Deixaram-no preso à parede por meio de um laço que lhe passava através das mãos, ligadas atrás das costas, e com um raio de cinco jardas para mover-se. O calmeirão, que se chamava Zac, e o quarto em discórdia, que respondia pelo mimoso nome de Puss, ficaram a vigiá-lo.
Bornac argumentara com Sue no sentido de que a sua ação não impediria a celebração do julgamento, e talvez precipitasse outro género de acontecimentos, mas ela mostrara-se inflexível.
Não se fiava nele, como era evidente, e isso incomodava-o de modo especialíssimo, coisa que o deixava atónito. No entanto, admitia que ela contava com boas razões para a sua desconfiança.
Adivinhava, por outro lado, que a jovem tinha em mente levar por diante mais qualquer coisa, secundada pelo incondicional Roy e pelo resto da quadrilha.
Decorreu todo aquele dia. Deram-lhe de comer e, em certas ocasiões, levaram-no lá fora, a fim de cumprir as inexoráveis leis da natureza.
Bornac refletia a todo o vapor. Em qualquer outra circunstância, a sua situação ter-lhe-ia provocado a maior das indignações, mas resignar-se-ia a esperar; naquele caso, porém, urna combustão estranha, desconhecida, originada no seu organismo,' compelia-o a fugir.
Passou revista a todos os procedimentos possíveis desde fingir-se doente a tentar convencer os seus guardas de que era proprietário de um tesouro e que o dividiria com eles. Mas automaticamente afastava-os por inconvenientes. Até que uma ideia lhe fulgurou no cérebro.
Fez sinal para que o levassem lá fora. Zac fitou-o com desconfiança.
— Qual é a sua ideia? — rezingou. — Tenciona passai o dia a entrar e sair?
Ante o gesto expressivo que lhe dirigiu o juiz, resolveu-se a desatar o laço da argola da parede. Segurava firmemente a carabina debaixo do braço e o seu camarada Puss colocou-se de forma que cobria o prisioneiro fosse qual fosse a posição que este tomasse.
Realizada a função para que pedira o soltassem Bornac regressou à furna. O crepúsculo operava a sua prodigiosa transformação em vermelhos e violetas e escuridão invadia rapidamente o buraco. E, justamente no momento de pisar o solo da cova, o juiz deu um salto e puxou o laço com todas as suas forças. Zac qui; retê-lo e foi atrás, ao mesmo tempo que apertava o gatilho, mas sem resultado.
Retumbou a detonação despertando multíplices eco: no interior da montanha. O extremo do laço, solto, açoitou o ar e bateu no candeeiro que espalhava o set resplendor desde o nicho natural em que se encontrava
A sucessão de movimentos que o prisioneiro efetuou seguidamente tê-lo-iam creditado como um consumado acrobata.
Fez-se totalmente escuro, mas sabia onde estava o calmeirão no momento em que se atirou a ele e lhe meteu o joelho por entre as pernas. Com um grito, o homem tombou de costas.
Ao mesmo tempo, o juiz ordenou:
— Quieto, Puss! Farei fogo se te aproximares da porta.
Calculava que o outro não tentaria verificar se aquilo era verdade. Não podia estar certo de que não tivesse soltado as mãos e de que não se encontrasse com a carabina do companheiro nelas. E assim aconteceu. Puss permaneceu no exterior, indeciso sobre se devia ou não servir-se da arma que empunhava, visto poder ferir Zac, e receoso de entrar, não fosse verdade que o fizessem num crivo mal pisasse o risco divisório.
Dominar um homem com as pernas não era empresa fácil, embora o golpe que recebera deixasse Zac muito perto da inconsciência.
Bornac retorceu-se e manejou novamente a corda, que enrolou à volta do pescoço do maltratado sujeito. Sentara-se-lhe sobre o peito e apertava-lhe os costados com os seus ossudos joelhos.
— Ouve, meio homem e meio cão das pradarias — disse em voz baixa, mas tão ameaçadora como o rugido de uma pantera —, garrotar-te-ei até deitares a língua de fora como um trapo sujo, se não fizeres o que vou dizer-te.
Zac agitou-se e arqueou o espinhaço, mas um enérgico esticão dado pelo juiz, que esteve a ponto de sufocá-lo, devolveu-lhe o sentido da realidade, pois a corda que se lhe enrolava ao pescoço era argumento bastante convincente.
