O rumor na praça cresceu de forma alarmante. Cris-per, que observava através da estreita janelinha, informou:
— Os homens de Salinger abandonaram o «saloon», xerife.
O corpulento Danielson fez um enérgico movimento e destravou o «Sharp». O seco estalido da mola obrigou a estremecer os seis ocupantes do gabinete.
— O demónio com chifres de vaca! — exclamou o velho Dan. — Não decorrerá muito tempo sem que se atirem contra essa porta.
Nenhum comentário acolheu a sua declaração.
Na sala penetrava ainda uma difusa claridade avermelhada, dentro da qual flutuavam os rostos dos defensores, tensos, vigilantes...
— Ainda tens tempo de sair, Sue — rompeu o silêncio a voz forte do xerife.
A interpelada olhou naquela direção. As pupilas, dilatadas pela escassa luz crepuscular, assemelhavam-se a dois poços negros, em contraste com o cinzento claro, quase prateado, da íris.
— Você sabe que não sairei, Danielson. — A sua voz rouca era, não obstante, agradável como o ronronar de um gato. — Não tenho mais ninguém além de meu irmão Ben e transporemos ambos a entrada do inferno, mas não sem que antes dele vão adiante de mim vários linchadores.
O grunhido do xerife mostrava que este aprovava aquela decisão. Conhecia a têmpera da rapariga, tão capaz de enfrentar um urso nas montanhas como de preparar comida para cem homens ou de conduzir uma manada de gado.
— Nesse caso, dançaremos todos ao som dessa música — disse.
Lá fora, o grupo de trabalhadores do rancho «Campana», os temíveis homens de Salinger, juntavam-se ao grupo de cidadãos de Marte, entre os quais se confundiam alguns vaqueiros de outros ranchos.
Um vento ligeiro levantava o pó e fazia remoinhar as folhas secas dos gigantescos olmos que adornavam o centro da praça. O horizonte, no extremo da ampla rua principal, onde se erguiam as cavalariças de Malden, dava a impressão de uma enorme caldeira de cobre posta sobre uma fogueira.
— O xerife quer arrebatar-nos esse porco do Ben Kunetzky — perorava o moço do hotel «Marte», um magricela de cabeça grande que parecia um pinto a sair da casca devido à forma como penteava o seu escasso cabelo negro sobre a calva. — Todos sabemos que foi ele quem matou o velho Potter e raptou sua filha Rosy. Não? Não o encontraram no dia seguinte a dormir no desfiladeiro perto da cabana de Potter, com manchas de sangue e um lenço de Rosy entre os dedos?
Tinha os olhos salientes, bulbosos, o que aumentava a sensação de ser constituído por duas metades.
— Mas Ben assegurou que ao entrar na cabana na noite anterior já encontrou Potter agonizante — ouviu-se protestar timidamente.
Rebentaram várias expressões duras, ferozes, na atmosfera.
— Rapazes! — galvanizou todos a voz aguda de Curly, capataz de Salinger. — Deixemo-nos de frioleiras. Kunetzky é culpado. Nem uma vaca doente de mormo duvidaria disso. O que temos de impedir é a sua transferência.
— Enforquemo-lo! — gritou um dos seus companheiros.
E do conjunto de gargantas, abafadas as consciências pelo álcool e pelo tabaco, brotou um imponente rugido. A reunião ganhara adeptos e já quase enchia por completo o espaço fronteiro ao edifício da cadeia e do escritório do xerife.
— Isso! Acabemos de uma vez! Vamos buscar Kunetzky!
A estranha combinação de medo e crueldade que dá lugar aos linchamentos teve origem no centro da massa de povo enfurecido e propagou-se rapidamente em todas as direções.
Os componentes do «Campana» manobraram de modo que o aríete humano fosse parar diretamente sobre a porta defendida por Danielson e pelos seus. Partiram alguns tiros contra as janelas.
