No dia seguinte, Luís Kinsey saiu pela última vez da casa que tinha sido sua.
Montava um cavalo de estampa não muito elegante e levava um cinturão-cartucheira com dois «Colts». Vestia um trajo de cavaleiro mexicano e cobria a cabeça com um amplo chapéu. Era toda a sua fortuna. Restavam-lhe duzentos pesos e com eles esperava chegar até ao Novo México ou ao Texas, do outro lado do rio Grande.
Não tinha pressa. Antes de abandonar definitivamente o México, queria visitar o rancho de Pedro de Mejias, primo da sua mãe, um homem que rondava os cinquenta anos, proprietário de um grande rancho contíguo à fronteira, em Chipualta, uma povoação que outrora fora ocupada pelos incas.
Demorou dois dias em chegar. Tinha estado ali havia anos, quando contava treze, pouco tempo antes da queda do imperador Maximiliano (1).
(1) Referência a Fernando 7osé Maximiliano, arquiduque de Áustria, que, em seguida à invasão do México pelos franceses, foi nomeado imperador deste país em 1864. Impopular, abandonado por Napoleão II em 1867, foi preso e fuzilado. (N. do T.).
Recordava Pedro de Mejias como um homem afável e muito simples de trato, que o apreciava sinceramente. E também se lembrava da filha, uma garota desajeitada quando ele a conhecera, que se chamava Clara.
Agradava-lhe a ideia de passar por ali antes de entrar na União.
Quando chegou a Chipualta, não fazia a menor ideia do sítio onde se encontrava o rancho. Perguntou a um mexicano velho, que fumava um cigarro escuro e pestilento, à sombra de um alpendre. O mexicano fitou-o inquisidoramente antes de responder e, quando o fez, foi com lentidão.
— Pedro de Mejias tem o rancho a cinco milhas, seguindo o caminho de saída para a União.
Luís Kinsey não se preocupou com o olhar do velho e prosseguiu. Cinco milhas mais adiante, encontrou um rancho que reconheceu imediatamente. As recordações que apareciam confusas na sua mente ganharam atualidade e definiram-se. Lembrou-se perfeitamente dos três corpos do rancho: o edifício central, ocupado por Pedro de Mejias, o da esquerda, pelos trabalhadores, e o da direita, destinado aos cavalos e ao gado.
Entrou no pátio delimitado pelas três construções. Um homem aproximou-se para tomar conta do seu cavalo.
— Está o dono do rancho? — perguntou.
— Não..., mas está a sua filha.
— Pois, diga a Clara que chegou Luís Kinsey. — É para já, senhor.
Luís desmontou e entregou o cavalo ao empregado, que o levou para a cavalariça, correndo logo a seguir para o edifício do rancho.
Momentos depois, apareceu uma rapariga na varanda central do edifício.
— Luís!... Que alegrial... Sobe, anda cá acima.
— Clarita! — exclamou ele, com um amplo sorriso.
E dirigiu-se para a entrada, seguido pelo mexicano, que se movia à sua volta, sem saber se devia adiantar-se¬-lhe para, lhe indicar o caminho ou ir atrás dele.
Luís encontrou-se com Clara na escada do edifício. A rapariga ficou quieta no alto dos degraus, sem saber que fazer, e o mesmo se passou com Luís, no piso inferior.
Havia doze anos que não se viam e a transformação tinha sido enorme.
Clarita deixara de ser uma miúda desengraçada e convertera-se numa mulher encantadora. A sua pele morena, os seus lábios rubros e frescos, os olhos grandes, negros e brilhantes, o cabelo farto caindo-lhe em ondas sobre os ombros, eram um autêntico hino de louvor à Natureza. Luís pensou que havia muito que não via uma mulher tão bela. E, de repente, aglomerou-se no seu cérebro uma infinidade de pensamentos.
— Pequena...—murmurou. — Como te transformaste!
— E tu, Luís! — retorquiu ela, desfeito já o gelo do primeiro momento e descendo a correr a escadaria, para se lançar nos braços do seu primo afastado.
Abraçaram-se.
— Clarita, pareces outra — murmurou Luís Kinsey. — Ninguém te reconheceria.
— Tu também mudaste.
— Mas, tu melhoraste.
— E tu também, Luís -- respondeu-lhe, a sorrir. Anda, sobe e vem beber qualquer coisa.
— Está bem. Há «tequila»?
— Ordenarei que ta vão buscar.