Bornac assim lho deu a entender um décimo de segundo mais tarde. Deitou-se para trás e esticou o laço. A cabeça de Zac levantou-se como se fosse impulsionada por uma mola e, por um momento, ele vislumbrou o abismo que se lhe abria diante dos olhos.
Com igual brusquidão foi afrouxada a pressão e ele bateu com a nuca contra a dura capa rochosa.
— Agora vou fazer o seguinte: — declarou Bornac, com o mesmo acento — dobrar-me-ei de forma que possas desatar-me as mãos. Não procures fazer outra coisa, porque te juro que viverias apenas segundos.
Apertou os flancos do infeliz e realizou o difícil exercício. Possivelmente, apenas a escuridão e o aturdimento impediram Zac de notar que era absurdo submeter-se.
Era verdade que existia o perigo de que o estrangulassem, e que não era nenhuma brincadeira sentir os ossos do outro cravados nos seus flancos e com a ameaça de fazer-lhe rebentar os pulmões; mas mesmo assim a sua vantagem era indiscutível.
O facto foi que soltou Bornac, que, ao sentir os braços livres, os estendeu e fletiu um par de vezes. Depois, tirou dos coldres os revólveres da sua vítima c. passou-os para os seus. Afastou-se dele, embora deixando-lhe a corda ao pescoço.
— Vamos, levanta-te! — ordenou.
Em pouco menos de um minuto converteu-o num pacote que arrastou para o fundo da cova. Quanto ao vigilante de fora, pouco cuidado lhe dava. Reconhecia que, de certo modo, os seus inimigos eram uns idiotas sem malícia, praticamente indefesos perante um cão velho como ele.
Imaginou-o postado a um dos lados da porta, com os músculos doridos pelo afã de não ser surpreendido. Para comprová-lo, utilizou a sua sela de montar que tinham depositado a um canto. Isso lhe serviu também para recuperar os seus próprios «Colts».
A sela atravessou sem dificuldade a abertura e foi recebida com um par de disparos que demonstraram a excelente pontaria do inefável Puss e a sua rapidez de reflexos. Mas não evitaram que o juiz se colocasse a seu lado e lhe deixasse cair sobre a cabeça, sem a menor benevolência, a coronha de um dos seus pesados seis tiros.
Bornac recolheu-o nos braços e conduziu-o para junto do camarada. Depois, empenhou-se em romper as trevas, restituindo o. candeeiro ao seu piso.
— Amiguinhos discursou diante dos dois manie-tados vigilantes que o contemplavam com fúria —, para guardar um prisioneiro, o melhor é deixá-lo à solta dentro de um quarto e limitarmo-nos a vigiar a porta e as janelas... de longe.
Não fizeram comentários à sua recomendação, embora os seus olhos transmitissem uma mensagem que bastaria para acender a guerra entre duas nações ligadas pelos tratados de amizade mais estreitos.
As estrelas refulgiam no horizonte, insinuava-se um clarão que pressagiava o aparecimento da Lua, quando o juiz Bornac retomou a sua interrompida viagem para Marte.
Ao fim de algumas horas divisou as luzes da cidade. Deteve «Narcissus» e imobilizou-se em atitude reflexiva. A Lua surgiu naquele momento e recortou a sua figura contra a clara atmosfera.
Todo negro, salientando-se com um fulgor sombrio o seu rosto debaixo do chapéu, representava qualquer coisa de sinistro que se aproximava da povoação.
Ao fim de algum tempo retomou a marcha. Desceu da colina e o cavalo trotou por um caminho pedregoso, mas plano, perfeito para o trânsito de carruagens.
Em breve chegou junto dos primeiros edifícios, uns compridos barracões. Ao passar por diante de um portão, leu uma placa que os declarava «Cavalariças de Melden».
A rua principal era ampla e ladeada de árvores. Apesar de perdido nas montanhas, notava-se ser Marte um lugar próspero. Havia várias casas de dois andares, de sólida construção, e o banco era de pedra, o que não deixava de ser um símbolo. A rua ampliava-se a meio e formava uma espécie de praça, com dois olmos centenários no centro.