O criado do hotel viu-se erguido e atirado como que por uma onda e bateu com o rosto convulso contra a ombreira da porta. Fortes ombros de lenhadores, vaqueiros, ferreiros e seleiros, fizeram estalar a madeira.
De dentro do escritório chegou o aviso de Danielson:
— Dispararei contra qualquer que transpuser a porta!
Mas eram palavras inúteis, que serviram, contrariamente ao seu desejo, para ativar os atacantes.
Produziu-se um recuo para, em seguida, repetir-se a carga. A porta era forte, de carvalho, atravessada por barras de ferro, e resistiria a numerosos embates, ainda que no final acabasse por ceder.
— A ele! Queremos Kunetzky! Entregue-no-lo, xerife, ou enforcaremos todos!
Eram gritos roucos, mais próprios de feras do que de pessoas. A linha vermelha do horizonte parecia de sangue, e o vento aumentou de intensidade, envolvendo em remoinhos as figuras atacantes, que se enegreciam e perdiam os contornos.
— Rezem a última oração, filhos. — O xerife pronunciou estas palavras com certa melancolia. — Lamento-o por ti, Sue.
Lá dentro, a obscuridade era maior, até quase se não ver mais do que um débil fulgor onde estavam as caras.
— Acendemos a luz, xerife? — inquiriu, hesitante, «Knap» Jim, o primeiro ajudante, cujo sobrenome lhe provinha do enorme tumor que lhe deformava a cabeça.
— Para quê? Servirá unicamente para que nos vejam e não falhem os primeiros tiros. Pelo menos, conservaremos essa vantagem.
Ruim vantagem. Slocun, o outro ajudante, começou a rir, ao princípio baixinho, depois histericamente.
— Cala-te! — berrou Dan. — Escolheste mau momento para rir.
— E por que não... por que não? — ouviu-se o jovem dizer entre as gargalhadas. Haverá coisa mais divertida? Seis pessoas, uma das quais mulher, esperam aguentar a investida de duzentos loucos...
— Defendemos a Justiça — recordou Danielson.
Slocun calou-se subitamente. E continuou um profundo silêncio, no qual, por contraste, cresceu a gritaria exterior.
— Maldita seja! — Agora o acento do jovem tornara-se duro, mordente. — Que Justiça? Por que está tão certo de que Ben se encontra inocente?
— Eu não disse isso, Slocun. Mas há-de ser um juiz e um júri que ditarão a sentença. É isso que eu defendo.
De novo o silêncio. As pancadas sucediam-se da parte de fora e retumbavam nas paredes.
— Pois sabe o que lhe digo, Danielson? — rasgou as trevas a palavra do ajudante. — Ben. não merece que nos deixemos matar. Não, maldito seja, não merece!
Acrescentou com maior ferocidade:
— Você sabe, sabemo-lo todos, que não passa de um vagabundo, de um beberrão e de um zaragateiro. Quando tinha quinze anos, roubou o pai e deixou a família na miséria. E no regresso de gastar o dinheiro nas cidades da costa, não foi melhor...
Interrompeu-o a voz apaixonada de Sue:
— Estúpido patas compridas! — rebentou. — Que sabes a respeito do meu irmão? É melhor do que tu, como já o demonstrou mil vezes...
Mas teve de calar-se por seu turno, porque aumentavam as pancadas e um objeto duro, a ponta de uma viga, trespassou a folha de madeira. Crisper fez fogo contra aquela primeira aparição.
— Não desperdices as balas advertiu-o Danielson. — E tu, Slocun, fecha essa maldita boca. Devias ter pensado mais cedo, se não querias ficar connosco.
Sentiu-se o rápido movimento que fez Slocun ao saltar do sítio que ocupava.
— Não ficarei aqui, xerife! Quero sair! Entende? E se lhe resta alguma coisa de senso comum, deve...
Colocara-se no meio da casa. E possivelmente teria proferido um brilhante discurso se Danielson não lho tivesse impedido com um formidável direto que o atingiu em pleno queixo.
