O juiz esteve a conversar com o xerife durante muito tempo, e o representante da Lei na cidade de Marte não se cansou de acenar com cabeça, em sinal de assentimento.
No fim da entrevista a sua expressão traduzia grande preocupação.
— Amanhã se decidirá — concluiu Bornac —, mas não deixe de fazer o que lhe disse.
— Fique descansado.
— Procurarei o delegado e o defensor e pôr-me-ei de acordo com eles.
Saiu. Entardecia e um ventinho agradável afagou-lhe o rosto. No seu caminhar lento e seguro, o juiz dirigiu-se para casa. Não sabia porquê, mas parecia-lhe notar uma tensão estranha no ambiente, talvez por se encontrarem na rua poucas pessoas e de essas andarem com passos rápidos, como se também aguardassem algum acontecimento importante.
Parou diante do restaurante mexicano e observou os arredores. Tinha a certeza de que Salinger não se daria por vencido apenas por estar fora de combate o seu principal pistoleiro. Receava, até, ter de haver-se com «Seis Dedos».
Estranhou, portanto, não receber as «boas-vindas» de ninguém, para as quais se preparara.
Ao entrar no salão do «Chaparral» compreendeu que a tensão, ali, atingira o auge. Todos os olhos se fixaram nele, negros e brilhantes, com uma espécie de religioso temor.
Não tardou a compreender porquê. A um canto, sentado junto de uma mesita, encontrava-se um homem que logo reconheceu: o mesmo indivíduo magro e' desgracioso que cruzara consigo no hotel de Winslow e defronte da casa de Salinger.
Mal o viu, o homem levantou-se e ficou um pouco de lado, com a mão direita perto da anca e um sorriso velhaco no rosto de cavalo.
— Viva, juiz — saudou. — O senhor não me conhece, mas há algum tempo já que somos amigos.
Bornac refletia. Talvez fosse, outro pistoleiro contratado por Salinger, como parecia confirmar o pormenor da sua presença perto da casa do rancheiro... Mas, sendo assim, por que estivera também em Winslow?
Como se lhe adivinhasse os pensamentos, o desconhecido desatou a rir, com um riso agudo e sem alegria.
-- Sim, juiz, Salinger tem-me ao seu serviço... desde hoje. A verdade, porém, é que o senhor e eu somos sócios há já algum tempo, e eu vim precisamente. recordar-lhe que essa sociedade não deve acabar.
De súbito, Bornac soube quem era aquele homem, e um fogo estranho queimou-lhe as entranhas.
Como que a confirmar as suas suspeitas, May, a antiga bailarina agora sua esposa, desceu a escada com o olhar febril cravado nele. Era aquele, sem dúvida, o indivíduo que os explorava, o causador de Bornac se haver convertido num miserável vendedor de sentenças, o homem que tinha em seu poder o filho de May e seu.
— Já disse a May que essa sociedade deixara de existir -- declarou o juiz, serenamente. — E não ressuscitará,
— Não? Julga que não cumprirei... o que o senhor sabe?
Bornac sorriu. Sentia-se forte, poderoso, desde que tomara a decisão de cumprir o seu dever. Por outro lado, o fantasma que tanto tempo o atormentara deixara de o ser. ,
— Você não fará coisa nenhuma — afirmou, sem hesitar. — Primeiro, porque não tem coragem, e segundo, porque terá de enfrentar-se comigo diretamente, sem se escudar nas saias de uma mulher.
O chantagista não modificou nem a expressão nem a posição.
May desceu o resto da escada e foi ao seu encontro. –
— Não, por favor! Não consintas, Mo, que faça mal ao nosso filho! Não tens o direito de o consentir!
A singularidade da situação alertou o juiz, cujo cérebro funcionava ativamente.
— Fica onde estás! — ordenou, com voz severa.
Mas, sem fazer caso, May tapou com o corpo o esganiçado chantagista.
