Salinger contemplou o seu hospede corn extraordinária atenção. Estava habituado a tratar corn Coda a espécie de homens e sabia que do estudo das diferentes naturezas e caracteres dependia o êxito da sua empresa.
Mas não conseguia classificar o juiz Bornac. Ou a sua ideia acerca da venalidade estava errada ou o alto sujeito •que tinha diante de si representava um tipo de homem totalmente oposto.
— Deve compreender, juiz, que não pretendo um julgamento falso. Apenas procuro defender o meu filho da imputação desse crime.
Bornac arqueou ligeiramente as sobrancelhas.
— Macacos me mordam se o entendo — confessou. — Prenderam Ben Kunetzky como autor da morte do velho Potter e do rapto da filha; as provas parecem concludentes. Porque, então, esse medo?
Salinger corou, não de perturbação, mas de raiva.
— Se falar corn a gente desta cidade, compreendera o que temo. 0 meu filho é...
Hesitou, e o juiz simpatizou corn aquele rude vaqueiro, cujo descendente tao pouco se parecia corn ele.
Porque também o juiz se equivocara a respeito do individuo que o mandara buscar. Bastava ver aqueles traços enérgicos, marcados pelo constante batalhar contra a natureza e os homens, para afastar a hipótese de tratar-se de um embusteiro profissional, de um trampolineiro capaz de valer-se de intermediário para conseguir os seus fins.
— Tony gosta muito de raparigas e as vezes excede--se — acabou por revelar Salinger. — Isso criou-lhe ma reputação. Por outro lado, dedicou as suas atenções a Rosa Potter... Compreende? Se não se provar, com toda a espécie de pronunciamentos favoráveis, que foi Ben quem assassinou o velho, o povo acreditara ter sido Tony o autor da façanha.
Bornac ficou um tanto perplexo.
— E pensa que um julgamento realizado em tais condições poderá mudar essa opinião?
0 rancheiro meneou vigorosamente a sua quadrada cabeça.
— Não me entendeu, juiz. As razoes morais não me interessam para nada; o que pretendo é que Tony não possa ser acusado «oficialmente» desse crime. E para isso preciso que Ben Kunetzky seja pendurado na ponta de uma corda.
Bornac estremeceu perante a brutal franqueza do set interlocutor.
— E se se demonstra que ele não cometeu o crime, também quer que o pendurem numa corda?
Os olhos dos dois homens chocaram-se como espada no ar. Salinger comprimiu os lábios ate formarem uma linha quase invisível.
— Exatamente, se não houver outro remedio. Essa a razão por que o mandei vir.
O juiz sabia-o; mas ouvi-lo corn tamanha clareza causou-lhe o efeito de uma purga. 0 sabor acido, sulfuroso, daquelas palavras levou-o a outra conclusão, que alias • já imaginara ter descoberto na noite anterior.
Nao estava disposto a secundar os pianos de Salinger; faria justiça. Uma justiça que o levaria adiante de si, confundido num monte de lixo. Mas isso já não lhe interessava.
Levantou-se corn calma, corn o rosto tenso e as pálpebras semicerradas.
— Vai apanhar uma desilusão, Salinger — declarou, sublinhando as palavras. — Presidirei ao tribunal, e far-se-á justiça. não contra Ben Kunetzky, mas sim contra o assassino de Potter.
Salinger ficou uns segundos imóvel. Depois, exalou um suspiro e sorriu.
— já esperava isso — disse o que só demonstra que é mau jogar corn as cartas marcadas. Pensou bem, juiz?
— Sim.
O rancheiro pôs-se em pe. Chegava-lhe ao ombro corn a cabeça, mas era ele quem dominava no gabinete onde se encontravam. A sua maciça figura, o seu queixo proeminente, os olhos castanhos rodeados de pálpebras duras, quase sem pestanas, e o cabelo grisalho, liso, completavam a estampa mais genuína do Oeste legendário, do homem forte que domina a terra e a vontade dos outros.
Mas ali estava procurando subornar a Justiça para que um produto do seu próprio sangue não sofresse o castigo a que, seguramente, fizera jus.