As duzentas libras de peso do ajudante estatelaram-se contra a mesa que empurrou até à parede do fundo.
O xerife não teve tempo de ocupar-se dele. Uma tremenda pancada fizera saltar uma tábua e partira a barra de ferro que a defendia. Um par de canos de carabina surgiram pelas brechas.
O «Sharp» do representante da Lei entrou em ação e os ameaçadores tubos de aço desapareceram.
Mas aquilo era o fim, sem dúvida nenhuma. Sue deslizou para junto de Danielson e apoiou-lhe uma das mãos no braço, que lhe pareceu forte como um tronco de carrasqueiro.
— Obrigada, xerife — sussurrou. — Ainda que não tenha servido para nada... obrigada.
Esperaram a acometida definitiva. Lá fora, dava a impressão de que se calavam os gritos, talvez por se aperceberem, também, de que estavam prestes a alcançar os seus propósitos.
— «Knap» — ressoou estranhamente lúgubre a voz de Danielson — vai à cela e liberta Ben Kunetzky.
— Mas, xerife...
— Faz o que te digo. Já que temos de cair todos para defendê-lo, dêmos-lhe o direito de participar na contenda.
«Knap» obedeceu com lentidão. E tropeçou no corpo tombado de Slocun que começava a mexer-se. Ajudou-o a aguentar-se nas pernas vacilantes e dispunha-se a enfiar pelo corredor que levava às celas quando um excitado grito de Crisper o deteve.
— Eh, xerife, passa-se qualquer coisa lá fora! Retiraram-se da porta.
Era incrível, mas, com efeito, assim sucedera. Danielson colocou-se junto de Crisper e espreitou.
Afastavam-se em direção aos olmos. No cinzento-azulado que saturava o ar, pareciam fantasmas. Justamente naquele momento acenderam-se as luzes do «saloon» e o seu resplendor afastou, em parte, as sombras.
A atenção dos aspirantes a linchadores concentrava-se em dois homens, um deles muito alto, quase uma cabeça mais do que o outro, e de contextura ciclópica.
— É Durry «Seis Dedos» — comentou Crisper.
— Sim. E se a vista não me falha, fala com o velho Salinger. Hum! Que diabo estarão a tramar?
Não levou muito tempo a descobrir. Durry e Salinger puseram-se a caminho do escritório. Os outros abriram-lhes passagem e seguiram-nos.
— Acende agora a luz, «Knap» — pediu Danielson. — Parece-me que vamos ter visitas.
— Não se fie nesse patife, xerife — preveniu-o Dan.
— Não, não me fio. Mas «Seis Dedos» não é homem que se preste a uma fraude.
«Knap» Jim pegou no candeeiro de petróleo e chegou-lhe um fósforo. A súbita iluminação fez pestanejar todos. Contemplaram Slocun, que se deixara cair sobre uma cadeira e olhava em frente, com sombria fixidez.
Igualmente se descobriu que Sue estivera a chorar... A jovem, alta, loura, imponente como uma valquíria, tinha os olhos vermelhos, mas a sua resolução não afrouxara.
O xerife levantou uma das mãos e estendeu a orelha para a porta.
— Bob! — ouviu-se através da madeira estilhaçada. — Sou Salinger. Durry «Seis Dedos» e eu desejamos falar-te.
— Diz o que queres daí, Mosy.
— Vamos, Bob; assim não. Queremos parlamentar. E dou-te a minha palavra de que ninguém tentará nada contra Kunetzky... se acederes ao que vou propor-te.
O xerife deitou um olhar circular aos seus companheiros. Crisper, Dan 'e «Knap» fizeram um gesto de assentimento. Sue parecia presa de grande ansiedade, mas não procurou opor-se.
— Bom — rezingou Danielson. — Que me leve o diabo... Eh, Durry! Que dizes tu? Garantes que não é uma esperteza para se apoderarem de Ben?
