O amor entre duas pessoas muito jovens é um acontecimento sumamente belo; e o idílio de Johnny Martin com a professora loura foi realmente belo. Tudo contribuíra para que o fosse. Os dois irmãos acabavam de receber a importância das suas sessenta vacas e contratado à aquisição dos ansiados «herefords». Estavam num momento de euforia. Distribuído o dinheiro com ordem, sobejava-lhes ainda uma pequena quantia para dedicar a diversões.
Um rapaz de dezoito anos e outro de dezasseis, que tinham trabalhado como uns homens na solidão dum país selvagem para se refazerem da ruína moral e econômica e que, pela primeira vez, gozam o fruto do seu trabalho, têm acerca das diversões urna opinião especial. Esta opinião coincidiu com a realização do baile da Associação dos Ganadeiros.
Foram ao baile.
Encontravam-se nele não as mulheres que pululavam pelas ruas de Dodge, mas lindas e honestas raparigas que raras vezes apareciam em público. Isso fê-los regressar ao ambiente em que tinham sido educados, sentindo-se, portanto, à vontade. Antes de o baile acabar Johnny encontrara uma jovem professora, loura e corada, recém-chegada à cidade, amedrontada ainda com a dureza daquela terra indomável e daqueles homens quase ferozes. E antes de o baile terminar, apaixonaram--se um pelo outro.
Viram-se mais duas vezes ainda. Depois, os irmãos Martin partiram para o seu rancho, perdido nos agrestes vales do Canadian.
Johnny teve, a partir daquele dia, por quem lutar contra a Natureza, o gado, a solidão e as canseiras: Algo pelo qual queria vencer. Até então fora uma criança, mas o beijo que aquela rapariga lhe dera à despedida convertera-o num homem.
Conforme o seu cavalo avançava para o extremo oriental da cidade, onde ficava a escola, Johnny recordava um a um todos os traços da jovem e o juramento que ouvira dos seus lábios. A recordação incutiu-lhe valor. A sua timidez desaparecera quando chegou ao largo poeirento limitado ao fundo por um antigo edifício em ruínas onde fora uma igreja metodista, e que, era agora um monte de madeira carcomida, ruínas e escombros. A escola ficava um pouco mais adiante. Johnny parou à porta. Não hesitava. Apeou-se e bateu com decisão. Apareceu uma mulher a abrir. Trazia um vestido negro com gola branca. Tinha o rosto comprido, anguloso, amarelado. Johnny tossiu e disse:
— Desejo falar com a professora.
— A professora sou eu.
Um frio gelado pareceu percorrer a espinha dorsal do rapaz. Apertou os punhos. Um terrível pressentimento invadiu-lhe a alma.
— A senhora é que é a professora?
— Sim, sou eu. Diga duma vez o que deseja!
— Eu... referia-me à menina Cheyne...
A mulher arqueou as sobrancelhas. A sua cara de cavalo esboçou uma 'expressão de desdém.
— A essa...? — exclamou. Os seus lábios tremiam de indignação. — A essa...? Oh! Oh! Ponha-se a andar!
Atirou com a porta e a- pancada ecoou como no vácuo, dentro do coração de Johnny. Ficou ali parado, estupefacto, magoado. Alguma coisa não era como devia ser. O seu pressentimento despertou-lhe uma insuportável sensação de angústia.
Enquanto permanecia imóvel ante aquela porta fechada e muda, ouviu na escola vozes de crianças. Aquilo fê-lo reagir. As crianças não tardariam a sair e talvez por elas conseguisse averiguar o que desejava. Retrocedeu e ocultou-se com o cavalo junto à parede da antiga igreja.
Teve de esperar apenas uns minutos.
A porta da escola voltou a abrir-se. A professora assomou a cabeça para esquadrinhar os arredores. Como não visse ninguém, afastou-se para deixar passar quatro rapazitos dos seus dez anos de idade. Vigiou um instante enquanto eles se afastavam e fechou a porta de novo.
Assim que desapareceu, Johnny interpelou um dos pequenos. Estes olharam uns para os outros antes de responderem e, quando o fizeram, foi sem espontaneidade. Mas as suas respostas tranquilizaram o rapaz. Soube que a menina Cheyne deixara a escola para se dedicar aos negócios. Soube o local onde vivia atualmente, e que os pais daquelas crianças não aprovavam sua nova situação, mas estas estimavam-na e lamentavam que as tivesse abandonado nas mãos da senhora Tucker, que era a mulher com cara de cavalo.
A menina Cheyne estava bem, misteriosamente bem. Havia algo raro na reserva das crianças e na maneira como davam as suas informações. Johnny soube momentos depois que nenhum dos pequenos a voltara a ver depois de deixar o cargo. Os seus pais proibiram-nos de a visitar. Porquê? Outra vez o mesmo: porque não aprovavam as suas atividades. Que atividades? Negócios. Mas que negócios? Segundo parecia, os pequenos ignoravam-nos. Teria casado? Não, não casara.