— Mo, por que não queres ajudar-me?
De súbito, sem saber como, pareceu-lhe que as suas feições se modificavam, que as orelhas lhe cresciam e tomavam a forma de poços escuros. Era uma nova May que se lhe revelava, desconhecida, uma nova May em cujas feições trémulas se viam as marcas, não do sofrimento, mas da devassidão, do vício. Até a sua voz soava diferente:
— Julgas que não sei o que fizeste esta tarde? — gritou fora de si. — Deste uma sova a um homem por causa de uma mulher qualquer, que anda por ai à frente de uma quadrilha de bandidos, e vais absolver o irmão só porque ela te subiu à cabeça... A mim deixavas-me, mas não terás sorte nenhuma, não levarás a tua avante!
Deu um salto para o lado e o juiz compreendeu a razão do seu comportamento. O seu cúmplice, pois agora já não duvidava de que o era, apontava-lhe o revólver, com um sorriso ainda mais perverso.
— Como vê, juiz, não vale a pena armar-se agora em santo. Ou atua de acordo com o combinado, ou o faremos em polpa.
— Não te livrarás de mim com essa facilidade! — continuava a berrar a mulher. — Tira-lhe os revólveres, Dunley, é perigoso como uma cobra. E depois... o que merece! Perder a cabeça por um desavergonhada e querer tratar-me, a mim, como um trapo velho! Quebra-lhe os ossos, Dunley, desfaz-lhe a odiosa cara!
Dunley avançou alguns passos na direção de Bornac.
— Ela está um pouco excitada, juiz, mas eu não sou assim tão mau... Vamos, solte o cinto. Aconselho-o a não tentar qualquer tolice, a partir deste momento, pois estarei sempre ao seu lado, mesmo quando dormir.
Bornac compreendeu que a sua situação era perigosa Não duvidava de que Dunley fosse capaz de converter-se em seu cão de guarda, até ao julgamento. Claro que não poderia impedi-lo de ditar a sentença que lhe parecesse justa, mas mal o fizesse mandá-lo-ia para o outro mundo.
Confiariam na sua missão depois de desarmá-lo e de lhe darem, talvez, uma sova. Salinger era homem astuto e não hesitara em associar-se com aquela criatura repugnante.
Com gestos lentos, desapertou o cinto. A assistência procurou imediatamente pontos estratégicos de onde pudesse assistir ao que ia passar-se sem arriscar a preciosa pele.
— Não conseguirá nada — declarou o juiz, sempre sereno. — O melhor será acabar comigo de uma vez, pois se não o fizer não descansarei enquanto não o apanhar. Mandá-lo-ei perseguir em todos os Estados, por sequestrador e chantagista. Não é esperto, amigo, devia ter avaliado melhor a espécie de adversário que escolheu.
— Maldito rábula! — berrou o outro, de feições contraídas. — A dar-se ares de homem forte, hem?
Em duas passadas colocou-se diante de Bornac, levantou o braço comprido e esmurrou-o no queixo. O juiz recuou, a cambalear, e Dunley seguiu-o e levantou de novo o punho.
Mas uma voz aguda e incisiva conteve-o:
— Larga o revólver, Dunley!
O juiz, que recuperara o equilíbrio, observou a nova personagem do drama: «Seis Dedos» erguia-se como um gigante e cobria quase todo o vão da porta.
Não empunhava armas, mas todos sabiam que não era preciso — inclusivamente o chantagista, que girou nos calcanhares com o repelente sorriso a arrepanhar-lhe os lábios, falso como Judas.
— Por que te metes nisto, «Seis Dedos»? — indagou. — Sabes que Salinger...
— Para o diabo com o Salinger! — replicou, irritado, o outro. — Serviste-te de um truque nojento para apanhares esse homem, e não o tolerarei. Se queres acertar contas com ele, hás-de fazê-lo segundo o código do Oeste.