A voz curiosamente aguda, quase infantil, do homenzarrão, penetrou pelas frestas do carvalho estilhaçado.
— Podes abrir, xerife. Eu não te engano.
O xerife decidiu-se. Inclinou a carabina para o chão e com a mão esquerda açoitou, o ar para indicar a «Knap» que abrisse.
— Só deixarei entrar os dois — declarou. — E juro--lhes que os farei em picado se tentarem alguma suja jogada.
«Knap», com um tremor impossível de vencer nas mãos, retirou o ferrolho e deu volta à enorme. chave. A porta abriu-se e pôs a descoberto os dois visitantes.
Salinger deu um passo em frente, ao mesmo tempo que distendia os lábios num sorriso.
— Bob — articulou com o seu sonoro, claro timbre nortenho —, a minha opinião é que te portas como um néscio não permitindo que se faça justiça rápida, ao uso daqui. Mas seria monstruoso que alguém mais pagasse com a vida a tua obstinação.
— Um bonito discurso... para as próximas eleições — replicou o xerife. — Qual é a tua proposta?
O sorriso de Sallinger dissolveu-se tão rapidamente como um raio de sol no Inverno. O seu rosto enérgico fechou-se, proporcionando-lhe o inflexível e agressivo aspeto que constituía a sua divisa.
— Está bem, Bob. Não é por ti, mas sim por Durry, que me dou a este trabalho. Ele quer jogar limpo, como um cavalheiro. Assim, far-se-á o julgamento. Mas para que tudo seja imparcial, o júri será escolhido por uma comissão de cidadãos presidida por mim. E quanto ao juiz, para já não será Hamilton, que se baba quando vê passar essa rapariga, Sue.
— Quem, então?
— Pois... o mais indicado. Um homem sem prejuízos, independente e recto. Morice Bornac.
Um tique alterou a face do xerife, o qual não se admirou que Sue se adiantasse até colocar-se a seu lado e exclamasse:
— Você é um porco, Salinger!
— Os homens de Salinger abandonaram o «saloon», xerife.
O corpulento Danielson fez um enérgico movimento e destravou o «Sharp». O seco estalido da mola obrigou a estremecer os seis ocupantes do gabinete.
— O demónio com chifres de vaca! — exclamou o velho Dan. — Não decorrerá muito tempo sem que se atirem contra essa porta.
Nenhum comentário acolheu a sua declaração.
Na sala penetrava ainda uma difusa claridade avermelhada, dentro da qual flutuavam os rostos dos defensores, tensos, vigilantes...
— Ainda tens tempo de sair, Sue — rompeu o silêncio a voz forte do xerife.
A interpelada olhou naquela direção. As pupilas, dilatadas pela escassa luz crepuscular, assemelhavam-se a dois poços negros, em contraste com o cinzento claro, quase prateado, da íris.
— Você sabe que não sairei, Danielson. — A sua voz rouca era, não obstante, agradável como o ronronar de um gato. — Não tenho mais ninguém além de meu irmão Ben e transporemos ambos a entrada do inferno, mas não sem que antes dele vão adiante de mim vários linchadores.
O grunhido do xerife mostrava que este aprovava aquela decisão. Conhecia a têmpera da rapariga, tão capaz de enfrentar um urso nas montanhas como de preparar comida para cem homens ou de conduzir uma manada de gado.
— Nesse caso, dançaremos todos ao som dessa música — disse.
Lá fora, o grupo de trabalhadores do rancho «Campana», os temíveis homens de Salinger, juntavam-se ao grupo de cidadãos de Marte, entre os quais se confundiam alguns vaqueiros de outros ranchos.
Um vento ligeiro levantava o pó e fazia remoinhar as folhas secas dos gigantescos olmos que adornavam o centro da praça. O horizonte, no extremo da ampla rua principal, onde se erguiam as cavalariças de Malden, dava a impressão de uma enorme caldeira de cobre posta sobre uma fogueira.