Uma multidão comprimia-se então ali. A experimentada vista do juiz em breve descobriu a condição da maioria dos presentes e o motivo que os reunira. Não era para uma festa, estava certo. Alguns dos homens tinham tirado os revólveres e apontavam com eles para urna casa.
Bornac seguiu a direção dos seus gestos e descobriu a fachada do escritório do xerife.
Aos seus ouvidos chegaram as vozes dos iracundos oradores que se distribuíam por entre os grupos.
— ...O juiz foi raptado por Danielson e por essa maldita rapariga dos Kunetzky... — gritava um. A todo o custo querem livrar Ben de converter-se no badalo da «que sempre dá a hora final».
O pitoresco da frase fez com que o juiz examinasse com atenção o indivíduo que a pronunciara. Era um ruivo muito magro, cavernoso, de cara comprida como o focinho de um cavalo e olhos redondos, salientes.
— ...Não esperemos mais — reclamava outro. — Obriguemos o xerife a entregar-nos Ben e façamo-lo dançar na ponta de uma corda.
Sem dúvida procediam por encomenda. De quando em quando, cinco ou seis indivíduos afastavam-se do conjunto e faziam incursões no interior do «saloon» que se abria a um lado da esplanada, regressando pouco depois com maiores mostras de excitação.
Os preparativos do linchamento eram evidentes e a técnica empregada pelos indutores não deixava de ser curiosa.
Mas, de súbito, mudou o ambiente. Por um extremo da praça fizeram a sua aparição vários homens que se confundiam com as sombras daquele lado.
Bornac esforçou-se por identificá-los, mas não o conseguiu. No entanto, quase imediatamente soube quem eram, visto que, dominando o tumulto que faziam os demais debaixo das árvores, se elevou uma rouca, mas cálida voz:
— Eh, Curly, acaba com a brincadeira de uma vez!
Estabeleceu-se o silêncio na massa dos linchadores, e o clarim paralisador insistiu:
— Se algum de vocês der um passo para a prisão, far-lhe-ei voar os miolos.
A advertência foi desobedecida por um tipo de pernas curtas, tórax em quilha e crânio redondo, coberto de cabelos grisalhos. Saltou para diante, brandindo um pistolão, e com a ideia de que ia mudar o curso da história.
Urna descarga do ponto onde Sue e os seus amigos se tinham entrincheirado e aquela insensata partícula do género humano escorregou sobre a resvaladiça soleira da porta do Além, deu um par de voltas no ar, caiu encolhido e distendeu-se ato contínuo para correr de gatas como uma lebre coxa.
O acontecimento produziu uma corrida geral do resto dos cidadãos, que procuraram refúgio nos portais e atrás das árvores. A seguir verificou-se um intercâmbio de tiros e de rápido tombar de corpos.
Do abrigo que lhe ofereciam uns cascos colocados em frente dos uma janela do «saloon», o ruivo que arengava aos marcianos gritou em direção aos contrários:
— És uma louca, Sue! Não poderás impedir que se faça justiça.
E Sue replicou:
— Nem o tento, Curly. Tu e o teu maldito amo é que não quereis que se faça justiça. Ou é Hamilton o juiz... ou será o vosso corpo que penderá de umas cordas.
Um tiro sublinhou o efeito das suas palavras, e o chapéu de Curly voou contra a parede do estabelecimento.
Curly fez então o gosto ao dedo e o seu revólver vomitou toda uma volta de tambor contra as sombras que se lhe opunham. Mas a tal distância as suas balas eram perfeitamente inúteis. O mesmo não acontecia com os fortes estampidos das carabinas que tomavam parte no concerto.
Bornac fustigou o alazão para que avançasse por entre a peleja. E se lhe tivessem perguntado por que praticava semelhante estupidez que poderia custar-lhe a pele por engano, não poderia responder coerentemente.
Mas queria impedir que acertassem na mulher que ousara o mau passo de raptá-lo, pois era tão certo como a noite seguir-se ao dia que a animosa irmã de Ben Kunetzky duraria quando muito um par de horas se continuasse a lutar contra os energúmenos que a enfrentavam.
Os primeiros a vê-lo foram os do bando de Salinger. Um vaqueiro velho começou a gritar:
— É o juiz Bornac, rapazes! Chegou o juiz...!
Ainda atravessaram o espaço alguns pedaços de chumbo, mas a paz acabou por restabelecer-se.