Entraram os dois na sala de jantar. Um criado mexicano pôs uma toalha sobre uma pequena mesa e depois entrou outro com uma bandeja, copos e uma garrafa de «tequila».
— Vejo que a vida lhes tem corrido bem — disse Luís, examinando a bandeja. — É de ouro.
— E os copos de cristal húngaro, importados, autênticos.
— É consolador verificar que alguém da família continua a viver bem. Pensava que lhes haviam tirado a maior parte do rancho quando se deu a queda de Maximiliano.
— E assim foi. O papá lutou pelo imperado e conseguiu salvar a vida. O que não se livrou foi de ver a fazenda repartida e desmantelada.
— Todavia, têm um ambiente de exceção. Móveis luxuosos, impróprias de um rancho, bandejas de ouro, criados... Um milagre.
— Não creias isso; não há milagre nenhum. O papá...
— Que é? Podes continuar — observou ele, ao ver que Clara não prosseguia no que ia a dizer.
— Não. Deixa lá, é a mesma coisa... Ele próprio te contará. Toma, bebe. É a melhor «tequila» que se pode encontrar no México.
Pegou no copo que a rapariga lhe oferecia e ergueu-o. — Por ti, Clara, que te tornaste maravilhosa.
A jovem ruborizou-se.
— Lembras-te? — continuou ele. — Foi há doze anos e, na realidade, dá-me a impressão de que tudo sucedeu ontem.
— Passaram doze anos, Luís, não te esqueças.
— Estás enganada. Passaram-se muitas coisas, mas não esqueci tudo aquilo.
A rapariga acercou-se da varanda que se alcandorava sobre o pátio.
— Éramos umas crianças, Luís... Hás-de compreender.
— Éramos sinceros, Clara. A vida ainda não nos havia pervertido, pelo menos a mim... Depois, aprendi a mentir e a dizer o que não penso, mas foi a sociedade que me obrigou a isso... Noutros tempos, há doze anos, falava verdade quando te disse...
A jovem olhou-o fixamente, ao ver que se interrompia. E foi ela que terminou a frase:
— Quando disseste que me querias, Luís... Já reparaste em que nessa altura eras uma criança?
— Também tu... Dizíamos ambos a verdade... Tu respondeste-me... lembras-te?
— Sim, foi uma garotice como qualquer outra. Brincávamos, corríamos, íamos a toda a parte juntos... E tu, para te fazeres homem, disseste que me amavas... E beijaste-me...
— Não me esqueci. E tu retribuíste-me o beijo... Que tempos aqueles, Clara!
— Já lá vão.
— Achas que sim? Eu não, Clara.
A voz de Luís era acariciante, suave. A sua mão apoiou-se no ombro da rapariga.
Por favor, Luís... Já passaram doze anos sobre tudo isso.
— E que importam os anos? O tempo não conta para certas coisas. Agora, ao ver-te de novo, dei-me conta' dessa verdade... Clara, aquela miudita foi o meu... primeiro amor, permite-me que to diga assim... O meu amor puro, límpido, digno... Continuas a ser tão bonita como para mim o eras então...
— Luís, por favor... Estás a dizer-me que...
— Que gosto de ti, Clara... Passei por Chipualta pari to dizer. Não queria ir para o Oeste sem primeiro voltar a ver-te, sem saber como te encontravas.
— Para o Oeste? Vais-te embora?
— Sim, tenho de ir?
— E as terras? E as casas?
— Tudo nas mãos dos credores, pequena... Não, não te ponhas triste. Tenho o que mereço. Não escutei conselhos de ninguém nem atentei no exemplo de José Iglésias. Também ele se arruinou por levar uma vida semelhante à minha, mas o seu exemplo não me fez mudar... Não me resta nada... Bem, ficaram-me os apelidos, mas para nada me servem.
— Arruinado?... Sem nada?
— Sim. Sobrou apenas um cavalo já cansado e um par de «Colts».
— E que pensas fazer?
— O Oeste é grande e ali pode-se começar uma vida nova. Farei qualquer coisa: jogar, certamente, ganhar dinheiro, comprar um rancho, criar gado...
— Parece impossível... A tua mãe deixou-te terras, ranchos, ninguém tentou apoderar-se de nada quando caiu o imperador Maximiliano...
-- Mas, eu vivi como ninguém no México. É justo que pague agora a minha desorganização.
— Luís, Luís, tu não o mereces.
— Mereço, sim. E agora chegou a hora de demonstrai que sirvo para alguma coisa. Se tenho algum préstimo, voltarei a fazer fortuna do outro lado do rio Grande.