— O xerife quer arrebatar-nos esse porco do Ben Kunetzky — perorava o moço do hotel «Marte», um magricela de cabeça grande que parecia um pinto a sair da casca devido à forma como penteava o seu escasso cabelo negro sobre a calva. — Todos sabemos que foi ele quem matou o velho Potter e raptou sua filha Rosy. Não? Não o encontraram no dia seguinte a dormir no desfiladeiro perto da cabana de Potter, com manchas de sangue e um lenço de Rosy entre os dedos?
Tinha os olhos salientes, bulbosos, o que aumentava a sensação de ser constituído por duas metades.
— Mas Ben assegurou que ao entrar na cabana na noite anterior já encontrou Potter agonizante — ouviu-se protestar timidamente.
Rebentaram várias expressões duras, ferozes, na atmosfera.
— Rapazes! — galvanizou todos a voz aguda de Curly, capataz de Salinger. — Deixemo-nos de frioleiras. Kunetzky é culpado. Nem uma vaca doente de mormo duvidaria disso. O que temos de impedir é a sua transferência.
— Enforquemo-lo! — gritou um dos seus companheiros.
E do conjunto de gargantas, abafadas as consciências pelo álcool e pelo tabaco, brotou um imponente rugido. A reunião ganhara adeptos e já quase enchia por completo o espaço fronteiro ao edifício da cadeia e do escritório do xerife.
— Isso! Acabemos de uma vez! Vamos buscar Kunetzky!
A estranha combinação de medo e crueldade que dá lugar aos linchamentos teve origem no centro da massa de povo enfurecido e propagou-se rapidamente em todas as direções.
Os componentes do «Campana» manobraram de modo que o aríete humano fosse parar diretamente sobre a porta defendida por Danielson e pelos seus. Partiram alguns tiros contra as janelas.
O criado do hotel viu-se erguido e atirado como que por uma onda e bateu com o rosto convulso contra a ombreira da porta. Fortes ombros de lenhadores, vaqueiros, ferreiros e seleiros, fizeram estalar a madeira.
De dentro do escritório chegou o aviso de Danielson:
— Dispararei contra qualquer que transpuser a porta!
Mas eram palavras inúteis, que serviram, contrariamente ao seu desejo, para ativar os atacantes.
Produziu-se um recuo para, em seguida, repetir-se a carga. A porta era forte, de carvalho, atravessada por barras de ferro, e resistiria a numerosos embates, ainda que no final acabasse por ceder.
— A ele! Queremos Kunetzky! Entregue-no-lo, xerife, ou enforcaremos todos!
Eram gritos roucos, mais próprios de feras do que de pessoas. A linha vermelha do horizonte parecia de sangue, e o vento aumentou de intensidade, envolvendo em remoinhos as figuras atacantes, que se enegreciam e perdiam os contornos.
— Rezem a última oração, filhos. — O xerife pronunciou estas palavras com certa melancolia. — Lamento-o por ti, Sue.
Lá dentro, a obscuridade era maior, até quase se não ver mais do que um débil fulgor onde estavam as caras.
— Acendemos a luz, xerife? — inquiriu, hesitante, «Knap» Jim, o primeiro ajudante, cujo sobrenome lhe provinha do enorme tumor que lhe deformava a cabeça.
— Para quê? Servirá unicamente para que nos vejam e não falhem os primeiros tiros. Pelo menos, conservaremos essa vantagem.
Ruim vantagem. Slocun, o outro ajudante, começou a rir, ao princípio baixinho, depois histericamente.
— Cala-te! — berrou Dan. — Escolheste mau momento para rir.
— E por que não... por que não? — ouviu-se o jovem dizer entre as gargalhadas. Haverá coisa mais divertida? Seis pessoas, uma das quais mulher, esperam aguentar a investida de duzentos loucos...
— Defendemos a Justiça — recordou Danielson.