Da sua zona de ocupação emergiram Sue e os seus acólitos. A rapariga, desprezando o perigo, avançou até chegar perto de «Narcissus» e do seu cavaleiro, e os seus grandes olhos cravaram-se com avidez no rosto do homem que julgava fechado num buraco das montanhas.
— Como... como conseguiu...?
Começaram a aproximar-se os fugitivos, e no sector iluminado pelo resplendor procedente do «saloon» surgiram também Roy e vários amigos dos Kunetzky.
— Preveni-a de que não praticasse semelhante tolice — declarou Bornac com secura, olhando para Sue. — Bem vê que tinha razão. Assim, não só não salvará o seu irmão, como ainda exporá o seu próprio pescoço e o daqueles que a ajudam.
— Prefiro isso a que seja o senhor a sentenciar o meu irmão!
Havia um tal desprezo nas suas palavras que Bornac teve de cerrar os dentes para não descer do cavalo e esbofeteá-la... ainda que depois a cobrisse de beijos.
Curly, que se aproximara, perguntou então:
— Que lhe aconteceu, juiz? Esperávamo-lo esta manhã.
Já toda a gente se reunira à sua volta. Isso agradou ao juiz, que sentia irreprimível desejo de cometer uma loucura.
— Vim quando me pareceu melhor — disse. — Que têm com isso?
Curly retrocedeu uns passos e o seu comprido rosto contraiu-se numa careta difícil de interpretar.
— Esta mulher — e apontou com o polegar para Sue — garantiu que você nunca julgaria o seu irmão.
— Bom. Pois bem vê que não acertou.
Então o ruivo mudou de expressão. Deitou uma olhadela aos que se o circundavam e declarou:
— O senhor Salinger quer falar-lhe e espera-o no ser rancho.
Bornac soltou uma gargalhada que teve a virtude de fazer levantar a cabeça do seu cavalo.
— Pois vá dizer a esse Salinger — proferiu com ironia — que procure outro jogador de xadrez para esta noite. Eu vou jantar e dormir.
Deu de esporas e obrigou «Narcissus» a trotar, enquanto Curly saltava para o seu lado, a fim de não ser pisado. E muitos outros seguiram o seu exemplo.
À medida que se afastava deles, Bornac teve a consciência de que ditara a sua própria sentença. Inapelável.
Bornac argumentara com Sue no sentido de que a sua ação não impediria a celebração do julgamento, e talvez precipitasse outro género de acontecimentos, mas ela mostrara-se inflexível.
Não se fiava nele, como era evidente, e isso incomodava-o de modo especialíssimo, coisa que o deixava atónito. No entanto, admitia que ela contava com boas razões para a sua desconfiança.
Adivinhava, por outro lado, que a jovem tinha em mente levar por diante mais qualquer coisa, secundada pelo incondicional Roy e pelo resto da quadrilha.
Decorreu todo aquele dia. Deram-lhe de comer e, em certas ocasiões, levaram-no lá fora, a fim de cumprir as inexoráveis leis da natureza.
Bornac refletia a todo o vapor. Em qualquer outra circunstância, a sua situação ter-lhe-ia provocado a maior das indignações, mas resignar-se-ia a esperar; naquele caso, porém, urna combustão estranha, desconhecida, originada no seu organismo,' compelia-o a fugir.
Passou revista a todos os procedimentos possíveis desde fingir-se doente a tentar convencer os seus guardas de que era proprietário de um tesouro e que o dividiria com eles. Mas automaticamente afastava-os por inconvenientes. Até que uma ideia lhe fulgurou no cérebro.
Fez sinal para que o levassem lá fora. Zac fitou-o com desconfiança.
— Qual é a sua ideia? — rezingou. — Tenciona passai o dia a entrar e sair?
Ante o gesto expressivo que lhe dirigiu o juiz, resolveu-se a desatar o laço da argola da parede. Segurava firmemente a carabina debaixo do braço e o seu camarada Puss colocou-se de forma que cobria o prisioneiro fosse qual fosse a posição que este tomasse.
Realizada a função para que pedira o soltassem Bornac regressou à furna. O crepúsculo operava a sua prodigiosa transformação em vermelhos e violetas e escuridão invadia rapidamente o buraco. E, justamente no momento de pisar o solo da cova, o juiz deu um salto e puxou o laço com todas as suas forças. Zac qui; retê-lo e foi atrás, ao mesmo tempo que apertava o gatilho, mas sem resultado.