— Tenho muito poder, juiz — declarou corn voz rouca e o senhor não é pessoa por quem qualquer se sacrifique.
— Bem sei. Cada um conhece as suas fraquezas. Apesar de tudo, por mais que lhe pese, eu julgarei Ben Kunetzky. E se verificar que não cometeu o crime, essa será a sentença que ditarei.
Dito isto, deu meia-volta e encaminhou-se para a porta. Atravessou um salão sem encontrar mais ninguém alem de um negro que procedia a limpeza e, ao transpor a varanda alpendrada, a luz viva do sol feriu-lhe as retinas.
Olhou a sua volta e reparou num homem que prendia o cavalo a um poste e dirigia a seguir os seus passos para a casa. Qualquer coisa no seu porte e na sua maneira de andar obrigou a mem6ria do juiz a passar as fichas do seu arquivo mental.
Juraria que o homem não lhe era desconhecido, mas não conseguia recordar-se onde já o vira. Encolheu os ombros e partiu.
A sua ideia era interrogar o prisioneiro. Aquele contacto parecia-lhe indispensável.
Percorreu a rua principal sem pressa, pelo meio da calçada, corn a vista cravada no horizonte, embora na realidade perfeitamente atento ao que se passava a sua volta.
Sentia-se meio alegre e meio triste. A decisão que tomara ia pôr à prova todos os seus recursos. Não queria enganar-se. A partir daquele momento seria a peça cobiçada de ambos os bandos.
Salinger tentaria por todos os meios forçar-lhe a mão no caso do julgamento, e não seria inimigo de desprezar. Quanto a Sue Kunetzky e aos seus amigos, também não lhe dariam quartel.
Deteve o seu passeio em frente do escritório do xerife e entrou.
Danielson ergueu a cabeçorra, coroada de cabelos brancos, e perscrutou corn os seus claros olhos azuis o visitante.
— Juiz Bornac, não é verdade?
Soergueu-se do cadeirão e estendeu a destra. Bornac apertou-lha corn força. Logo à primeira vista se sentiu atraído por aquela cara franca, sem malicia.
— Um cigarro? — ofereceu o xerife, que retomou o seu lugar atrás da secretaria.
0 juiz recusou corn um gesto e registou ligeiramente corn o olhar o interior do aposento. Uma sala ampla, corn um par de armários onde se viam carabinas corn meio seculo e uma bailarina exibindo as pernas numa versão americana do «can-can».
— Xerife, quero que me fale deste caso. Você encontrou Ben Kunetzky depois de descobrir o velho Potter assassinado?
— Não foi exatamente assim. Ben foi encontrado primeiro. Quase sempre, depois de uma bebedeira, aparecia nos sítios mais inesperados e sem se lembrar de nada do que fizera. Naquele dia, um vaqueiro chamado John Forbes, que passeava nas imediações da cabana de Potter, viu aparecer Ben, cujo aspeto lhe chamou a atenção. Tinha manchas de sangue na camisa e o ar de quem foge de qualquer coisa.
— Compreendo. Dizem que foi encontrado em seu poder um lengo de Rosy. não sabem nada desta?
— Nao. Desapareceu sem deixar rasto. E isso é o mais estranho.
— Bern. Posso ver o detido?
Danielson recostou-se e chupou corn forca o cigarro.
— Naturalmente. Tem o direito disso. Depois conhecerá o delegado e o defensor.
Levantou-se e guiou o juiz por um comprido corredor em cujo extremo ficavam as celas. Deteve-se diante das grades de uma.
— Aqui o tem.
Mas não esboçou o gesto de franquear-lhe a entrada. No seu semblante refletia-se a indecisão.
— Que tem, xerife?
— Juiz — decidiu-se Danielson —, é meu dever preveni-lo de que tudo quanto se relacione com este julgamento não esta claro. Existem pessoas, que o senhor deve conhecer, muito interessadas em que Ben seja pendurado pelo pescoço. Outras, pelo contrario, trabalham para liberta-lo.
