forças sequer para o obrigar a saldar a dívida comigo! Hoje, soou a minha hora. Procurei Hedge por todo o país. Terei grande prazer de acabar com ele no momento mais oportuno: no momento, em que ele deu o mais importante golpe da sua vida! 

Lucy estava lívida. 

— O golpe... mais importante. — Balbuciou. 

— Sei multo de Hedge, menina Mayer. De Hedge de si. Sei por exemplo que se conheceram quando você trabalhava num teatro de Memphis; que houve entre ambos um episódio sentimental; que subiram ambos o Mississípi até São Luís, operando nas casas de batota ambulantes e arruinando os algodoeiros; que ele a utilizou como isco para caçar incautos e em São Luís separaram-se depois de realizarem excelentes negócios. Sei também como Hedge se arranja para limpar o bolso das suas Vítimas. Hoje assisti a uma demonstração... Porque faz essa cara? 

Johnny interrompeu-se para analisar o efeito das suas palavras. E prosseguiu: 

— Nos momentos decisivos da partida, Hedge pedia a ajuda com o simples gesto de coçar a orelha direita. Você então apressava-se a ajudar, colocando-se atrás de Roswell e vendo-lhe o jogo. Se este era mau, colocava-lhe a mão no ombro; e Hedge agia em consequência. Se era bom, indicava-lhe com outros sinais. Vi como indicou a sequência que o rapaz tinha na mão, brincando com as pepitas do seu colar, e suponho que Hedge soube até que espécie de sequência se tratava. Naturalmente que os momentos decisivos foram muito poucos, pois o seu amigo Hedge vale-se em geral dos seus dotes de psicólogo, e da sua habilidade de jogador; resultou perfeita a sua maneira de enganar Roswell e fazer-lhe crer que o gesto de esfregar o nariz denunciava um mau jogo e apostar em falso... Concordo que Francis Canapus Hedge é um artista. Representou com Tommy Roswell urna comédia maravilhosa, sem uma falha, cuidada nos pormenores. Todavia, a comédia já acabou. E para cena final... conto com a sua ajuda. 

— Com a minha ajuda? — repetiu a mulher horrorizada. —  Mas você está louco! Como sé atreve a supor que eu lhe prestarei uma ajuda de qualquer espécie? 

Johnny Martin assentiu, friamente. 

— Sim, fará. Hedge teve-me diante dele e nem sequer me reconheceu. Sou um insignificante episódio de sua vida, como tantos, esquecido há muito tempo. Mas você irá ter com ele e recordar-lhe-á que há anos ele matou uma criança chamada Link Martin, em Dodge City, e que esta conta não está saldada. Você irá preveni-lo de que corre perigo, e dizer-lhe que deve armar-se e fugir da cidade. É assim como eu o quero: armado e fugitivo: É assim como eu o matarei. Enquanto Martin falava, Lucy fez um esforço desesperado para serenar e sobrepôs-se à misteriosa sensação de domínio que emanava daquele homem terrível. Quase o conseguiu. 

— Engana-se — replicou. 

Procurava angustiosamente ser novamente a Lucy Mayer de nervos de aço e coração de gelo que brincava com os homens sem piedade, mas o simples olhar de Martin desarmava-a. 

— Não, não me engano. 

—Está muito seguro de si próprio, hem? — Lucy inclinou a cabeça para trás e riu. Não lhe importou que o seu riso soasse a falso. — Pois eu digo-lhe que se engana, Johnny Martin. Não farei nada do que supõe. Não prevenirei Frank Hedge. Não quero ser cúmplice da sua morte; mas, por mim, pode ir agora mesmo e matá-lo. Não moverei um dedo em sua defesa. 

— Isso que significa? É um ardil? 

— Se você soubesse.... 

Um homem gordo entrou subitamente a correr pela casa dentro em direção ao «bar». Estava excitado e tinha o rosto vermelho como uma papoila. 

— Um «whisky» duplo, Paul! Mas que espetáculo! Você já sabe que Tommy Roswell se matou com um tiro? Mas que espetáculo, meu Deus! 


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