Slocun calou-se subitamente. E continuou um profundo silêncio, no qual, por contraste, cresceu a gritaria exterior.
— Maldita seja! — Agora o acento do jovem tornara-se duro, mordente. — Que Justiça? Por que está tão certo de que Ben se encontra inocente?
— Eu não disse isso, Slocun. Mas há-de ser um juiz e um júri que ditarão a sentença. É isso que eu defendo.
De novo o silêncio. As pancadas sucediam-se da parte de fora e retumbavam nas paredes.
— Pois sabe o que lhe digo, Danielson? — rasgou as trevas a palavra do ajudante. — Ben. não merece que nos deixemos matar. Não, maldito seja, não merece!
Acrescentou com maior ferocidade:
— Você sabe, sabemo-lo todos, que não passa de um vagabundo, de um beberrão e de um zaragateiro. Quando tinha quinze anos, roubou o pai e deixou a família na miséria. E no regresso de gastar o dinheiro nas cidades da costa, não foi melhor...
Interrompeu-o a voz apaixonada de Sue:
— Estúpido patas compridas! — rebentou. — Que sabes a respeito do meu irmão? É melhor do que tu, como já o demonstrou mil vezes...
Mas teve de calar-se por seu turno, porque aumentavam as pancadas e um objeto duro, a ponta de uma viga, trespassou a folha de madeira. Crisper fez fogo contra aquela primeira aparição.
— Não desperdices as balas advertiu-o Danielson. — E tu, Slocun, fecha essa maldita boca. Devias ter pensado mais cedo, se não querias ficar connosco.
Sentiu-se o rápido movimento que fez Slocun ao saltar do sítio que ocupava.
— Não ficarei aqui, xerife! Quero sair! Entende? E se lhe resta alguma coisa de senso comum, deve...
Colocara-se no meio da casa. E possivelmente teria proferido um brilhante discurso se Danielson não lho tivesse impedido com um formidável direto que o atingiu em pleno queixo.
As duzentas libras de peso do ajudante estatelaram-se contra a mesa que empurrou até à parede do fundo.
O xerife não teve tempo de ocupar-se dele. Uma tremenda pancada fizera saltar uma tábua e partira a barra de ferro que a defendia. Um par de canos de carabina surgiram pelas brechas.
O «Sharp» do representante da Lei entrou em ação e os ameaçadores tubos de aço desapareceram.
Mas aquilo era o fim, sem dúvida nenhuma. Sue deslizou para junto de Danielson e apoiou-lhe uma das mãos no braço, que lhe pareceu forte como um tronco de carrasqueiro.
— Obrigada, xerife — sussurrou. — Ainda que não tenha servido para nada... obrigada.
Esperaram a acometida definitiva. Lá fora, dava a impressão de que se calavam os gritos, talvez por se aperceberem, também, de que estavam prestes a alcançar os seus propósitos.
— «Knap» — ressoou estranhamente lúgubre a voz de Danielson — vai à cela e liberta Ben Kunetzky.
— Mas, xerife...
— Faz o que te digo. Já que temos de cair todos para defendê-lo, dêmos-lhe o direito de participar na contenda.
«Knap» obedeceu com lentidão. E tropeçou no corpo tombado de Slocun que começava a mexer-se. Ajudou-o a aguentar-se nas pernas vacilantes e dispunha-se a enfiar pelo corredor que levava às celas quando um excitado grito de Crisper o deteve.
— Eh, xerife, passa-se qualquer coisa lá fora! Retiraram-se da porta.
Era incrível, mas, com efeito, assim sucedera. Danielson colocou-se junto de Crisper e espreitou.
Afastavam-se em direção aos olmos. No cinzento-azulado que saturava o ar, pareciam fantasmas. Justamente naquele momento acenderam-se as luzes do «saloon» e o seu resplendor afastou, em parte, as sombras.