— Estou informado, xerife.
— Sim, mas também ignora, decerto, que Salinger recusou o juiz Hamilton. Depois, foi ele quem mencionou o seu nome... E isso não me agrada.
Os músculos de Bornac converteram-se em barras de aço. Suportou o olhar investigador de Danielson e indagou:
— Porquê?
— Correm muitos rumores a respeito de si, juiz, não quero mentir-lhe. Talvez sejam infundados; mas repito que não me agradam. 0 delegado a amigo de Salinger, facto que não tem nada de estranho, porque é o dono de quase toda a cidade e raros são os habitantes daqui que não te devem alguma coisa. Quanto ao advogado, Melden, é o dono do armazém e das cavalariças do fim da rua, não é mau homem, mas tem miolos de mosquito.
Imprimiu ao resto da sua informação um tom pouco habitual.
— Resta o senhor, juiz, para ser imparcial, visto o júri dançar ao som da música que lhe tocarem. Confio que o senhor seja imparcial.
Bornac esteve tentado a manda-lo... a qualquer parte, mas conteve-se. Corn os seus antecedentes, era logico que não se fiassem no seu procedimento.
Danielson meteu uma grande chave na fechadura e deu-lhe volta. 0 juiz examinou corn curiosidade o detido que jazia deitado no catre e fumava um cigarro. não se moveu quando os dois homens entraram no recinto engradado.
— Este é o juiz Bornac, Ben. Quer falar contigo.
— Olá, juiz.
Era um jovem de mediana estatura, esbelto, de ombros talvez um pouco estreitos, rosto afilado, pálido, no qual brilhavam uns grandes olhos negros. Parecia-se vagamente com a irmã, se bem que diferisse dela em tudo o mais.
Era difícil catalogá-lo no primeiro momento. No entanto, o seu queixo frágil, o seu corpo franzino, assim como toda a sua aparência nervosa, sensível, não eram próprios de um meio como aquele do Mogollon.
Bornac puxou um banco redondo que se encontrava a um canto e sentou-se. 0 xerife colocou-se junto da porta.
— Rapaz — começou o juiz estas em maus lençóis. Dentro de poucos dias realiza-se o teu julgamento e o mais certo é que tenhas de dar uma grande salto... Tudo parece indicar que assassinaste Potter. Foste tu?
Ben não se dignou responder. Continuou de olhos postos no tecto, expelindo fumo e corn a intenção de formar argolas perfeitas. Bornac endireitou a sua alta estatura e afastou o banco corn um pontapé.
— Está bem. Talvez não te apercebas cabalmente da tua situação, ou penes que vai acontecer qualquer coisa que te restitua a liberdade. Lamento desenganar-te, Ben. Se não se descobrirem novas elementos, não restar outro remedio senão condenar-te. Por que não dizes a verdade?
0 rapaz ergueu-se e cravou os olhos ardentes em Bornac.
— Que verdade? Se soubesse quem matou Potter di-lo-ia; mas não sei. Entende? não me lembro de nada do que se passou naquela noite, exceto que vi o corpo de Potter corn a cabeça desfeita. Nisso terminam todas as minhas recordações.
Retorcia as mãos corn desespero.
— Alguém podia saber que me encontrava embriagado e aproveitar a conjuntura para cometer o crime.
— E de Rosa, que sabes?
As faces delicadas de Ben crisparam-se.
— Que quer dizer? 0 inferno me trague se fago ideia de onde possa encontrar-se ou do que lhe aconteceu.
Bornac permaneceu uns instantes em atitude reflexiva.
— Bern, o facto de, depois de uma borracheira, perderes a memoria, talvez não seja um bom truque. Podias cometer o crime e escudares-te nisso...
— Bom, pois se o cometi não me lembro. Juro-lhe que não me lembro, juiz! não faço outra coisa senão pensar nisso. Como diabo quer que o saiba o que sucedeu? E horrível perder assim a memoria das coisas...
O irmão de Sue exprimia-se corn autentica angustia. Bornac virou a cabeça para captar a reação do xerife.