— A fronteira proporciona inúmeras possibilidades. — Que queres dizer, Clara?
— O papá te dirá... Olha, ali vem ele. Efectivamente, um cavaleiro entrava naquele momento no pátio do rancho, seguido por outros três.
Um empregado aproximou-se de Pedro de Mejias e disse-lhe qualquer coisa. O rancheiro olhou para a varanda e, ao reconhecer Luís Kinsey, saltou do cavalo e dirigiu-se para o edifício.
—Primo Pedro! — exclamou o rapaz, indo ao seu encontro.
— Luís, filho!... Que' alegrial... Foi a melhor sur¬presa deste ano.
Abraçaram-se como velhos amigos. Na realidade, eram muito mais. Pedro de Mejias cuidara do pequeno Luís como de um filho, quando o pai, Arthur Kinsey, caíra crivado de balas. Sentia uma viva simpatia pelo rapaz, que nunca pudera dissimular.
— Como vai a tua vida, Luís? Anda, vamos tomar um copito de «tequila».
— Não, obrigado, Clarita já me ofereceu... As coisas têm-me corrido mal.
— Que dizes?
— Que as coisas vão mal, mas hão-de melhorar dentro de algum tempo, do outro lado do rio Grande.
— Vais partir? Vais para a União?
— Sim, é uma necessidade.
— E o património dos Acertes y Mejias?
— Voou... Já não é meu nem pertenço à família. Vou trabalhar para a União.
Pedro bebeu o líquido do copo e ficou a olhar para a filha. Depois, como se lhe ocorresse uma ideia, ordenou:
— Clara, vai à cozinha e vê se a comida está a ser bem preparada. Luís está acostumado a comer bem.
A rapariga compreendeu o que o pai queria dizer abandonou a sala.
Quando os dois homens ficaram sós, Pedro disse:
— Já sabes que a maior parte das minhas terras foi confiscada pelo Governo, em represália à minha atuação a favor do imperador.
— Sim, eu sei.
— E consegui salvar a cabeça, com o que me dou por muito satisfeito... Suponho que viste o luxo com que montei de novo o meu rancho e deves ter reparado cm que nada me falta.
— Sim. As terras...
— Não há terras, Luís. Quase não dão o suficiente para se comer. O que há é outra coisa. Escuta... — O dono do rancho deitou mais «tequila» no copo e continuou: — Quando Maximiliano caiu, os seus pesos de prata deixaram de ter valor e o Estado tratou de trocá-los por papel-moeda. Concedeu-se um prazo de cinco dias para a troca, mas muita gente ficou com os pesos no bolso, sem se precatar de que haviam perdido o valor. Asseguro-te que por estas povoações dos arredores, a(, longo de toda a fronteira, muitos trabalhadores verificaram que as suas economias, às vezes produto de uma vida inteira, ficaram reduzidas a nada, um montão de prata que ninguém queria nem quer, pois fundi-la é punido com pena de prisão... Foi então que me ocorreu a ideia de levar os pesos a um sítio onde tivessem valor. Se no México não valiam, na União, do outro lado do rio Grande, a prata continuava a ser prata e, além disso, com um valor superior ao de aqui. Suponho que não sabes que lá a prata tem um preço oficial, superior ao do México.
— Ignorava-o.
— Pois, é assim. Tenta-se manter um equilíbrio económico com os outros metais preciosos, dando-lhes por vezes um valor fictício a qualquer deles. Com a prata sucede isso. Oficialmente, tem um valor superior, para evitar que as empresas mineiras de exploração de prata fiquem desertas e os trabalhadores se lancem na pesquisa do ouro... Quer dizer, se consigo passar a prata, que compro ao preço legal que teve durante cinco dias, fazendo um favor a todos, do outro lado vendo-a a um preço superior, com um lucro de trinta por cento. Recebo ouro, dólares em ouro, que aqui se fazem fundir em lingotes, e encontro¬-lhe fácil saída na capital... Estou certo de que mais de um dos que me compram lingotes são teus conhecidos do clube «Novo México».
— Com certeza. Há lá muitos desavergonhados que compram ouro de contrabando... de contrabando = repisou.
— É verdade, sou um contrabandista, mas creio que não causo mal a ninguém. Limito-me a trocar o que já para nada serve e a pagá-lo com moeda oficial.
— Não deixa de ser uma fraude ao Governo, primo Pedro.
