Bornac fez parar o alazão ao chegar ao cimo da rua. Um letreiro iluminado por uma lanternita atraiu a sua atenção: «Chaparral». Era um restaurante e o cheiro a molhos e especiarias que se escapava através da porta denunciava a sua condição mexicana.
À direita, havia outra casa de teto mais baixo e com toda a aparência de ser um anexo. Com um pouco de sorte, talvez lhe alugassem um quarto para dormir.
Por todos as razões, preferia a companhia dos mexicanos à de qualquer outro cidadão de Marte. Sem dúvida os descendentes dos astecas e dos toltecas manter-se-iam alheios ao conflito que agitava a cidade.
Desceu, pois, da sela e entrou no estabelecimento. Havia um salão em forma de L, e na parte interior da letra erguia-se o balcão e, atrás dele, a cozinha e demais dependências.
Várias mesas com toalhinhas aos quadrados, luz pobre que mal disfarçava as marcas das moscas, e gordura e pó nos interstícios em quantidade suficiente para construir uma pirâmide.
Cerca de uma dezena de pessoas se encontravam ali naquele momento. Mexicanos e alguns amarelos.
Bornac encaminhou-se para um canto, ocupou um banco e estendeu as compridas pernas por baixo da mesa. Tirou o chapéu, que colocou atrás de si, no chão, e transmitiu com a vista uma mensagem ao moço.
Este era um tipo taciturno, de faces chupadas, grandes bigodes e olhos encovados, de expressão triste. Contemplou sem nenhum entusiasmo o juiz, que lhe encomendou uma omeleta de feijão e um guisado de carne com batatas.
Notava-se imediatamente a diferença entre aquela gente e os naturais do país. Os comensais do «Chaparral» não perdiam de vista o novo cliente e seguiam todos o seus gestos com descarada atenção.
Bornac acabou de jantar e recostou-se contra a parede a enrolar um cigarro. Através das volutas de fumo examinou o salão e os homens e as mulheres que o observavam com ar de papalvos.
Um sentimento de amargura o foi invadindo. Apercebia-se de que para eles representava, com o seu severo trajo negro, o seu aspeto duro e ascético, o mais genuína símbolo da Justiça.
E tinha de ser-lhe muito desagradável pensar que escarnecia da sua nobre função, que alugava a sua consciência a quem mais desse. Com brusca decisão, pôs-se em pé e abordou o moço que teve um sobressalto ao vê-lo tão perto.
— Preciso de um quarto para mim e que me tratar do cavalo.
— Há percevejos.
— Tenho revólveres.
— Bom. Dois dólares.
O negócio concluíra-se com fulminante rapidez. Bornac esperou que o empregado lhe entregasse a chave do quarto, enquanto um pensamento lhe brincava na cabeça. Recordava a soberba figura de Sue Kunetzky. Não seria mau oferecer-lhe a
salvação do irmão. Talvez ela lha agradecesse...
Ao reparar na vilania daquele pensamento, Bornac sentiu revolverem-se-lhe as entranhas. Era o ponto mais baixo a que podia chegar e quis saborear até ao fim a sua degradação.
Sim, sem dúvida a valente rapariga não hesitaria em arriscar também aquilo, para que o irmãozinho furtasse o pescoço ao nó corrediço. E ele podia fazê-lo. Um ardor intolerável entreabriu-lhe todos os poros da pele. Sentiu o corpo tenso e uma corrente elétrica percorrer-lhe os cabelos.
— Aqui tem a chave, senhor.
A voz do criado despertou-o do transe e obrigou-o a olhar desvairado à sua volta. Notou que uma morena, de olhos grandes e aveludadamente negros, lhe sorria. Talvez tivesse descoberto o seu segredo.
— Suba pela escada do fundo. IÉ o quarto número dezoito. Se lhe morderem os percevejos, não se esqueça de que o preveni.
O juiz pegou na peça de metal. Acalmara-se e de novo conservava o domínio dos sentidos. Depois de atirar uma moeda ao homem, dirigiu-se para a esquina do salão.
Logo, porém, se deteve porque alguém acabava de pronunciar o seu nome. Girou lentamente sobre os pés, com as mãos prontas a pegarem nas coronhas dos «Colts».