O representante da Lei em Marte tinha claramente refletido no semblante o que pensava daquilo.
— Está bem, rapaz — disse. — Acalma-te. Faremos o possível por preencher as lacunas da tua memoria.
Ben ficou-se a olha-los corn uma luz nas pupilas, de animal encurralado.
— Obrigado, xerife — murmurou. — Por favor,. diga a minha irmã que não se esqueça de mandar-me uma camisa limpa.
— Descansa.
Saíram corn a penosa impressão de serem cúmplices de uma iniquidade.
De novo no escritório, Danielson encarou Bornac e disparou-lhe:
— Poria a minha mão direita no fogo se esse rapaz fosse culpado. Que pensa o senhor, juiz?
O interpelado respondeu cautelosamente:
— Nunca aposto nem sequer os botões do meu fato por um delinquente... ou presumível delinquente. Contudo, o jovem Kunetzky parecia ser sincero. Mas não nos disse que não praticou o crime; apenas que não se recorda...
Danielsen bufou como se um pele-vermelha lhe tivesse cravado em certo sitio uma flecha incendiada.
— Juiz, lembro-lhe que o julgamento terá uma testemunha excecional — declarou de dentes cerrados.
— Penso assistir e seguir passo a passo quanto acontecer. E se verificar que o senhor aceita o veredicto de um júri composto por homens amigos de Salinger e que Ben Kunetzky é um condenado a forca, pode levar os seus revólveres para o tribunal porque Id lhe serão precisos.
0 olhar frio de Bornac pareceu trespassa-lo.
— Isso é muito razoável, xerife — declarou. — Mas, se pensar bem, compreendera que o senhor também tenta subornar-me a seu modo.
Deixou Danielson corn um ar de assombro no seu rosto corado e saiu para a rua.
Um ácido sorriso arrepanhava-lhe os lábios. A sua situação não podia ser menos brilhante. Em cerca de doze horas conseguira virar contra si todos os cidadãos, daquela terra.
Quer condenasse, quer absolvesse Ben Kunetzky, a sua própria causa estava perdida. Nem um amigo.
Decididamente, «a Justiça era a coisa mais solitária deste mundo».
Mas não conseguia classificar o juiz Bornac. Ou a sua ideia acerca da venalidade estava errada ou o alto sujeito •que tinha diante de si representava um tipo de homem totalmente oposto.
— Deve compreender, juiz, que não pretendo um julgamento falso. Apenas procuro defender o meu filho da imputação desse crime.
Bornac arqueou ligeiramente as sobrancelhas.
— Macacos me mordam se o entendo — confessou. — Prenderam Ben Kunetzky como autor da morte do velho Potter e do rapto da filha; as provas parecem concludentes. Porque, então, esse medo?
Salinger corou, não de perturbação, mas de raiva.
— Se falar corn a gente desta cidade, compreendera o que temo. 0 meu filho é...
Hesitou, e o juiz simpatizou corn aquele rude vaqueiro, cujo descendente tao pouco se parecia corn ele.
Porque também o juiz se equivocara a respeito do individuo que o mandara buscar. Bastava ver aqueles traços enérgicos, marcados pelo constante batalhar contra a natureza e os homens, para afastar a hipótese de tratar-se de um embusteiro profissional, de um trampolineiro capaz de valer-se de intermediário para conseguir os seus fins.
— Tony gosta muito de raparigas e as vezes excede--se — acabou por revelar Salinger. — Isso criou-lhe ma reputação. Por outro lado, dedicou as suas atenções a Rosa Potter... Compreende? Se não se provar, com toda a espécie de pronunciamentos favoráveis, que foi Ben quem assassinou o velho, o povo acreditara ter sido Tony o autor da façanha.
Bornac ficou um tanto perplexo.
— E pensa que um julgamento realizado em tais condições poderá mudar essa opinião?
0 rancheiro meneou vigorosamente a sua quadrada cabeça.
— Não me entendeu, juiz. As razoes morais não me interessam para nada; o que pretendo é que Tony não possa ser acusado «oficialmente» desse crime. E para isso preciso que Ben Kunetzky seja pendurado na ponta de uma corda.