Johnny saltou sobre o cavalo e, com o cenho franzido, internou-se novamente na cidade. Não ia contente, mas não perdera a esperança. As notícias que tinha eram vagas, mas não eram más. Possivelmente os peque-nos não sabiam dar-lhes mais concretas. Depois de atravessar a cidade dum extremo a outro, localizou a casa que lhe indicaram.
Era uma casa pequena, nova, muito bonita. Boas madeiras, e bem ajustadas. Tinha a porta e as janelas pintadas de verde, e uns maciços de flores em volta. Tudo nela era delicado e feminino.
Enquanto se apeava, Johnny pensava no doloroso que seria para a menina Cheyne trocar aquela casa encantadora pelo rústico rancho de Panhandle. Depois bateu à porta verde. Dava voltas ao chapéu nas mãos, quando a porta se abriu.
De repente, encontrou na sua frente uma mulher. Uma autêntica mulher. Loura, perturbadoramente bela, suavemente perfumada, elegantemente vestida de azul. Olhava-o com uma interrogação nas suas luminosas pupilas.
Johnny suspendeu a respiração e murmurou:
— Alicia.
— Que deseja?
— Sou Johnny... Martin -- a voz do rapaz refletia unia espécie de horror. — Não me reconhece? Não se lembra de mim?
Ela sorriu distraidamente.
— Sinto muito, mas... Oh! Que nome disse?
— Johnny Martin.
A jovem cobriu o rosto com as mãos. Durante uns segundos, Johnny receou que o repelisse. Depois viu que se pusera a tremer e sentiu um louco impulso de a estreitar nos seus braços. Mas não o fez. Ela convidou-o com um murmúrio:
— Entre, por favor.
Ele entrou. Não reparou na luxuosa simplicidade com que a casa estava mobilada. Não notou os inúmeros e evidentes sinais de riqueza. Caminhou como um sonâmbulo, até se encontrar sentado num sofá, em frente de Alicia. A rapariga já não ocultava o rosto. Olhava-o fixamente, serena, bela, majestosa como uma princesa dum conto de fadas.
— Surpreendeu-me, Johnny Martin — declarou. E ele recordou então como ansiara ouvir aquela voz, durante meses e meses. — Apareceu-me como um fantasma! Quer beber alguma coisa? «Whisky»?
Johnny não disse nada, mas. ela aceitou o seu silêncio como uma aquiescência e foi buscar a bebida. Ele seguiu-a com os olhos. Era uma soberba mulher. Nada existia na pessoa daquela professora corada e de rosto limpo de pinturas, que denunciasse que tinha medo dos homens. Dois anos haviam desvanecido os seus receios.
Tudo era diferente, mesmo sem ser ela. Johnny sentia uma profunda e estranha dor ao vê-la e ouvi-la. Tratava-o com a cortesia que merece um antigo conhecido, quase esquecido; e, todavia, não era isto ainda o mais doloroso. A Alícia de agora pairava muito acima dele, do seu rancho nos vales, do seu pestilento gado, dos seus mesquinhos problemas. A Alícia de agora não podia amá-lo. Nem ele talvez a pudesse amar a ela. Uma nova personalidade nascera em cada um deles.
Johnny mordeu os lábios. Ali morriam as suas ilusões. Voltaria para os vales, para o trabalho, para a luta, como se nunca tivesse feito um juramento a uma mulher. Foi estúpido esperar outra coisa. Procurou rir.
— Vim a Dodge com meu irmão vender algumas reses — declarou. Tremeu-lhe ligeiramente a voz, mas confiou em que ela o não notasse. — Não quis deixar a cidade sem visitar a única pessoa que aqui conheço, que é você. Talvez deva felicitá-la. Disseram-me algumas coisas sobre... a sua mudança de situação...
Alicia colocou sobre a mesa uma garrafa e copos. O seu rosto continuava impassível.
— Que coisas?
— Que trocou a escola pelos negócios.
— E que mais?
Ele encolheu os ombros. Desejaria falar de banalidades, resolver a situação e despedir-se, mas não s atrevia a pronunciar unia palavra com receio de que o atraiçoassem os nervos. A jovem encheu os copos e disse:
— Eu conheci-o a si num baile da Associação dos. Ganadeiros.
— Sim, efetivamente, parece-me recordar que foi ali.
— Eu lembro-me muito bem. Lembrar-me-ei toda a vida.
Johnny já não podia mais. Levantou-se. O claro olhar da rapariga fê-lo sentir-se abominável, rude, grosseiro. Odiou-se a si próprio e a ela também.