— O Governo que nos rege agora não nos merece essa consideração. Porquê preocuparmo-nos com isso?
Luís Kinsey não respondeu. Limitou-se a encher outro copo de «tequila» e aproximou-se da varanda.
— Que te parece? — insistiu o rancheiro.
— Quase inacreditável — murmurou Luís. — Pedro de Mejias a fazer contrabando.
— É preciso viver, filho... Depois de amanhã, partirei para fazer a última viagem. Estou cansado, esgotado, velho... E a verdade é que cada vez é mais difícil encontrar pesos de prata. Para reunir o próximo carregamento necessitei de três semanas. Os meus homens foram busca os pesos às povoações mais afastadas... Pensei que talvez estivesses interessado.
— Em fazer contrabando?
— Sim... apresentar-te-ei aos homens que do outro lado da fronteira me esperam para comprar a prata a um preço que para eles é vantajoso, e travarás conhecimento com os que compram o ouro no México.
Luís não respondeu. Bebeu a «tequila» lentamente, pensando na proposta que acabavam de lhe fazer e, quando falou, estava já decidido.
— Não me interessa — disse. — Prefiro outra coisa, qualquer vida mais emocionante. Na União, os homens vivem de uma forma mais violenta... Talvez seja a seu sação do perigo que me faça deixar a minha pátria.
— Ah! Ah! Ah! Falta de perigo, dizes...! Ah! Ah! Ah!... Não creias que a minha rota seja um mar de rosas. Temos de atravessar o rio Grande, de percorrer sessenta milhas em duas noites, esconder-nos de dia e vigiar constantemente. Os polícias rurais percorrem a fronteira sem descanso... E há os outros.
— Os outros?
— Sim. Supondo que desconheces a espécie de vida que José Iglésias leva.
— José Iglésias?... Que quer dizer? Que tem ele a ver com tudo isto?
— Muito mais do que tu pensas.
— É impossível. Por José Iglésias, poria a mão no fogo com a certeza de não me queimar.
— Os homens dele fariam o mesmo.
— Os homens dele?... Tem homens sob as suas ordens?
— Sim, os mais ferozes da região, os mais indisciplinados, os mais brutais e valentes. José Iglésias converteu-se no terror da fronteira.
— Não pode ser... — murmurou Luís, num fio de voz. — José não pode ser um ladrão.
— Sinto muito dizer-to, Luís, mas, além de ladrão, é também um assassino... Tu conhecia-lo perfeitamente, melhor que ninguém, e sabes que partiu porque estava arruinado. Fez o mesmo que tu pensas fazer e estou certo de que também lhe agradavam as emoções... Mas, escorregou pela vertente do mal e agora dedica-se a assaltar os contrabandistas, a roubar gado e a passá-lo para o México. É um verdadeiro diabo. Chegou a trazer reses da União, esperar que o rancheiro a quem as vendia as tivesse marcado, roubá-las a este, passá-las para o outro lado da fronteira e vendê-las ao que primeiramente fora roubado, que voltava a marcá-las, por seu turno. Todos se calavam, visto que compravam reses roubadas, o que era ilegal. Estás a ver o negócio!
— Não pode ser ele... É o meu melhor amigo, o meu grande amigo... Criei-me ao lado dele, prosperei com ele... José Iglésias não pode ser assassino.
— Enganas-te... É o homem mais perigoso da fronteira e o que eu mais temo. Sinceramente, respirarei tranquilo quando voltar ao rancho depois da expedição... E tinha pensado que tu, dada a vossa amizade, poderias continuar o contrabando...
— Não, não posso... Nem quero enfrentar-me com José Iglésias. Seria incapaz de empunhar as armas contra ele.
— Portanto, não queres vir.
— Atrai-me o Oeste, mas não o contrabandear carregamentos de prata.
— Posso pedir-te um favor?
— Sim.
— Fica aqui até ao meu regresso. Parto com vim homens e isto ficará quase abandonado. Prefiro que Clara esteja com alguém que possa defendê-la se suceder qualquer coisa.
— Está bem. Ninguém me espera lá e posso chegar quando quiser.
Pedro de Mejias passou familiarmente o seu braço pelo ombro de Luís Kinsey e desceram juntos ao pátio. Ali, encontraram Clara.
— Lembravas-te dela, Luís? — perguntou o rancheiro.
— Sim, primo Pedro... Muitas vezes — foi a resposta que recebeu.