Três homens haviam transposto a entrada. Três inconfundíveis tipos de pistoleiros, de bandidos do Oeste, embora entre eles se notassem algumas subtis diferenças. Por exemplo, o primeiro, aquele que gritara, era um garoto, galo que ainda não estreara os esporões, com as penas demasiado compostas para não inspirar o desejo de dar-lhe uma lição.
Os seus acompanhantes tinham a aparência de fanfarrões a soldo, tratantes por dever de ofício, mas mais experientes, mais homens. Camisas desbotadas pelo uso, chapéus amolgados e calças reluzentes nas entrepernas, à força de roçarem nas selas de montar.
O franganito, alto, esbelto, de traços finos, envergava camisa verde, jaleco de camurça, calças cinzentas de fina lã, botas de meio cano e chapéu também cinzento, de copa baixa. E trazia uns revólveres de museu, com incrustações de madrepérola nas coronhas.
— Eh, juiz! — repetiu e deu uns passos na sua direção — Sou Tony Salinger e meu pai mandou-me para que o leve à sua presença.
Tinha uma voz sonora, um tanto modulada. Possivelmente, devia ter jeito para o canto. Bornac tirou-lhe as medidas de lutador e julgou-o mais perigoso do que o seu aspeto denotava.
— Não quero ver seu pai esta noite — declarou pausadamente. — Já o disse a Curly, o seu capataz, segundo, creio. Estou cansado e apenas quero dormir.
— Mas meu pai deseja saber o que se passou hoje. Como sabe ,a irmã de Ben Kunetzky chegou à cidade dizendo que o senhor não presidiria ao tribunal que julgará a causa.
— Ela tem o direito de dizer o que quiser. Mas o caso é que estou aqui, não? Verei o seu pai amanhã, Tony.
Naquele momento um dos guarda-costas adiantou-se com passo de gorila. Possuía cara larga, lisa, na qual o tempo, os punhos dos seus inimigos e duas ou três doenças infeciosas se tinham conjugado para formar um quadro muito desagradável.
— Deixa-nos este pássaro rapaz — arrotou.
Tony fez um gesto, recomendando-lhe que se abstivesse de intervir, mas era evidente que não lhe tinham respeito.
— O senhor Salinger quer vê-lo, juiz — insistiu o pistoleiro, empestando o ar com o cheiro do seu bafo — e o senhor virá comigo como um bom menino, hem?
— Os bons meninos não gostam de ser mandados, imbecil — admoestou-o Bornac.
— Armando em valentão, hem?
Estendeu a manápula direita para pegar o juiz pela gola, mas no seu lugar encontrou o vácuo. Girou então, para deter o avanço de lado que realizara Bornac. Mas no seu maxilar, por baixo da orelha, incrustou-se um punho granítico, com a virulência de uma cornada, que o sacudiu da nuca aos porcos dedos dos pés. Por sorte, não teve tempo de queixar-se da perfurante dor; outro murro no esterno produziu-lhe o efeito , de o partirem em dois.
O seu companheiro inclinou-se para diante e aqueceu com as mãos os extremos salientes das armas. Mas conteve-se ao ver-se vigiado pelo acerado olho -do revólver direito do juiz.
Tony deixou ouvir uma gargalhada que soou tão bem quanto o desgosto do rapaz pôde conseguir. –
— Bravo, juiz! Não fazíamos ideia de que manejasse desse modo os punhos e revólveres.
— Regozijo-me então por lhes ter dado oportunidade de verificarem. Alguns idiotas não tiveram ocasião...
Devolveu o «Colt» ao seu coldre. O tipo que surrara estava sentado no solo e sacudia a cabeça para afastar os besouros do aturdimento.
— Amanhã irei ver o seu pai, Tony. Agora, retire-se com as suas amas-secas.
Tony, que continuava a manter os dentes à mostra num heroico sorriso, quis resistir à acerada navalhada dos olhos do juiz, mas havia neles tal expressão de desprezo pela sua integridade física que q jovem se encolheu como uma nota entre os dedos de um avarento. Deu
meia-volta e afastou-se.