— Tenho de ir-me embora.
— Tão depressa? Sem ter bebido o seu copo?
— É que... perdi muito tempo à sua procura e... o meu irmão está à minha espera. É preciso que antes de jantar...
— Não.
— Como?
— Não partirá assim. Sente-se e escute. Não receie, não vou troçar de coisas que, pelo menos para mim, são sagradas. Não direi nada que possa ferir os seus sentimentos.
Johnny não, se sentou. A expressão do seu rosto endurecia e Alícia notou-o e compreendeu que não tinha maneira de o impedir.
— Não se preocupe com os meus sentimentos — respondeu ele. — E note bem que eu não lhe pedi qualquer explicação. Eu sei penitenciar-me dos meus erros.
— Pois eu não sei penitenciar-me dos meus — a réplica da jovem estava impregnada de amargura. —Você veio cumprir um juramento que me fez há dois anos. Veio porque me ama. Veio procurar-me para ser sua esposa... Sinto-o, Johnny Martin. Nunca, nunca imaginei que voltasse a encontrá-lo, juro-lhe! Julguei que a terra se abria aos meus pés, quando o vi à porta! Apaixonei-me por si há dois anos, Johnny. Amava-o com loucura no momento em que me deixou. Não enganei com as minhas promessas... Mas quer compreender? Eu era uma rapariga sensata, muito sensata. Assim que partiu, notei o ingénua e candidamente que me havia comportado. Abri, como quem diz, os olhos. Todavia, esperei algum tempo e não recebi qualquer notícia sua. Nem uma só notícia! — a voz da rapariga era apaixonada. — Os meus pais, Johnny, educaram-me muito bem. Convenceram-me da utilidade do senso comum na vida, sobretudo quando se tem de andar só pelo mundo. — Fez uma pausa e acrescentou com ironia: — Era senso comum não ter fé em si, e eu não a tive. Agora voltou, mas agora sou outra mulher. Perdoe-me, Johnny. Agora eu não o amo, nem creio que você me ame a mim, a Alicia Cheyne que tem presente.
— Só conheço uma Alicia Cheyne — replicou secamente o rapaz.
Ela estremeceu.
— Você é muito bom. Nunca esquecerei o desgosto que lhe dou. Será como uma maldição!
— Só conheço uma Alicia Cheyne! — insistiu ele. -- Só existe uma, a que tenho na minha frente! Porque hão de ser assim as coisas? Porque se resigna dessa maneira? Porque não tentamos voltar atrás?
— Porque não se pode apagar o decurso do tempo.
— Como sabe que não?
Alicia fitava-o nos olhos.
— Quer mais claro, Johnny?
— Sim.
— Não tento voltar atrás, porque sou indigna de si.
— Indigna de mim! Quem julga que sou eu? Um super-homem?
— Um homem honrado. — Crispou nervosamente os punhos. — Por favor, não me obrigue a falar disto! Há coisas que não preciso dizer-lhe, que não tenho coragem de dizer lhe, mas... não as vê você mesmo? Porventura não lhe falaram de mim na cidade?
Johnny sentiu apoderar-se dele um profundo terror. Olhou em volta, e não viu nada do que ela pretendia que ele visse.
— A que se refere? Aos seus negócios?
— Não.
— A um homem?
— Sim.
— Ama-o?
— Sim.
— É feliz?
— Sim.
O rapaz ficou mudo, dando voltas ao chapéu, rígido, firme.
— Parta agora, Johnny — disse ela. — Parta e esqueça-me.
Ele passou a língua pelos lábios secos.
— Partirei, se o deseja. Mas não tenho nada que censurar-lhe. É verdade que vim à sua procura e eu não quebro facilmente os meus juramentos. É você a mulher a quem amo. Diga uma só palavra...
— Cale-se!
Alicia parecia ter perdido de repente toda a sua energia. Voltou-se de costas e ocultou o rosto contra a parede. Os soluços sucumbiam-na.
— Alicia... — murmurou Johnny.
— Parta, por caridade! Você está louco!
— É impossível! Uma mulher não chora se ama um homem e é feliz!
—Parta!
Fez-se um longo silêncio.
— Muito bem — disse Johnny por fim. — Só me resta agradecer-lhe a inspiração e o consolo que recebi da sua recordação durante estes dois anos. Até nunca mais, menina Cheyne.
Alicia não se moveu, enquanto ele abandonava a sua casa. Chorava. Chorava por não ter acreditado que houvesse no mundo homens como Johnny Martin. Agora, sim, sabia que os havia, mas era demasiado tarde. Johnny cavalgou pelas ruas de Dodge e parou quando encontrou uma taberna. Entrou. Só saiu, quando estava completamente embriagado.
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