E era a verdade, uma verdade que mais tarde enfrentaria tragicamente no seu destino.
Montava um cavalo de estampa não muito elegante e levava um cinturão-cartucheira com dois «Colts». Vestia um trajo de cavaleiro mexicano e cobria a cabeça com um amplo chapéu. Era toda a sua fortuna. Restavam-lhe duzentos pesos e com eles esperava chegar até ao Novo México ou ao Texas, do outro lado do rio Grande.
Não tinha pressa. Antes de abandonar definitivamente o México, queria visitar o rancho de Pedro de Mejias, primo da sua mãe, um homem que rondava os cinquenta anos, proprietário de um grande rancho contíguo à fronteira, em Chipualta, uma povoação que outrora fora ocupada pelos incas.
Demorou dois dias em chegar. Tinha estado ali havia anos, quando contava treze, pouco tempo antes da queda do imperador Maximiliano (1).
(1) Referência a Fernando 7osé Maximiliano, arquiduque de Áustria, que, em seguida à invasão do México pelos franceses, foi nomeado imperador deste país em 1864. Impopular, abandonado por Napoleão II em 1867, foi preso e fuzilado. (N. do T.).
Recordava Pedro de Mejias como um homem afável e muito simples de trato, que o apreciava sinceramente. E também se lembrava da filha, uma garota desajeitada quando ele a conhecera, que se chamava Clara.
Agradava-lhe a ideia de passar por ali antes de entrar na União.
Quando chegou a Chipualta, não fazia a menor ideia do sítio onde se encontrava o rancho. Perguntou a um mexicano velho, que fumava um cigarro escuro e pestilento, à sombra de um alpendre. O mexicano fitou-o inquisidoramente antes de responder e, quando o fez, foi com lentidão.
— Pedro de Mejias tem o rancho a cinco milhas, seguindo o caminho de saída para a União.
Luís Kinsey não se preocupou com o olhar do velho e prosseguiu. Cinco milhas mais adiante, encontrou um rancho que reconheceu imediatamente. As recordações que apareciam confusas na sua mente ganharam atualidade e definiram-se. Lembrou-se perfeitamente dos três corpos do rancho: o edifício central, ocupado por Pedro de Mejias, o da esquerda, pelos trabalhadores, e o da direita, destinado aos cavalos e ao gado.
Entrou no pátio delimitado pelas três construções. Um homem aproximou-se para tomar conta do seu cavalo.
— Está o dono do rancho? — perguntou.
— Não..., mas está a sua filha.
— Pois, diga a Clara que chegou Luís Kinsey. — É para já, senhor.
Luís desmontou e entregou o cavalo ao empregado, que o levou para a cavalariça, correndo logo a seguir para o edifício do rancho.
Momentos depois, apareceu uma rapariga na varanda central do edifício.
— Luís!... Que alegrial... Sobe, anda cá acima.
— Clarita! — exclamou ele, com um amplo sorriso.
E dirigiu-se para a entrada, seguido pelo mexicano, que se movia à sua volta, sem saber se devia adiantar-se¬-lhe para, lhe indicar o caminho ou ir atrás dele.
Luís encontrou-se com Clara na escada do edifício. A rapariga ficou quieta no alto dos degraus, sem saber que fazer, e o mesmo se passou com Luís, no piso inferior.
Havia doze anos que não se viam e a transformação tinha sido enorme.
Clarita deixara de ser uma miúda desengraçada e convertera-se numa mulher encantadora. A sua pele morena, os seus lábios rubros e frescos, os olhos grandes, negros e brilhantes, o cabelo farto caindo-lhe em ondas sobre os ombros, eram um autêntico hino de louvor à Natureza. Luís pensou que havia muito que não via uma mulher tão bela. E, de repente, aglomerou-se no seu cérebro uma infinidade de pensamentos.
— Pequena...—murmurou. — Como te transformaste!
— E tu, Luís! — retorquiu ela, desfeito já o gelo do primeiro momento e descendo a correr a escadaria, para se lançar nos braços do seu primo afastado.
Abraçaram-se.
— Clarita, pareces outra — murmurou Luís Kinsey. — Ninguém te reconheceria.
— Tu também mudaste.
— Mas, tu melhoraste.
— E tu também, Luís -- respondeu-lhe, a sorrir. Anda, sobe e vem beber qualquer coisa.
— Está bem. Há «tequila»?
— Ordenarei que ta vão buscar.