— Vamos — ordenou aos dois pesos-pesados. --- Levanta-te do chão, Bill.
Ajudou a pôr-se em pé o colosso derrubado e entre ele e o outro arrastaram-no para a saída.
O juiz apoiou o pé no primeiro degrau, a fim de subir para seu quarto, mas voltou-se ao sentir passos precipitados atrás de si.
Desta vez tratava-se do moço.
— Ouça, juiz articulou com ansiedade —, estaria melhor no hotel «Marte». Já lhe disse que...
— Sim, que há percevejos. Bom, não se preocupe tenho a pele curtida e os percevejos que mais me, incomodam são os que caminham sobre duas pernas.
O homem tossiu e retirou-se com celeridade.
Bornac pôde, por fim, subir ao andar de cima e procurar, depois, o quarto que lhe tinham destinado.
Confessou a si mesmo que o encarregado do restaurante não o enganara. Existia uma enorme sujidade nos móveis — um pequeno armário, um lavatório e um catre com enxergão de palha — e se aquele não era o reino da percevejelândia os seus conhecimentos geográficos do reino animal mereciam ser revistos.
Mas a picada de um bichito carecia de importância, comparada com a perspetiva de ter de receber a visita de um amigo de Sue Kunetzky, disposto a impedir o julgamento do seu amigo à custa de abrir-lhe uns tantos buracos na testa.
Trancou a porta com urna cadeira, fechou a janela que dava para os currais e tirou apenas o casaco. A seguir atirou-se sobre a cama.
Mas logo se levantou e arrastou a armação de madeira que constituía a cama para o canto existente entre o lavatório e a janela, a fim de pôr-se a coberto de que o alvejassem de fora.
Acometeu-o um sono profundo que, apesar dos seus esforços para manter-se meio acordado, o arrastou para o poço da inconsciência mais completa. Poderiam deitar a casa abaixo que não daria por nada.
Mas, por ironia do destino, os seus anjos da guarda foram os mesmos que escorraçara com tanta violência quando o convidaram a visitar Salinger.
Bill e a sua alma gémea montaram a vigilância nas imediações do restaurante. O velho rancheiro fora claro e preciso:
— Tragam-mo amanhã são e salvo. Se lhe acontecer alguma coisa, agarrem-se ao rabo de uma serpente voadora para escaparem ao meu castigo.
E Mosy Salinger tinha defeitos, mas entre eles não se contava o hábito de faltar ao cumprimento da palavra dada.
Na verdade, houve também outra pessoa que se preocupou com a segurança do juiz. O xerife Bob Danielson suspeitava que aquele homem concitava sobre a sua tétrica figura os maiores ódios.
Informou-se da sua chegada e de que, pela segunda vez no espaço de poucos dias, se evitara o linchamento do seu prisioneiro. Também o informaram do procedimento de Sue Kunetzky.
Foi visitar a rapariga à cabana que habitava nos arredores. Antes de alcançar a quebrada, paralisou-o um tiro. A bala incrustou-se no tronco de um abeto, a escassas polegadas da sua cabeça.
Dominando o cavalo que se encabritara, Danielson rompeu o ar com o seu vozeirão:
— Eh, Roy, diz a Sue que desejo falar-lhe!
— Deixe cair os revólveres e desça do cavalo.
— Não sejas idiota, rapaz. Sue conhece-me e sabe que não sou capaz de pregar-lhe uma partida.
Voltou a reinar o ambiente sonoro normal rumor de folhagem, os gritos dos mochos e as correrias dos esquilos, em combinação com a fragor da torrente próxima. Ao fim de alguns minutos, a voz de cana rachada do anão ouviu-se a menor distância:
— Está bem, xerife. Mas avance com as mãos sobre o arção.
Rindo-se entre dentes de tantas precauções, Danielson bateu na garupa do seu baio. A pouco e pouco, distinguiu as figuras de Roy e de outro homem que lhe apontava uma carabina.
Sem dizerem palavra acompanharam-no até à habitação dos Kunetzky, uma construção habitual naquelas paragens, com um só telhado para duas casas, entre as quais se abria uma varanda coberta.