Bornac estremeceu perante a brutal franqueza do set interlocutor.
— E se se demonstra que ele não cometeu o crime, também quer que o pendurem numa corda?
Os olhos dos dois homens chocaram-se como espada no ar. Salinger comprimiu os lábios ate formarem uma linha quase invisível.
— Exatamente, se não houver outro remedio. Essa a razão por que o mandei vir.
O juiz sabia-o; mas ouvi-lo corn tamanha clareza causou-lhe o efeito de uma purga. 0 sabor acido, sulfuroso, daquelas palavras levou-o a outra conclusão, que alias • já imaginara ter descoberto na noite anterior.
Nao estava disposto a secundar os pianos de Salinger; faria justiça. Uma justiça que o levaria adiante de si, confundido num monte de lixo. Mas isso já não lhe interessava.
Levantou-se corn calma, corn o rosto tenso e as pálpebras semicerradas.
— Vai apanhar uma desilusão, Salinger — declarou, sublinhando as palavras. — Presidirei ao tribunal, e far-se-á justiça. não contra Ben Kunetzky, mas sim contra o assassino de Potter.
Salinger ficou uns segundos imóvel. Depois, exalou um suspiro e sorriu.
— já esperava isso — disse o que só demonstra que é mau jogar corn as cartas marcadas. Pensou bem, juiz?
— Sim.
O rancheiro pôs-se em pe. Chegava-lhe ao ombro corn a cabeça, mas era ele quem dominava no gabinete onde se encontravam. A sua maciça figura, o seu queixo proeminente, os olhos castanhos rodeados de pálpebras duras, quase sem pestanas, e o cabelo grisalho, liso, completavam a estampa mais genuína do Oeste legendário, do homem forte que domina a terra e a vontade dos outros.
Mas ali estava procurando subornar a Justiça para que um produto do seu próprio sangue não sofresse o castigo a que, seguramente, fizera jus.
— Tenho muito poder, juiz — declarou corn voz rouca e o senhor não é pessoa por quem qualquer se sacrifique.
— Bem sei. Cada um conhece as suas fraquezas. Apesar de tudo, por mais que lhe pese, eu julgarei Ben Kunetzky. E se verificar que não cometeu o crime, essa será a sentença que ditarei.
Dito isto, deu meia-volta e encaminhou-se para a porta. Atravessou um salão sem encontrar mais ninguém alem de um negro que procedia a limpeza e, ao transpor a varanda alpendrada, a luz viva do sol feriu-lhe as retinas.
Olhou a sua volta e reparou num homem que prendia o cavalo a um poste e dirigia a seguir os seus passos para a casa. Qualquer coisa no seu porte e na sua maneira de andar obrigou a mem6ria do juiz a passar as fichas do seu arquivo mental.
Juraria que o homem não lhe era desconhecido, mas não conseguia recordar-se onde já o vira. Encolheu os ombros e partiu.
A sua ideia era interrogar o prisioneiro. Aquele contacto parecia-lhe indispensável.
Percorreu a rua principal sem pressa, pelo meio da calçada, corn a vista cravada no horizonte, embora na realidade perfeitamente atento ao que se passava a sua volta.
Sentia-se meio alegre e meio triste. A decisão que tomara ia pôr à prova todos os seus recursos. Não queria enganar-se. A partir daquele momento seria a peça cobiçada de ambos os bandos.
Salinger tentaria por todos os meios forçar-lhe a mão no caso do julgamento, e não seria inimigo de desprezar. Quanto a Sue Kunetzky e aos seus amigos, também não lhe dariam quartel.
Deteve o seu passeio em frente do escritório do xerife e entrou.
Danielson ergueu a cabeçorra, coroada de cabelos brancos, e perscrutou corn os seus claros olhos azuis o visitante.
— Juiz Bornac, não é verdade?
Soergueu-se do cadeirão e estendeu a destra. Bornac apertou-lha corn força. Logo à primeira vista se sentiu atraído por aquela cara franca, sem malicia.