O chantagista encolheu os ombros e replicou:
— Mas eu... cumpria ordens de Salinger.
— Já te disse que quero que o Salinger vá para o diabo. Apanhe os seus revólveres, juiz.
Bornac quase não acreditava na sua sorte — uma sorte, aliás, muito discutível, pois percebia que Ç<Seis Dedos» lhe facilitava a defesa para ter a oportunidade de defrontá-lo ele. .
Isso, porém, não lhe metia medo. Apressou-se, pois, a cingir o cinturão.
— Obrigado, «Seis Dedos». Agora, Dunley, tens apenas .um minuto para decidir: ou te entregas voluntariamente à prisão, como sequestrador e chantagista, ou disparas contra mim.
Deu uns passos para o fundo da sala, e o outro torceu o pescoço e fitou May, que recuara para a escada, a tremer.
— Se optares pela segunda alternativa, Dunley — disse o gigantesco pistoleiro mete o revólver no coldre e afasta-te até ao balcão. Terão de cumprir-se as regras do jogo.
Se o bandido tinha outras ideias, aquela advertência tirou-lhas. Suava. Por fim, sem apanhar a arma que deixara cair por ordem de «Seis Dedos», gritou:
— Ao diabo com tudo isto, juiz! Não sou sequestrador. E quanto a ir-lhe às massas, isso era ideia dela.
— Que queres dizer?
Bornac começava a compreender, mas nem se atrevia a pensar que durante tanto tempo fora vítima de tal conjura.
— O seu filho... Bem, é mentira que o tenha, morreu pouco depois de nascer. Porém, quando do incêndio de Flagstaff...
May soltou um grito estridente e precipitou-se para Dunley:
— Mentira! Mentira!
Agarrou-o pelo pescoço e arranhou-lhe a cara com as unhas. O bandido bateu-lhe com punhos na cabeça, mas ela não o largou. Assistiu-se, então, a uma estranha dança: a bailarina agarrada a ele com todas as forças, a proferir palavrões, e Dunley a praguejar e a tentar soltar-se.
Por fim o pistoleiro tomou uma medida radical: tirou o revólver esquerdo e, sem que Bornac ou «Seis Dedos» tivessem tempo de intervir, disparou várias vezes contra a mulher.
Esta, no entanto, manteve-se ainda alguns segundos com as mãos presas à cara do cúmplice, e depois, com um estremecimento incrível, deixou cair a cabeça para trás e deslizou suavemente para o chão.
Bornac correu para o seu lado, ajoelhou-se, amparou--lhe a cabeça, mas logo a largou, com cuidado. Nada podia fazer, May Zender deixara de existir.
Com ela morrera um triste passado, uma época negra da vida do juiz. Tentou desculpá-la, compreender as atrozes circunstâncias em que se vira. Quando a encontrara em Flagstaff, acusada de um crime, talvez não fosse verdade que Dunley a ameaçasse de matar-lhe o filho; mas era certo que se servia dela para os seus negócios, que exercera sobre a sua vontade e um poder demoníaco.
May não mentira ao pedir-lhe que não a deixasse. Obrigada a enganá-lo, devia pensar que a sua salvação estava com o seu antigo amor, com o homem que a desposara e lutara por ela.
Mas Bornac, após o segundo encontro, não lhe demonstrara mais do que piedade.
Levantou-se e voltou-se lentamente para o bandido. Este continuava a tremer e a arquejar, com o sangue a escorrer da cara arranhada.
— Maldito assassino! — gritou o juiz, com voz rouca. — Vamos, empunha a arma!
Dunley fitou-o com desespero. Não tinha fuga possível e o medo arranhava-lhe a garganta, como um gato assanhado.
— Foi ela! Foi ela! — gemeu. — Juro que foi tudo urdido por essa maldita. Pensou que, se lhe fizesse crer que o seu filho vivia e estava sob a minha ameaça, o senhor a livraria de apuros. Como percebeu que era fácil explorá-lo...