Os troncos velhos ameaçavam ruína nalguns pontos, apesar de protegidos por grossas trepadeiras. O luar emprestava à paisagem um encanto especial, fantástico. Sue esperava o xerife à entrada. Os seus claros olhos cinzentos pareciam dois lagos que tivessem aprisionado o mistério, a magia da noite.
— Que deseja, Danielson?
O representante da Lei desmontou e aproximou-se da jovem.
— Sue — a sua voz era severa, mas deixava transparecer uma inevitável simpatia —, estás a portar-te como uma garota. Não te censuro que queiras defender o teu irmão — nisso nos empenhamos todos —, mas não tolero que te batas com esse velho canalha do Salinger e com a sua quadrilha de pistoleiros.
— Nesse caso, que devemos fazer, xerife? Aguardar o julgamento... comprado?
Realmente pusera o dedo na chaga.
— Eu acredito na Justiça, Sue.
— Sim, mas não quando a representa esse juiz.
— Falarei com ele, Sue — prometeu. -- E vou fazer--te uma jura: se o julgamento não for conforme o direito; se Morice Bornac ofender o seu cargo com uma sentença injusta, ou se se demonstrar ter havido parcialidade na forma de apreciar as provas e os depoimentos das testemunhas... tirarei o teu irmão da cadeia e farei frente ao juiz e a Salinger.
Estabeleceu-se uma densa pausa. O xerife acrescentou:
— Mas se atentas contra o juiz ou cometes qualquer ato irreparável, tudo será inútil, Sue. Dar-lhe-ás razão para que procedam como lhes pareça e eu terei, inclusivamente, de ser contra ti. Compreendes?
Aguardou, esperançado. Conhecia bem, a rapariga c sabia que procedia de acordo corn os seus impulsos, de certo modo elementares, mas que, apesar disco, procurava sempre o melhor caminho, o mais recto.
— Compreendo-o, xerife — falou ela, por fim. — E prometo-lhe abster-me de lutar... ate que se, comprove a falsidade desse julgamento. Então, apesar de ser mulher, empregarei todos os meios para devolver a procedência esse maldito representante de Satanás.
E o xerife não apostaria um cabelo do lado contrário.
À direita, havia outra casa de teto mais baixo e com toda a aparência de ser um anexo. Com um pouco de sorte, talvez lhe alugassem um quarto para dormir.
Por todos as razões, preferia a companhia dos mexicanos à de qualquer outro cidadão de Marte. Sem dúvida os descendentes dos astecas e dos toltecas manter-se-iam alheios ao conflito que agitava a cidade.
Desceu, pois, da sela e entrou no estabelecimento. Havia um salão em forma de L, e na parte interior da letra erguia-se o balcão e, atrás dele, a cozinha e demais dependências.
Várias mesas com toalhinhas aos quadrados, luz pobre que mal disfarçava as marcas das moscas, e gordura e pó nos interstícios em quantidade suficiente para construir uma pirâmide.
Cerca de uma dezena de pessoas se encontravam ali naquele momento. Mexicanos e alguns amarelos.
Bornac encaminhou-se para um canto, ocupou um banco e estendeu as compridas pernas por baixo da mesa. Tirou o chapéu, que colocou atrás de si, no chão, e transmitiu com a vista uma mensagem ao moço.
Este era um tipo taciturno, de faces chupadas, grandes bigodes e olhos encovados, de expressão triste. Contemplou sem nenhum entusiasmo o juiz, que lhe encomendou uma omeleta de feijão e um guisado de carne com batatas.
Notava-se imediatamente a diferença entre aquela gente e os naturais do país. Os comensais do «Chaparral» não perdiam de vista o novo cliente e seguiam todos o seus gestos com descarada atenção.
Bornac acabou de jantar e recostou-se contra a parede a enrolar um cigarro. Através das volutas de fumo examinou o salão e os homens e as mulheres que o observavam com ar de papalvos.
Um sentimento de amargura o foi invadindo. Apercebia-se de que para eles representava, com o seu severo trajo negro, o seu aspeto duro e ascético, o mais genuína símbolo da Justiça.