— Um cigarro? — ofereceu o xerife, que retomou o seu lugar atrás da secretaria.
0 juiz recusou corn um gesto e registou ligeiramente corn o olhar o interior do aposento. Uma sala ampla, corn um par de armários onde se viam carabinas corn meio seculo e uma bailarina exibindo as pernas numa versão americana do «can-can».
— Xerife, quero que me fale deste caso. Você encontrou Ben Kunetzky depois de descobrir o velho Potter assassinado?
— Não foi exatamente assim. Ben foi encontrado primeiro. Quase sempre, depois de uma bebedeira, aparecia nos sítios mais inesperados e sem se lembrar de nada do que fizera. Naquele dia, um vaqueiro chamado John Forbes, que passeava nas imediações da cabana de Potter, viu aparecer Ben, cujo aspeto lhe chamou a atenção. Tinha manchas de sangue na camisa e o ar de quem foge de qualquer coisa.
— Compreendo. Dizem que foi encontrado em seu poder um lengo de Rosy. não sabem nada desta?
— Nao. Desapareceu sem deixar rasto. E isso é o mais estranho.
— Bern. Posso ver o detido?
Danielson recostou-se e chupou corn forca o cigarro.
— Naturalmente. Tem o direito disso. Depois conhecerá o delegado e o defensor.
Levantou-se e guiou o juiz por um comprido corredor em cujo extremo ficavam as celas. Deteve-se diante das grades de uma.
— Aqui o tem.
Mas não esboçou o gesto de franquear-lhe a entrada. No seu semblante refletia-se a indecisão.
— Que tem, xerife?
— Juiz — decidiu-se Danielson —, é meu dever preveni-lo de que tudo quanto se relacione com este julgamento não esta claro. Existem pessoas, que o senhor deve conhecer, muito interessadas em que Ben seja pendurado pelo pescoço. Outras, pelo contrario, trabalham para liberta-lo.
— Estou informado, xerife.
— Sim, mas também ignora, decerto, que Salinger recusou o juiz Hamilton. Depois, foi ele quem mencionou o seu nome... E isso não me agrada.
Os músculos de Bornac converteram-se em barras de aço. Suportou o olhar investigador de Danielson e indagou:
— Porquê?
— Correm muitos rumores a respeito de si, juiz, não quero mentir-lhe. Talvez sejam infundados; mas repito que não me agradam. 0 delegado a amigo de Salinger, facto que não tem nada de estranho, porque é o dono de quase toda a cidade e raros são os habitantes daqui que não te devem alguma coisa. Quanto ao advogado, Melden, é o dono do armazém e das cavalariças do fim da rua, não é mau homem, mas tem miolos de mosquito.
Imprimiu ao resto da sua informação um tom pouco habitual.
— Resta o senhor, juiz, para ser imparcial, visto o júri dançar ao som da música que lhe tocarem. Confio que o senhor seja imparcial.
Bornac esteve tentado a manda-lo... a qualquer parte, mas conteve-se. Corn os seus antecedentes, era logico que não se fiassem no seu procedimento.
Danielson meteu uma grande chave na fechadura e deu-lhe volta. 0 juiz examinou corn curiosidade o detido que jazia deitado no catre e fumava um cigarro. não se moveu quando os dois homens entraram no recinto engradado.
— Este é o juiz Bornac, Ben. Quer falar contigo.
— Olá, juiz.
Era um jovem de mediana estatura, esbelto, de ombros talvez um pouco estreitos, rosto afilado, pálido, no qual brilhavam uns grandes olhos negros. Parecia-se vagamente com a irmã, se bem que diferisse dela em tudo o mais.
Era difícil catalogá-lo no primeiro momento. No entanto, o seu queixo frágil, o seu corpo franzino, assim como toda a sua aparência nervosa, sensível, não eram próprios de um meio como aquele do Mogollon.
Bornac puxou um banco redondo que se encontrava a um canto e sentou-se. 0 xerife colocou-se junto da porta.