Entraram os dois na sala de jantar. Um criado mexicano pôs uma toalha sobre uma pequena mesa e depois entrou outro com uma bandeja, copos e uma garrafa de «tequila».
— Vejo que a vida lhes tem corrido bem — disse Luís, examinando a bandeja. — É de ouro.
— E os copos de cristal húngaro, importados, autênticos.
— É consolador verificar que alguém da família continua a viver bem. Pensava que lhes haviam tirado a maior parte do rancho quando se deu a queda de Maximiliano.
— E assim foi. O papá lutou pelo imperado e conseguiu salvar a vida. O que não se livrou foi de ver a fazenda repartida e desmantelada.
— Todavia, têm um ambiente de exceção. Móveis luxuosos, impróprias de um rancho, bandejas de ouro, criados... Um milagre.
— Não creias isso; não há milagre nenhum. O papá...
— Que é? Podes continuar — observou ele, ao ver que Clara não prosseguia no que ia a dizer.
— Não. Deixa lá, é a mesma coisa... Ele próprio te contará. Toma, bebe. É a melhor «tequila» que se pode encontrar no México.
Pegou no copo que a rapariga lhe oferecia e ergueu-o. — Por ti, Clara, que te tornaste maravilhosa.
A jovem ruborizou-se.
— Lembras-te? — continuou ele. — Foi há doze anos e, na realidade, dá-me a impressão de que tudo sucedeu ontem.
— Passaram doze anos, Luís, não te esqueças.
— Estás enganada. Passaram-se muitas coisas, mas não esqueci tudo aquilo.
A rapariga acercou-se da varanda que se alcandorava sobre o pátio.
— Éramos umas crianças, Luís... Hás-de compreender.
— Éramos sinceros, Clara. A vida ainda não nos havia pervertido, pelo menos a mim... Depois, aprendi a mentir e a dizer o que não penso, mas foi a sociedade que me obrigou a isso... Noutros tempos, há doze anos, falava verdade quando te disse...
A jovem olhou-o fixamente, ao ver que se interrompia. E foi ela que terminou a frase:
— Quando disseste que me querias, Luís... Já reparaste em que nessa altura eras uma criança?
— Também tu... Dizíamos ambos a verdade... Tu respondeste-me... lembras-te?
— Sim, foi uma garotice como qualquer outra. Brincávamos, corríamos, íamos a toda a parte juntos... E tu, para te fazeres homem, disseste que me amavas... E beijaste-me...
— Não me esqueci. E tu retribuíste-me o beijo... Que tempos aqueles, Clara!
— Já lá vão.
— Achas que sim? Eu não, Clara.
A voz de Luís era acariciante, suave. A sua mão apoiou-se no ombro da rapariga.
Por favor, Luís... Já passaram doze anos sobre tudo isso.
— E que importam os anos? O tempo não conta para certas coisas. Agora, ao ver-te de novo, dei-me conta' dessa verdade... Clara, aquela miudita foi o meu... primeiro amor, permite-me que to diga assim... O meu amor puro, límpido, digno... Continuas a ser tão bonita como para mim o eras então...
— Luís, por favor... Estás a dizer-me que...
— Que gosto de ti, Clara... Passei por Chipualta pari to dizer. Não queria ir para o Oeste sem primeiro voltar a ver-te, sem saber como te encontravas.
— Para o Oeste? Vais-te embora?
— Sim, tenho de ir?
— E as terras? E as casas?
— Tudo nas mãos dos credores, pequena... Não, não te ponhas triste. Tenho o que mereço. Não escutei conselhos de ninguém nem atentei no exemplo de José Iglésias. Também ele se arruinou por levar uma vida semelhante à minha, mas o seu exemplo não me fez mudar... Não me resta nada... Bem, ficaram-me os apelidos, mas para nada me servem.
— Arruinado?... Sem nada?
— Sim. Sobrou apenas um cavalo já cansado e um par de «Colts».
— E que pensas fazer?
— O Oeste é grande e ali pode-se começar uma vida nova. Farei qualquer coisa: jogar, certamente, ganhar dinheiro, comprar um rancho, criar gado...
— Parece impossível... A tua mãe deixou-te terras, ranchos, ninguém tentou apoderar-se de nada quando caiu o imperador Maximiliano...
-- Mas, eu vivi como ninguém no México. É justo que pague agora a minha desorganização.
— Luís, Luís, tu não o mereces.
— Mereço, sim. E agora chegou a hora de demonstrai que sirvo para alguma coisa. Se tenho algum préstimo, voltarei a fazer fortuna do outro lado do rio Grande.