E tinha de ser-lhe muito desagradável pensar que escarnecia da sua nobre função, que alugava a sua consciência a quem mais desse. Com brusca decisão, pôs-se em pé e abordou o moço que teve um sobressalto ao vê-lo tão perto.
— Preciso de um quarto para mim e que me tratar do cavalo.
— Há percevejos.
— Tenho revólveres.
— Bom. Dois dólares.
O negócio concluíra-se com fulminante rapidez. Bornac esperou que o empregado lhe entregasse a chave do quarto, enquanto um pensamento lhe brincava na cabeça. Recordava a soberba figura de Sue Kunetzky. Não seria mau oferecer-lhe a
salvação do irmão. Talvez ela lha agradecesse...
Ao reparar na vilania daquele pensamento, Bornac sentiu revolverem-se-lhe as entranhas. Era o ponto mais baixo a que podia chegar e quis saborear até ao fim a sua degradação.
Sim, sem dúvida a valente rapariga não hesitaria em arriscar também aquilo, para que o irmãozinho furtasse o pescoço ao nó corrediço. E ele podia fazê-lo. Um ardor intolerável entreabriu-lhe todos os poros da pele. Sentiu o corpo tenso e uma corrente elétrica percorrer-lhe os cabelos.
— Aqui tem a chave, senhor.
A voz do criado despertou-o do transe e obrigou-o a olhar desvairado à sua volta. Notou que uma morena, de olhos grandes e aveludadamente negros, lhe sorria. Talvez tivesse descoberto o seu segredo.
— Suba pela escada do fundo. IÉ o quarto número dezoito. Se lhe morderem os percevejos, não se esqueça de que o preveni.
O juiz pegou na peça de metal. Acalmara-se e de novo conservava o domínio dos sentidos. Depois de atirar uma moeda ao homem, dirigiu-se para a esquina do salão.
Logo, porém, se deteve porque alguém acabava de pronunciar o seu nome. Girou lentamente sobre os pés, com as mãos prontas a pegarem nas coronhas dos «Colts».
Três homens haviam transposto a entrada. Três inconfundíveis tipos de pistoleiros, de bandidos do Oeste, embora entre eles se notassem algumas subtis diferenças. Por exemplo, o primeiro, aquele que gritara, era um garoto, galo que ainda não estreara os esporões, com as penas demasiado compostas para não inspirar o desejo de dar-lhe uma lição.
Os seus acompanhantes tinham a aparência de fanfarrões a soldo, tratantes por dever de ofício, mas mais experientes, mais homens. Camisas desbotadas pelo uso, chapéus amolgados e calças reluzentes nas entrepernas, à força de roçarem nas selas de montar.
O franganito, alto, esbelto, de traços finos, envergava camisa verde, jaleco de camurça, calças cinzentas de fina lã, botas de meio cano e chapéu também cinzento, de copa baixa. E trazia uns revólveres de museu, com incrustações de madrepérola nas coronhas.
— Eh, juiz! — repetiu e deu uns passos na sua direção — Sou Tony Salinger e meu pai mandou-me para que o leve à sua presença.
Tinha uma voz sonora, um tanto modulada. Possivelmente, devia ter jeito para o canto. Bornac tirou-lhe as medidas de lutador e julgou-o mais perigoso do que o seu aspeto denotava.
— Não quero ver seu pai esta noite — declarou pausadamente. — Já o disse a Curly, o seu capataz, segundo, creio. Estou cansado e apenas quero dormir.
— Mas meu pai deseja saber o que se passou hoje. Como sabe ,a irmã de Ben Kunetzky chegou à cidade dizendo que o senhor não presidiria ao tribunal que julgará a causa.
— Ela tem o direito de dizer o que quiser. Mas o caso é que estou aqui, não? Verei o seu pai amanhã, Tony.
Naquele momento um dos guarda-costas adiantou-se com passo de gorila. Possuía cara larga, lisa, na qual o tempo, os punhos dos seus inimigos e duas ou três doenças infeciosas se tinham conjugado para formar um quadro muito desagradável.
— Deixa-nos este pássaro rapaz — arrotou.