Retumbou a detonação despertando multíplices eco: no interior da montanha. O extremo do laço, solto, açoitou o ar e bateu no candeeiro que espalhava o set resplendor desde o nicho natural em que se encontrava
A sucessão de movimentos que o prisioneiro efetuou seguidamente tê-lo-iam creditado como um consumado acrobata.
Fez-se totalmente escuro, mas sabia onde estava o calmeirão no momento em que se atirou a ele e lhe meteu o joelho por entre as pernas. Com um grito, o homem tombou de costas.
Ao mesmo tempo, o juiz ordenou:
— Quieto, Puss! Farei fogo se te aproximares da porta.
Calculava que o outro não tentaria verificar se aquilo era verdade. Não podia estar certo de que não tivesse soltado as mãos e de que não se encontrasse com a carabina do companheiro nelas. E assim aconteceu. Puss permaneceu no exterior, indeciso sobre se devia ou não servir-se da arma que empunhava, visto poder ferir Zac, e receoso de entrar, não fosse verdade que o fizessem num crivo mal pisasse o risco divisório.
Dominar um homem com as pernas não era empresa fácil, embora o golpe que recebera deixasse Zac muito perto da inconsciência.
Bornac retorceu-se e manejou novamente a corda, que enrolou à volta do pescoço do maltratado sujeito. Sentara-se-lhe sobre o peito e apertava-lhe os costados com os seus ossudos joelhos.
— Ouve, meio homem e meio cão das pradarias — disse em voz baixa, mas tão ameaçadora como o rugido de uma pantera —, garrotar-te-ei até deitares a língua de fora como um trapo sujo, se não fizeres o que vou dizer-te.
Zac agitou-se e arqueou o espinhaço, mas um enérgico esticão dado pelo juiz, que esteve a ponto de sufocá-lo, devolveu-lhe o sentido da realidade, pois a corda que se lhe enrolava ao pescoço era argumento bastante convincente.
Bornac assim lho deu a entender um décimo de segundo mais tarde. Deitou-se para trás e esticou o laço. A cabeça de Zac levantou-se como se fosse impulsionada por uma mola e, por um momento, ele vislumbrou o abismo que se lhe abria diante dos olhos.
Com igual brusquidão foi afrouxada a pressão e ele bateu com a nuca contra a dura capa rochosa.
— Agora vou fazer o seguinte: — declarou Bornac, com o mesmo acento — dobrar-me-ei de forma que possas desatar-me as mãos. Não procures fazer outra coisa, porque te juro que viverias apenas segundos.
Apertou os flancos do infeliz e realizou o difícil exercício. Possivelmente, apenas a escuridão e o aturdimento impediram Zac de notar que era absurdo submeter-se.
Era verdade que existia o perigo de que o estrangulassem, e que não era nenhuma brincadeira sentir os ossos do outro cravados nos seus flancos e com a ameaça de fazer-lhe rebentar os pulmões; mas mesmo assim a sua vantagem era indiscutível.
O facto foi que soltou Bornac, que, ao sentir os braços livres, os estendeu e fletiu um par de vezes. Depois, tirou dos coldres os revólveres da sua vítima c. passou-os para os seus. Afastou-se dele, embora deixando-lhe a corda ao pescoço.
— Vamos, levanta-te! — ordenou.
Em pouco menos de um minuto converteu-o num pacote que arrastou para o fundo da cova. Quanto ao vigilante de fora, pouco cuidado lhe dava. Reconhecia que, de certo modo, os seus inimigos eram uns idiotas sem malícia, praticamente indefesos perante um cão velho como ele.
Imaginou-o postado a um dos lados da porta, com os músculos doridos pelo afã de não ser surpreendido. Para comprová-lo, utilizou a sua sela de montar que tinham depositado a um canto. Isso lhe serviu também para recuperar os seus próprios «Colts».
A sela atravessou sem dificuldade a abertura e foi recebida com um par de disparos que demonstraram a excelente pontaria do inefável Puss e a sua rapidez de reflexos. Mas não evitaram que o juiz se colocasse a seu lado e lhe deixasse cair sobre a cabeça, sem a menor benevolência, a coronha de um dos seus pesados seis tiros.