— Pega na arma, cão tinhoso!
Talvez fosse verdade o que dizia, mas isso não importava ao juiz. Estava convencido de que, se May chegara a tais extremos, fora por se haver corrompido na companhia daquele canalha.
Encurralado, sem vislumbrar salvação possível, Dunley tirou o revólver que metera no coldre direito. Era rápido e ágil no domínio das armas.
Mas sofreu a tortura de o juiz o deixar tirar o «Colt» e de quase o apontar. Em seguida viu incendiar-se o olhar de ferro do antagonista e viu ainda, por três vezes, o fulgor vermelho das detonações. Só então mergulhou no nada.
Consumada a sumaríssima justiça, o juiz sentiu como que um desfalecimento. Guardou lentamente a arma e voltou-se para «Seis Dedos». Era a sua vez.
— Suponho que Salinger não quererá, agora, que eu seja o juiz, não é verdade? — perguntou. — Estou à sua disposição, «Seis Dedos».
O outro não se moveu. Vigiava Bornac e quantos se encontravam na sala, sem se atreverem a mexer-se, com os olhos dilatados.
— A minha conta pode esperar, juiz — declarou. Julgará Ben Kunetzky e garanto-lhe que não se lhe levantarão obstáculos. Mas quando acabar de ditar a sentença, juro-lhe que não haverá força humana capaz de impedir-me de matá-lo. Ponha-se, pois, de bem com a consciência e proceda como melhor lhe parecer.
Quando saiu do vão da porta todos respiraram, mais aliviados. O juiz foi sentar-se a uma mesa, invadido por uma calma gelada. Estava certo de que «Seis Dedos» não falava por falar, de que aquele seria, sem dúvida, o seu último julgamento.
No fim da entrevista a sua expressão traduzia grande preocupação.
— Amanhã se decidirá — concluiu Bornac —, mas não deixe de fazer o que lhe disse.
— Fique descansado.
— Procurarei o delegado e o defensor e pôr-me-ei de acordo com eles.
Saiu. Entardecia e um ventinho agradável afagou-lhe o rosto. No seu caminhar lento e seguro, o juiz dirigiu-se para casa. Não sabia porquê, mas parecia-lhe notar uma tensão estranha no ambiente, talvez por se encontrarem na rua poucas pessoas e de essas andarem com passos rápidos, como se também aguardassem algum acontecimento importante.
Parou diante do restaurante mexicano e observou os arredores. Tinha a certeza de que Salinger não se daria por vencido apenas por estar fora de combate o seu principal pistoleiro. Receava, até, ter de haver-se com «Seis Dedos».
Estranhou, portanto, não receber as «boas-vindas» de ninguém, para as quais se preparara.
Ao entrar no salão do «Chaparral» compreendeu que a tensão, ali, atingira o auge. Todos os olhos se fixaram nele, negros e brilhantes, com uma espécie de religioso temor.
Não tardou a compreender porquê. A um canto, sentado junto de uma mesita, encontrava-se um homem que logo reconheceu: o mesmo indivíduo magro e' desgracioso que cruzara consigo no hotel de Winslow e defronte da casa de Salinger.
Mal o viu, o homem levantou-se e ficou um pouco de lado, com a mão direita perto da anca e um sorriso velhaco no rosto de cavalo.
— Viva, juiz — saudou. — O senhor não me conhece, mas há algum tempo já que somos amigos.
Bornac refletia. Talvez fosse, outro pistoleiro contratado por Salinger, como parecia confirmar o pormenor da sua presença perto da casa do rancheiro... Mas, sendo assim, por que estivera também em Winslow?
Como se lhe adivinhasse os pensamentos, o desconhecido desatou a rir, com um riso agudo e sem alegria.
-- Sim, juiz, Salinger tem-me ao seu serviço... desde hoje. A verdade, porém, é que o senhor e eu somos sócios há já algum tempo, e eu vim precisamente. recordar-lhe que essa sociedade não deve acabar.