Tony fez um gesto, recomendando-lhe que se abstivesse de intervir, mas era evidente que não lhe tinham respeito.
— O senhor Salinger quer vê-lo, juiz — insistiu o pistoleiro, empestando o ar com o cheiro do seu bafo — e o senhor virá comigo como um bom menino, hem?
— Os bons meninos não gostam de ser mandados, imbecil — admoestou-o Bornac.
— Armando em valentão, hem?
Estendeu a manápula direita para pegar o juiz pela gola, mas no seu lugar encontrou o vácuo. Girou então, para deter o avanço de lado que realizara Bornac. Mas no seu maxilar, por baixo da orelha, incrustou-se um punho granítico, com a virulência de uma cornada, que o sacudiu da nuca aos porcos dedos dos pés. Por sorte, não teve tempo de queixar-se da perfurante dor; outro murro no esterno produziu-lhe o efeito , de o partirem em dois.
O seu companheiro inclinou-se para diante e aqueceu com as mãos os extremos salientes das armas. Mas conteve-se ao ver-se vigiado pelo acerado olho -do revólver direito do juiz.
Tony deixou ouvir uma gargalhada que soou tão bem quanto o desgosto do rapaz pôde conseguir. –
— Bravo, juiz! Não fazíamos ideia de que manejasse desse modo os punhos e revólveres.
— Regozijo-me então por lhes ter dado oportunidade de verificarem. Alguns idiotas não tiveram ocasião...
Devolveu o «Colt» ao seu coldre. O tipo que surrara estava sentado no solo e sacudia a cabeça para afastar os besouros do aturdimento.
— Amanhã irei ver o seu pai, Tony. Agora, retire-se com as suas amas-secas.
Tony, que continuava a manter os dentes à mostra num heroico sorriso, quis resistir à acerada navalhada dos olhos do juiz, mas havia neles tal expressão de desprezo pela sua integridade física que q jovem se encolheu como uma nota entre os dedos de um avarento. Deu
meia-volta e afastou-se.
— Vamos — ordenou aos dois pesos-pesados. --- Levanta-te do chão, Bill.
Ajudou a pôr-se em pé o colosso derrubado e entre ele e o outro arrastaram-no para a saída.
O juiz apoiou o pé no primeiro degrau, a fim de subir para seu quarto, mas voltou-se ao sentir passos precipitados atrás de si.
Desta vez tratava-se do moço.
— Ouça, juiz articulou com ansiedade —, estaria melhor no hotel «Marte». Já lhe disse que...
— Sim, que há percevejos. Bom, não se preocupe tenho a pele curtida e os percevejos que mais me, incomodam são os que caminham sobre duas pernas.
O homem tossiu e retirou-se com celeridade.
Bornac pôde, por fim, subir ao andar de cima e procurar, depois, o quarto que lhe tinham destinado.
Confessou a si mesmo que o encarregado do restaurante não o enganara. Existia uma enorme sujidade nos móveis — um pequeno armário, um lavatório e um catre com enxergão de palha — e se aquele não era o reino da percevejelândia os seus conhecimentos geográficos do reino animal mereciam ser revistos.
Mas a picada de um bichito carecia de importância, comparada com a perspetiva de ter de receber a visita de um amigo de Sue Kunetzky, disposto a impedir o julgamento do seu amigo à custa de abrir-lhe uns tantos buracos na testa.
Trancou a porta com urna cadeira, fechou a janela que dava para os currais e tirou apenas o casaco. A seguir atirou-se sobre a cama.
Mas logo se levantou e arrastou a armação de madeira que constituía a cama para o canto existente entre o lavatório e a janela, a fim de pôr-se a coberto de que o alvejassem de fora.
Acometeu-o um sono profundo que, apesar dos seus esforços para manter-se meio acordado, o arrastou para o poço da inconsciência mais completa. Poderiam deitar a casa abaixo que não daria por nada.
Mas, por ironia do destino, os seus anjos da guarda foram os mesmos que escorraçara com tanta violência quando o convidaram a visitar Salinger.