Bornac recolheu-o nos braços e conduziu-o para junto do camarada. Depois, empenhou-se em romper as trevas, restituindo o. candeeiro ao seu piso.
— Amiguinhos discursou diante dos dois manie-tados vigilantes que o contemplavam com fúria —, para guardar um prisioneiro, o melhor é deixá-lo à solta dentro de um quarto e limitarmo-nos a vigiar a porta e as janelas... de longe.
Não fizeram comentários à sua recomendação, embora os seus olhos transmitissem uma mensagem que bastaria para acender a guerra entre duas nações ligadas pelos tratados de amizade mais estreitos.
As estrelas refulgiam no horizonte, insinuava-se um clarão que pressagiava o aparecimento da Lua, quando o juiz Bornac retomou a sua interrompida viagem para Marte.
Ao fim de algumas horas divisou as luzes da cidade. Deteve «Narcissus» e imobilizou-se em atitude reflexiva. A Lua surgiu naquele momento e recortou a sua figura contra a clara atmosfera.
Todo negro, salientando-se com um fulgor sombrio o seu rosto debaixo do chapéu, representava qualquer coisa de sinistro que se aproximava da povoação.
Ao fim de algum tempo retomou a marcha. Desceu da colina e o cavalo trotou por um caminho pedregoso, mas plano, perfeito para o trânsito de carruagens.
Em breve chegou junto dos primeiros edifícios, uns compridos barracões. Ao passar por diante de um portão, leu uma placa que os declarava «Cavalariças de Melden».
A rua principal era ampla e ladeada de árvores. Apesar de perdido nas montanhas, notava-se ser Marte um lugar próspero. Havia várias casas de dois andares, de sólida construção, e o banco era de pedra, o que não deixava de ser um símbolo. A rua ampliava-se a meio e formava uma espécie de praça, com dois olmos centenários no centro.
Uma multidão comprimia-se então ali. A experimentada vista do juiz em breve descobriu a condição da maioria dos presentes e o motivo que os reunira. Não era para uma festa, estava certo. Alguns dos homens tinham tirado os revólveres e apontavam com eles para urna casa.
Bornac seguiu a direção dos seus gestos e descobriu a fachada do escritório do xerife.
Aos seus ouvidos chegaram as vozes dos iracundos oradores que se distribuíam por entre os grupos.
— ...O juiz foi raptado por Danielson e por essa maldita rapariga dos Kunetzky... — gritava um. A todo o custo querem livrar Ben de converter-se no badalo da «que sempre dá a hora final».
O pitoresco da frase fez com que o juiz examinasse com atenção o indivíduo que a pronunciara. Era um ruivo muito magro, cavernoso, de cara comprida como o focinho de um cavalo e olhos redondos, salientes.
— ...Não esperemos mais — reclamava outro. — Obriguemos o xerife a entregar-nos Ben e façamo-lo dançar na ponta de uma corda.
Sem dúvida procediam por encomenda. De quando em quando, cinco ou seis indivíduos afastavam-se do conjunto e faziam incursões no interior do «saloon» que se abria a um lado da esplanada, regressando pouco depois com maiores mostras de excitação.
Os preparativos do linchamento eram evidentes e a técnica empregada pelos indutores não deixava de ser curiosa.
Mas, de súbito, mudou o ambiente. Por um extremo da praça fizeram a sua aparição vários homens que se confundiam com as sombras daquele lado.
Bornac esforçou-se por identificá-los, mas não o conseguiu. No entanto, quase imediatamente soube quem eram, visto que, dominando o tumulto que faziam os demais debaixo das árvores, se elevou uma rouca, mas cálida voz:
— Eh, Curly, acaba com a brincadeira de uma vez!
Estabeleceu-se o silêncio na massa dos linchadores, e o clarim paralisador insistiu:
— Se algum de vocês der um passo para a prisão, far-lhe-ei voar os miolos.
A advertência foi desobedecida por um tipo de pernas curtas, tórax em quilha e crânio redondo, coberto de cabelos grisalhos. Saltou para diante, brandindo um pistolão, e com a ideia de que ia mudar o curso da história.