De súbito, Bornac soube quem era aquele homem, e um fogo estranho queimou-lhe as entranhas.
Como que a confirmar as suas suspeitas, May, a antiga bailarina agora sua esposa, desceu a escada com o olhar febril cravado nele. Era aquele, sem dúvida, o indivíduo que os explorava, o causador de Bornac se haver convertido num miserável vendedor de sentenças, o homem que tinha em seu poder o filho de May e seu.
— Já disse a May que essa sociedade deixara de existir -- declarou o juiz, serenamente. — E não ressuscitará,
— Não? Julga que não cumprirei... o que o senhor sabe?
Bornac sorriu. Sentia-se forte, poderoso, desde que tomara a decisão de cumprir o seu dever. Por outro lado, o fantasma que tanto tempo o atormentara deixara de o ser. ,
— Você não fará coisa nenhuma — afirmou, sem hesitar. — Primeiro, porque não tem coragem, e segundo, porque terá de enfrentar-se comigo diretamente, sem se escudar nas saias de uma mulher.
O chantagista não modificou nem a expressão nem a posição.
May desceu o resto da escada e foi ao seu encontro. –
— Não, por favor! Não consintas, Mo, que faça mal ao nosso filho! Não tens o direito de o consentir!
A singularidade da situação alertou o juiz, cujo cérebro funcionava ativamente.
— Fica onde estás! — ordenou, com voz severa.
Mas, sem fazer caso, May tapou com o corpo o esganiçado chantagista.
— Mo, por que não queres ajudar-me?
De súbito, sem saber como, pareceu-lhe que as suas feições se modificavam, que as orelhas lhe cresciam e tomavam a forma de poços escuros. Era uma nova May que se lhe revelava, desconhecida, uma nova May em cujas feições trémulas se viam as marcas, não do sofrimento, mas da devassidão, do vício. Até a sua voz soava diferente:
— Julgas que não sei o que fizeste esta tarde? — gritou fora de si. — Deste uma sova a um homem por causa de uma mulher qualquer, que anda por ai à frente de uma quadrilha de bandidos, e vais absolver o irmão só porque ela te subiu à cabeça... A mim deixavas-me, mas não terás sorte nenhuma, não levarás a tua avante!
Deu um salto para o lado e o juiz compreendeu a razão do seu comportamento. O seu cúmplice, pois agora já não duvidava de que o era, apontava-lhe o revólver, com um sorriso ainda mais perverso.
— Como vê, juiz, não vale a pena armar-se agora em santo. Ou atua de acordo com o combinado, ou o faremos em polpa.
— Não te livrarás de mim com essa facilidade! — continuava a berrar a mulher. — Tira-lhe os revólveres, Dunley, é perigoso como uma cobra. E depois... o que merece! Perder a cabeça por um desavergonhada e querer tratar-me, a mim, como um trapo velho! Quebra-lhe os ossos, Dunley, desfaz-lhe a odiosa cara!
Dunley avançou alguns passos na direção de Bornac.
— Ela está um pouco excitada, juiz, mas eu não sou assim tão mau... Vamos, solte o cinto. Aconselho-o a não tentar qualquer tolice, a partir deste momento, pois estarei sempre ao seu lado, mesmo quando dormir.
Bornac compreendeu que a sua situação era perigosa Não duvidava de que Dunley fosse capaz de converter-se em seu cão de guarda, até ao julgamento. Claro que não poderia impedi-lo de ditar a sentença que lhe parecesse justa, mas mal o fizesse mandá-lo-ia para o outro mundo.
Confiariam na sua missão depois de desarmá-lo e de lhe darem, talvez, uma sova. Salinger era homem astuto e não hesitara em associar-se com aquela criatura repugnante.