— Rapaz — começou o juiz estas em maus lençóis. Dentro de poucos dias realiza-se o teu julgamento e o mais certo é que tenhas de dar uma grande salto... Tudo parece indicar que assassinaste Potter. Foste tu?
Ben não se dignou responder. Continuou de olhos postos no tecto, expelindo fumo e corn a intenção de formar argolas perfeitas. Bornac endireitou a sua alta estatura e afastou o banco corn um pontapé.
— Está bem. Talvez não te apercebas cabalmente da tua situação, ou penes que vai acontecer qualquer coisa que te restitua a liberdade. Lamento desenganar-te, Ben. Se não se descobrirem novas elementos, não restar outro remedio senão condenar-te. Por que não dizes a verdade?
0 rapaz ergueu-se e cravou os olhos ardentes em Bornac.
— Que verdade? Se soubesse quem matou Potter di-lo-ia; mas não sei. Entende? não me lembro de nada do que se passou naquela noite, exceto que vi o corpo de Potter corn a cabeça desfeita. Nisso terminam todas as minhas recordações.
Retorcia as mãos corn desespero.
— Alguém podia saber que me encontrava embriagado e aproveitar a conjuntura para cometer o crime.
— E de Rosa, que sabes?
As faces delicadas de Ben crisparam-se.
— Que quer dizer? 0 inferno me trague se fago ideia de onde possa encontrar-se ou do que lhe aconteceu.
Bornac permaneceu uns instantes em atitude reflexiva.
— Bern, o facto de, depois de uma borracheira, perderes a memoria, talvez não seja um bom truque. Podias cometer o crime e escudares-te nisso...
— Bom, pois se o cometi não me lembro. Juro-lhe que não me lembro, juiz! não faço outra coisa senão pensar nisso. Como diabo quer que o saiba o que sucedeu? E horrível perder assim a memoria das coisas...
O irmão de Sue exprimia-se corn autentica angustia. Bornac virou a cabeça para captar a reação do xerife.
O representante da Lei em Marte tinha claramente refletido no semblante o que pensava daquilo.
— Está bem, rapaz — disse. — Acalma-te. Faremos o possível por preencher as lacunas da tua memoria.
Ben ficou-se a olha-los corn uma luz nas pupilas, de animal encurralado.
— Obrigado, xerife — murmurou. — Por favor,. diga a minha irmã que não se esqueça de mandar-me uma camisa limpa.
— Descansa.
Saíram corn a penosa impressão de serem cúmplices de uma iniquidade.
De novo no escritório, Danielson encarou Bornac e disparou-lhe:
— Poria a minha mão direita no fogo se esse rapaz fosse culpado. Que pensa o senhor, juiz?
O interpelado respondeu cautelosamente:
— Nunca aposto nem sequer os botões do meu fato por um delinquente... ou presumível delinquente. Contudo, o jovem Kunetzky parecia ser sincero. Mas não nos disse que não praticou o crime; apenas que não se recorda...
Danielsen bufou como se um pele-vermelha lhe tivesse cravado em certo sitio uma flecha incendiada.
— Juiz, lembro-lhe que o julgamento terá uma testemunha excecional — declarou de dentes cerrados.
— Penso assistir e seguir passo a passo quanto acontecer. E se verificar que o senhor aceita o veredicto de um júri composto por homens amigos de Salinger e que Ben Kunetzky é um condenado a forca, pode levar os seus revólveres para o tribunal porque Id lhe serão precisos.
0 olhar frio de Bornac pareceu trespassa-lo.
— Isso é muito razoável, xerife — declarou. — Mas, se pensar bem, compreendera que o senhor também tenta subornar-me a seu modo.
Deixou Danielson corn um ar de assombro no seu rosto corado e saiu para a rua.
Um ácido sorriso arrepanhava-lhe os lábios. A sua situação não podia ser menos brilhante. Em cerca de doze horas conseguira virar contra si todos os cidadãos, daquela terra.
Quer condenasse, quer absolvesse Ben Kunetzky, a sua própria causa estava perdida. Nem um amigo.
Decididamente, «a Justiça era a coisa mais solitária deste mundo».
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