Urna descarga do ponto onde Sue e os seus amigos se tinham entrincheirado e aquela insensata partícula do género humano escorregou sobre a resvaladiça soleira da porta do Além, deu um par de voltas no ar, caiu encolhido e distendeu-se ato contínuo para correr de gatas como uma lebre coxa.
O acontecimento produziu uma corrida geral do resto dos cidadãos, que procuraram refúgio nos portais e atrás das árvores. A seguir verificou-se um intercâmbio de tiros e de rápido tombar de corpos.
Do abrigo que lhe ofereciam uns cascos colocados em frente dos uma janela do «saloon», o ruivo que arengava aos marcianos gritou em direção aos contrários:
— És uma louca, Sue! Não poderás impedir que se faça justiça.
E Sue replicou:
— Nem o tento, Curly. Tu e o teu maldito amo é que não quereis que se faça justiça. Ou é Hamilton o juiz... ou será o vosso corpo que penderá de umas cordas.
Um tiro sublinhou o efeito das suas palavras, e o chapéu de Curly voou contra a parede do estabelecimento.
Curly fez então o gosto ao dedo e o seu revólver vomitou toda uma volta de tambor contra as sombras que se lhe opunham. Mas a tal distância as suas balas eram perfeitamente inúteis. O mesmo não acontecia com os fortes estampidos das carabinas que tomavam parte no concerto.
Bornac fustigou o alazão para que avançasse por entre a peleja. E se lhe tivessem perguntado por que praticava semelhante estupidez que poderia custar-lhe a pele por engano, não poderia responder coerentemente.
Mas queria impedir que acertassem na mulher que ousara o mau passo de raptá-lo, pois era tão certo como a noite seguir-se ao dia que a animosa irmã de Ben Kunetzky duraria quando muito um par de horas se continuasse a lutar contra os energúmenos que a enfrentavam.
Os primeiros a vê-lo foram os do bando de Salinger. Um vaqueiro velho começou a gritar:
— É o juiz Bornac, rapazes! Chegou o juiz...!
Ainda atravessaram o espaço alguns pedaços de chumbo, mas a paz acabou por restabelecer-se.
Da sua zona de ocupação emergiram Sue e os seus acólitos. A rapariga, desprezando o perigo, avançou até chegar perto de «Narcissus» e do seu cavaleiro, e os seus grandes olhos cravaram-se com avidez no rosto do homem que julgava fechado num buraco das montanhas.
— Como... como conseguiu...?
Começaram a aproximar-se os fugitivos, e no sector iluminado pelo resplendor procedente do «saloon» surgiram também Roy e vários amigos dos Kunetzky.
— Preveni-a de que não praticasse semelhante tolice — declarou Bornac com secura, olhando para Sue. — Bem vê que tinha razão. Assim, não só não salvará o seu irmão, como ainda exporá o seu próprio pescoço e o daqueles que a ajudam.
— Prefiro isso a que seja o senhor a sentenciar o meu irmão!
Havia um tal desprezo nas suas palavras que Bornac teve de cerrar os dentes para não descer do cavalo e esbofeteá-la... ainda que depois a cobrisse de beijos.
Curly, que se aproximara, perguntou então:
— Que lhe aconteceu, juiz? Esperávamo-lo esta manhã.
Já toda a gente se reunira à sua volta. Isso agradou ao juiz, que sentia irreprimível desejo de cometer uma loucura.
— Vim quando me pareceu melhor — disse. — Que têm com isso?
Curly retrocedeu uns passos e o seu comprido rosto contraiu-se numa careta difícil de interpretar.
— Esta mulher — e apontou com o polegar para Sue — garantiu que você nunca julgaria o seu irmão.
— Bom. Pois bem vê que não acertou.
Então o ruivo mudou de expressão. Deitou uma olhadela aos que se o circundavam e declarou:
— O senhor Salinger quer falar-lhe e espera-o no ser rancho.
Bornac soltou uma gargalhada que teve a virtude de fazer levantar a cabeça do seu cavalo.
— Pois vá dizer a esse Salinger — proferiu com ironia — que procure outro jogador de xadrez para esta noite. Eu vou jantar e dormir.
Deu de esporas e obrigou «Narcissus» a trotar, enquanto Curly saltava para o seu lado, a fim de não ser pisado. E muitos outros seguiram o seu exemplo.
À medida que se afastava deles, Bornac teve a consciência de que ditara a sua própria sentença. Inapelável.
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