Com gestos lentos, desapertou o cinto. A assistência procurou imediatamente pontos estratégicos de onde pudesse assistir ao que ia passar-se sem arriscar a preciosa pele.
— Não conseguirá nada — declarou o juiz, sempre sereno. — O melhor será acabar comigo de uma vez, pois se não o fizer não descansarei enquanto não o apanhar. Mandá-lo-ei perseguir em todos os Estados, por sequestrador e chantagista. Não é esperto, amigo, devia ter avaliado melhor a espécie de adversário que escolheu.
— Maldito rábula! — berrou o outro, de feições contraídas. — A dar-se ares de homem forte, hem?
Em duas passadas colocou-se diante de Bornac, levantou o braço comprido e esmurrou-o no queixo. O juiz recuou, a cambalear, e Dunley seguiu-o e levantou de novo o punho.
Mas uma voz aguda e incisiva conteve-o:
— Larga o revólver, Dunley!
O juiz, que recuperara o equilíbrio, observou a nova personagem do drama: «Seis Dedos» erguia-se como um gigante e cobria quase todo o vão da porta.
Não empunhava armas, mas todos sabiam que não era preciso — inclusivamente o chantagista, que girou nos calcanhares com o repelente sorriso a arrepanhar-lhe os lábios, falso como Judas.
— Por que te metes nisto, «Seis Dedos»? — indagou. — Sabes que Salinger...
— Para o diabo com o Salinger! — replicou, irritado, o outro. — Serviste-te de um truque nojento para apanhares esse homem, e não o tolerarei. Se queres acertar contas com ele, hás-de fazê-lo segundo o código do Oeste.
O chantagista encolheu os ombros e replicou:
— Mas eu... cumpria ordens de Salinger.
— Já te disse que quero que o Salinger vá para o diabo. Apanhe os seus revólveres, juiz.
Bornac quase não acreditava na sua sorte — uma sorte, aliás, muito discutível, pois percebia que Ç<Seis Dedos» lhe facilitava a defesa para ter a oportunidade de defrontá-lo ele. .
Isso, porém, não lhe metia medo. Apressou-se, pois, a cingir o cinturão.
— Obrigado, «Seis Dedos». Agora, Dunley, tens apenas .um minuto para decidir: ou te entregas voluntariamente à prisão, como sequestrador e chantagista, ou disparas contra mim.
Deu uns passos para o fundo da sala, e o outro torceu o pescoço e fitou May, que recuara para a escada, a tremer.
— Se optares pela segunda alternativa, Dunley — disse o gigantesco pistoleiro mete o revólver no coldre e afasta-te até ao balcão. Terão de cumprir-se as regras do jogo.
Se o bandido tinha outras ideias, aquela advertência tirou-lhas. Suava. Por fim, sem apanhar a arma que deixara cair por ordem de «Seis Dedos», gritou:
— Ao diabo com tudo isto, juiz! Não sou sequestrador. E quanto a ir-lhe às massas, isso era ideia dela.
— Que queres dizer?
Bornac começava a compreender, mas nem se atrevia a pensar que durante tanto tempo fora vítima de tal conjura.
— O seu filho... Bem, é mentira que o tenha, morreu pouco depois de nascer. Porém, quando do incêndio de Flagstaff...
May soltou um grito estridente e precipitou-se para Dunley:
— Mentira! Mentira!
Agarrou-o pelo pescoço e arranhou-lhe a cara com as unhas. O bandido bateu-lhe com punhos na cabeça, mas ela não o largou. Assistiu-se, então, a uma estranha dança: a bailarina agarrada a ele com todas as forças, a proferir palavrões, e Dunley a praguejar e a tentar soltar-se.
Por fim o pistoleiro tomou uma medida radical: tirou o revólver esquerdo e, sem que Bornac ou «Seis Dedos» tivessem tempo de intervir, disparou várias vezes contra a mulher.