Bill e a sua alma gémea montaram a vigilância nas imediações do restaurante. O velho rancheiro fora claro e preciso:
— Tragam-mo amanhã são e salvo. Se lhe acontecer alguma coisa, agarrem-se ao rabo de uma serpente voadora para escaparem ao meu castigo.
E Mosy Salinger tinha defeitos, mas entre eles não se contava o hábito de faltar ao cumprimento da palavra dada.
Na verdade, houve também outra pessoa que se preocupou com a segurança do juiz. O xerife Bob Danielson suspeitava que aquele homem concitava sobre a sua tétrica figura os maiores ódios.
Informou-se da sua chegada e de que, pela segunda vez no espaço de poucos dias, se evitara o linchamento do seu prisioneiro. Também o informaram do procedimento de Sue Kunetzky.
Foi visitar a rapariga à cabana que habitava nos arredores. Antes de alcançar a quebrada, paralisou-o um tiro. A bala incrustou-se no tronco de um abeto, a escassas polegadas da sua cabeça.
Dominando o cavalo que se encabritara, Danielson rompeu o ar com o seu vozeirão:
— Eh, Roy, diz a Sue que desejo falar-lhe!
— Deixe cair os revólveres e desça do cavalo.
— Não sejas idiota, rapaz. Sue conhece-me e sabe que não sou capaz de pregar-lhe uma partida.
Voltou a reinar o ambiente sonoro normal rumor de folhagem, os gritos dos mochos e as correrias dos esquilos, em combinação com a fragor da torrente próxima. Ao fim de alguns minutos, a voz de cana rachada do anão ouviu-se a menor distância:
— Está bem, xerife. Mas avance com as mãos sobre o arção.
Rindo-se entre dentes de tantas precauções, Danielson bateu na garupa do seu baio. A pouco e pouco, distinguiu as figuras de Roy e de outro homem que lhe apontava uma carabina.
Sem dizerem palavra acompanharam-no até à habitação dos Kunetzky, uma construção habitual naquelas paragens, com um só telhado para duas casas, entre as quais se abria uma varanda coberta.
Os troncos velhos ameaçavam ruína nalguns pontos, apesar de protegidos por grossas trepadeiras. O luar emprestava à paisagem um encanto especial, fantástico. Sue esperava o xerife à entrada. Os seus claros olhos cinzentos pareciam dois lagos que tivessem aprisionado o mistério, a magia da noite.
— Que deseja, Danielson?
O representante da Lei desmontou e aproximou-se da jovem.
— Sue — a sua voz era severa, mas deixava transparecer uma inevitável simpatia —, estás a portar-te como uma garota. Não te censuro que queiras defender o teu irmão — nisso nos empenhamos todos —, mas não tolero que te batas com esse velho canalha do Salinger e com a sua quadrilha de pistoleiros.
— Nesse caso, que devemos fazer, xerife? Aguardar o julgamento... comprado?
Realmente pusera o dedo na chaga.
— Eu acredito na Justiça, Sue.
— Sim, mas não quando a representa esse juiz.
— Falarei com ele, Sue — prometeu. -- E vou fazer--te uma jura: se o julgamento não for conforme o direito; se Morice Bornac ofender o seu cargo com uma sentença injusta, ou se se demonstrar ter havido parcialidade na forma de apreciar as provas e os depoimentos das testemunhas... tirarei o teu irmão da cadeia e farei frente ao juiz e a Salinger.
Estabeleceu-se uma densa pausa. O xerife acrescentou:
— Mas se atentas contra o juiz ou cometes qualquer ato irreparável, tudo será inútil, Sue. Dar-lhe-ás razão para que procedam como lhes pareça e eu terei, inclusivamente, de ser contra ti. Compreendes?
Aguardou, esperançado. Conhecia bem, a rapariga c sabia que procedia de acordo corn os seus impulsos, de certo modo elementares, mas que, apesar disco, procurava sempre o melhor caminho, o mais recto.
— Compreendo-o, xerife — falou ela, por fim. — E prometo-lhe abster-me de lutar... ate que se, comprove a falsidade desse julgamento. Então, apesar de ser mulher, empregarei todos os meios para devolver a procedência esse maldito representante de Satanás.
E o xerife não apostaria um cabelo do lado contrário.
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