— A fronteira proporciona inúmeras possibilidades. — Que queres dizer, Clara?
— O papá te dirá... Olha, ali vem ele. Efectivamente, um cavaleiro entrava naquele momento no pátio do rancho, seguido por outros três.
Um empregado aproximou-se de Pedro de Mejias e disse-lhe qualquer coisa. O rancheiro olhou para a varanda e, ao reconhecer Luís Kinsey, saltou do cavalo e dirigiu-se para o edifício.
—Primo Pedro! — exclamou o rapaz, indo ao seu encontro.
— Luís, filho!... Que' alegrial... Foi a melhor sur¬presa deste ano.
Abraçaram-se como velhos amigos. Na realidade, eram muito mais. Pedro de Mejias cuidara do pequeno Luís como de um filho, quando o pai, Arthur Kinsey, caíra crivado de balas. Sentia uma viva simpatia pelo rapaz, que nunca pudera dissimular.
— Como vai a tua vida, Luís? Anda, vamos tomar um copito de «tequila».
— Não, obrigado, Clarita já me ofereceu... As coisas têm-me corrido mal.
— Que dizes?
— Que as coisas vão mal, mas hão-de melhorar dentro de algum tempo, do outro lado do rio Grande.
— Vais partir? Vais para a União?
— Sim, é uma necessidade.
— E o património dos Acertes y Mejias?
— Voou... Já não é meu nem pertenço à família. Vou trabalhar para a União.
Pedro bebeu o líquido do copo e ficou a olhar para a filha. Depois, como se lhe ocorresse uma ideia, ordenou:
— Clara, vai à cozinha e vê se a comida está a ser bem preparada. Luís está acostumado a comer bem.
A rapariga compreendeu o que o pai queria dizer abandonou a sala.
Quando os dois homens ficaram sós, Pedro disse:
— Já sabes que a maior parte das minhas terras foi confiscada pelo Governo, em represália à minha atuação a favor do imperador.
— Sim, eu sei.
— E consegui salvar a cabeça, com o que me dou por muito satisfeito... Suponho que viste o luxo com que montei de novo o meu rancho e deves ter reparado cm que nada me falta.
— Sim. As terras...
— Não há terras, Luís. Quase não dão o suficiente para se comer. O que há é outra coisa. Escuta... — O dono do rancho deitou mais «tequila» no copo e continuou: — Quando Maximiliano caiu, os seus pesos de prata deixaram de ter valor e o Estado tratou de trocá-los por papel-moeda. Concedeu-se um prazo de cinco dias para a troca, mas muita gente ficou com os pesos no bolso, sem se precatar de que haviam perdido o valor. Asseguro-te que por estas povoações dos arredores, a(, longo de toda a fronteira, muitos trabalhadores verificaram que as suas economias, às vezes produto de uma vida inteira, ficaram reduzidas a nada, um montão de prata que ninguém queria nem quer, pois fundi-la é punido com pena de prisão... Foi então que me ocorreu a ideia de levar os pesos a um sítio onde tivessem valor. Se no México não valiam, na União, do outro lado do rio Grande, a prata continuava a ser prata e, além disso, com um valor superior ao de aqui. Suponho que não sabes que lá a prata tem um preço oficial, superior ao do México.
— Ignorava-o.
— Pois, é assim. Tenta-se manter um equilíbrio económico com os outros metais preciosos, dando-lhes por vezes um valor fictício a qualquer deles. Com a prata sucede isso. Oficialmente, tem um valor superior, para evitar que as empresas mineiras de exploração de prata fiquem desertas e os trabalhadores se lancem na pesquisa do ouro... Quer dizer, se consigo passar a prata, que compro ao preço legal que teve durante cinco dias, fazendo um favor a todos, do outro lado vendo-a a um preço superior, com um lucro de trinta por cento. Recebo ouro, dólares em ouro, que aqui se fazem fundir em lingotes, e encontro¬-lhe fácil saída na capital... Estou certo de que mais de um dos que me compram lingotes são teus conhecidos do clube «Novo México».
— Com certeza. Há lá muitos desavergonhados que compram ouro de contrabando... de contrabando = repisou.
— É verdade, sou um contrabandista, mas creio que não causo mal a ninguém. Limito-me a trocar o que já para nada serve e a pagá-lo com moeda oficial.
— Não deixa de ser uma fraude ao Governo, primo Pedro.