Esta, no entanto, manteve-se ainda alguns segundos com as mãos presas à cara do cúmplice, e depois, com um estremecimento incrível, deixou cair a cabeça para trás e deslizou suavemente para o chão.
Bornac correu para o seu lado, ajoelhou-se, amparou--lhe a cabeça, mas logo a largou, com cuidado. Nada podia fazer, May Zender deixara de existir.
Com ela morrera um triste passado, uma época negra da vida do juiz. Tentou desculpá-la, compreender as atrozes circunstâncias em que se vira. Quando a encontrara em Flagstaff, acusada de um crime, talvez não fosse verdade que Dunley a ameaçasse de matar-lhe o filho; mas era certo que se servia dela para os seus negócios, que exercera sobre a sua vontade e um poder demoníaco.
May não mentira ao pedir-lhe que não a deixasse. Obrigada a enganá-lo, devia pensar que a sua salvação estava com o seu antigo amor, com o homem que a desposara e lutara por ela.
Mas Bornac, após o segundo encontro, não lhe demonstrara mais do que piedade.
Levantou-se e voltou-se lentamente para o bandido. Este continuava a tremer e a arquejar, com o sangue a escorrer da cara arranhada.
— Maldito assassino! — gritou o juiz, com voz rouca. — Vamos, empunha a arma!
Dunley fitou-o com desespero. Não tinha fuga possível e o medo arranhava-lhe a garganta, como um gato assanhado.
— Foi ela! Foi ela! — gemeu. — Juro que foi tudo urdido por essa maldita. Pensou que, se lhe fizesse crer que o seu filho vivia e estava sob a minha ameaça, o senhor a livraria de apuros. Como percebeu que era fácil explorá-lo...
— Pega na arma, cão tinhoso!
Talvez fosse verdade o que dizia, mas isso não importava ao juiz. Estava convencido de que, se May chegara a tais extremos, fora por se haver corrompido na companhia daquele canalha.
Encurralado, sem vislumbrar salvação possível, Dunley tirou o revólver que metera no coldre direito. Era rápido e ágil no domínio das armas.
Mas sofreu a tortura de o juiz o deixar tirar o «Colt» e de quase o apontar. Em seguida viu incendiar-se o olhar de ferro do antagonista e viu ainda, por três vezes, o fulgor vermelho das detonações. Só então mergulhou no nada.
Consumada a sumaríssima justiça, o juiz sentiu como que um desfalecimento. Guardou lentamente a arma e voltou-se para «Seis Dedos». Era a sua vez.
— Suponho que Salinger não quererá, agora, que eu seja o juiz, não é verdade? — perguntou. — Estou à sua disposição, «Seis Dedos».
O outro não se moveu. Vigiava Bornac e quantos se encontravam na sala, sem se atreverem a mexer-se, com os olhos dilatados.
— A minha conta pode esperar, juiz — declarou. Julgará Ben Kunetzky e garanto-lhe que não se lhe levantarão obstáculos. Mas quando acabar de ditar a sentença, juro-lhe que não haverá força humana capaz de impedir-me de matá-lo. Ponha-se, pois, de bem com a consciência e proceda como melhor lhe parecer.
Quando saiu do vão da porta todos respiraram, mais aliviados. O juiz foi sentar-se a uma mesa, invadido por uma calma gelada. Estava certo de que «Seis Dedos» não falava por falar, de que aquele seria, sem dúvida, o seu último julgamento.
Esperava-o um juiz superior, que o julgaria por seu turno. Eram poucas as probabilidades que tinha de es-capar com vida. Claro que lhe restava o recurso de abandonar, de fugir, mas isso era urna coisa que não fazia sentido, assemelhava-se a subir ao alto de urna montanha e pretender que era imortal.
«A justiça perfeita é a morte, e o melhor juiz é aquele que não a teme e a serve até ao fim.»
«A justiça perfeita é a morte, e o melhor juiz é aquele que não a teme e a serve até ao fim.»
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