A atenção dos aspirantes a linchadores concentrava-se em dois homens, um deles muito alto, quase uma cabeça mais do que o outro, e de contextura ciclópica.
— É Durry «Seis Dedos» — comentou Crisper.
— Sim. E se a vista não me falha, fala com o velho Salinger. Hum! Que diabo estarão a tramar?
Não levou muito tempo a descobrir. Durry e Salinger puseram-se a caminho do escritório. Os outros abriram-lhes passagem e seguiram-nos.
— Acende agora a luz, «Knap» — pediu Danielson. — Parece-me que vamos ter visitas.
— Não se fie nesse patife, xerife — preveniu-o Dan.
— Não, não me fio. Mas «Seis Dedos» não é homem que se preste a uma fraude.
«Knap» Jim pegou no candeeiro de petróleo e chegou-lhe um fósforo. A súbita iluminação fez pestanejar todos. Contemplaram Slocun, que se deixara cair sobre uma cadeira e olhava em frente, com sombria fixidez.
Igualmente se descobriu que Sue estivera a chorar... A jovem, alta, loura, imponente como uma valquíria, tinha os olhos vermelhos, mas a sua resolução não afrouxara.
O xerife levantou uma das mãos e estendeu a orelha para a porta.
— Bob! — ouviu-se através da madeira estilhaçada. — Sou Salinger. Durry «Seis Dedos» e eu desejamos falar-te.
— Diz o que queres daí, Mosy.
— Vamos, Bob; assim não. Queremos parlamentar. E dou-te a minha palavra de que ninguém tentará nada contra Kunetzky... se acederes ao que vou propor-te.
O xerife deitou um olhar circular aos seus companheiros. Crisper, Dan 'e «Knap» fizeram um gesto de assentimento. Sue parecia presa de grande ansiedade, mas não procurou opor-se.
— Bom — rezingou Danielson. — Que me leve o diabo... Eh, Durry! Que dizes tu? Garantes que não é uma esperteza para se apoderarem de Ben?
A voz curiosamente aguda, quase infantil, do homenzarrão, penetrou pelas frestas do carvalho estilhaçado.
— Podes abrir, xerife. Eu não te engano.
O xerife decidiu-se. Inclinou a carabina para o chão e com a mão esquerda açoitou, o ar para indicar a «Knap» que abrisse.
— Só deixarei entrar os dois — declarou. — E juro--lhes que os farei em picado se tentarem alguma suja jogada.
«Knap», com um tremor impossível de vencer nas mãos, retirou o ferrolho e deu volta à enorme. chave. A porta abriu-se e pôs a descoberto os dois visitantes.
Salinger deu um passo em frente, ao mesmo tempo que distendia os lábios num sorriso.
— Bob — articulou com o seu sonoro, claro timbre nortenho —, a minha opinião é que te portas como um néscio não permitindo que se faça justiça rápida, ao uso daqui. Mas seria monstruoso que alguém mais pagasse com a vida a tua obstinação.
— Um bonito discurso... para as próximas eleições — replicou o xerife. — Qual é a tua proposta?
O sorriso de Sallinger dissolveu-se tão rapidamente como um raio de sol no Inverno. O seu rosto enérgico fechou-se, proporcionando-lhe o inflexível e agressivo aspeto que constituía a sua divisa.
— Está bem, Bob. Não é por ti, mas sim por Durry, que me dou a este trabalho. Ele quer jogar limpo, como um cavalheiro. Assim, far-se-á o julgamento. Mas para que tudo seja imparcial, o júri será escolhido por uma comissão de cidadãos presidida por mim. E quanto ao juiz, para já não será Hamilton, que se baba quando vê passar essa rapariga, Sue.
— Quem, então?
— Pois... o mais indicado. Um homem sem prejuízos, independente e recto. Morice Bornac.
Um tique alterou a face do xerife, o qual não se admirou que Sue se adiantasse até colocar-se a seu lado e exclamasse:
— Você é um porco, Salinger!
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