— O Governo que nos rege agora não nos merece essa consideração. Porquê preocuparmo-nos com isso?
Luís Kinsey não respondeu. Limitou-se a encher outro copo de «tequila» e aproximou-se da varanda.
— Que te parece? — insistiu o rancheiro.
— Quase inacreditável — murmurou Luís. — Pedro de Mejias a fazer contrabando.
— É preciso viver, filho... Depois de amanhã, partirei para fazer a última viagem. Estou cansado, esgotado, velho... E a verdade é que cada vez é mais difícil encontrar pesos de prata. Para reunir o próximo carregamento necessitei de três semanas. Os meus homens foram busca os pesos às povoações mais afastadas... Pensei que talvez estivesses interessado.
— Em fazer contrabando?
— Sim... apresentar-te-ei aos homens que do outro lado da fronteira me esperam para comprar a prata a um preço que para eles é vantajoso, e travarás conhecimento com os que compram o ouro no México.
Luís não respondeu. Bebeu a «tequila» lentamente, pensando na proposta que acabavam de lhe fazer e, quando falou, estava já decidido.
— Não me interessa — disse. — Prefiro outra coisa, qualquer vida mais emocionante. Na União, os homens vivem de uma forma mais violenta... Talvez seja a seu sação do perigo que me faça deixar a minha pátria.
— Ah! Ah! Ah! Falta de perigo, dizes...! Ah! Ah! Ah!... Não creias que a minha rota seja um mar de rosas. Temos de atravessar o rio Grande, de percorrer sessenta milhas em duas noites, esconder-nos de dia e vigiar constantemente. Os polícias rurais percorrem a fronteira sem descanso... E há os outros.
— Os outros?
— Sim. Supondo que desconheces a espécie de vida que José Iglésias leva.
— José Iglésias?... Que quer dizer? Que tem ele a ver com tudo isto?
— Muito mais do que tu pensas.
— É impossível. Por José Iglésias, poria a mão no fogo com a certeza de não me queimar.
— Os homens dele fariam o mesmo.
— Os homens dele?... Tem homens sob as suas ordens?
— Sim, os mais ferozes da região, os mais indisciplinados, os mais brutais e valentes. José Iglésias converteu-se no terror da fronteira.
— Não pode ser... — murmurou Luís, num fio de voz. — José não pode ser um ladrão.
— Sinto muito dizer-to, Luís, mas, além de ladrão, é também um assassino... Tu conhecia-lo perfeitamente, melhor que ninguém, e sabes que partiu porque estava arruinado. Fez o mesmo que tu pensas fazer e estou certo de que também lhe agradavam as emoções... Mas, escorregou pela vertente do mal e agora dedica-se a assaltar os contrabandistas, a roubar gado e a passá-lo para o México. É um verdadeiro diabo. Chegou a trazer reses da União, esperar que o rancheiro a quem as vendia as tivesse marcado, roubá-las a este, passá-las para o outro lado da fronteira e vendê-las ao que primeiramente fora roubado, que voltava a marcá-las, por seu turno. Todos se calavam, visto que compravam reses roubadas, o que era ilegal. Estás a ver o negócio!
— Não pode ser ele... É o meu melhor amigo, o meu grande amigo... Criei-me ao lado dele, prosperei com ele... José Iglésias não pode ser assassino.
— Enganas-te... É o homem mais perigoso da fronteira e o que eu mais temo. Sinceramente, respirarei tranquilo quando voltar ao rancho depois da expedição... E tinha pensado que tu, dada a vossa amizade, poderias continuar o contrabando...
— Não, não posso... Nem quero enfrentar-me com José Iglésias. Seria incapaz de empunhar as armas contra ele.
— Portanto, não queres vir.
— Atrai-me o Oeste, mas não o contrabandear carregamentos de prata.
— Posso pedir-te um favor?
— Sim.
— Fica aqui até ao meu regresso. Parto com vim homens e isto ficará quase abandonado. Prefiro que Clara esteja com alguém que possa defendê-la se suceder qualquer coisa.
— Está bem. Ninguém me espera lá e posso chegar quando quiser.
Pedro de Mejias passou familiarmente o seu braço pelo ombro de Luís Kinsey e desceram juntos ao pátio. Ali, encontraram Clara.
— Lembravas-te dela, Luís? — perguntou o rancheiro.
— Sim, primo Pedro... Muitas vezes — foi a resposta que recebeu.
E era a verdade, uma verdade que mais tarde enfrentaria tragicamente no seu destino.
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