O tribunal instalara-se num espaçoso compartimento do armazém de Malden, o advogado de defesa. Era um homem de estatura mediana, rosto redondo e corado, bigodinho preto e olhos pequenos, azuis, brilhantes de bom humor.
Arranjou-se um estrado para o júri, e Morice Bornac instalou-se atrás de uma grande mesa, com o martelo, um tinteiro e os seus livros de leis.
Ben Kunetzky tinha um aspeto patético, mais pálido do que na obscuridade da cela, com os olhos afundados nas órbitas, fugidios. Torcia as mãos e olhava, ansioso, o juiz.
Entre o público encontravam-se a irmã do acusado e os seus amigos. Aquela, em contraste com Ben, mostrava--se arrogante, cheia de vitalidade e formosura, como se desafiasse toda a gente.
Pouco antes de começar o julgamento falou com Bornac. Estava corada e percebia-se quanto lhe custava reconhecer o seu erro.
— Parece que, afinal, o senhor tinha razão. Não creio que o sucedido ontem à noite no «Chaparral» fosse parte de uma farsa. Por isso lhe peço perdão do que fiz... bem, quando o senhor vinha para cá...
O juiz contemplou-a com um indefinível sentimento de angústia. Estava certo de que aquela mulher seria a sua companheira ideal, de que eram dois seres feitos para se entenderem.
De súbito, sentiu a necessidade imperiosa de confessar-lhe o que se passava consigo, pois já não existia o obstáculo que até então o impedira de fazê-lo e o colocara numa encruzilhada trágica.
— Não se apresse a arrepender-se — murmurou. —Talvez tenha motivos para odiar-me.
— Porquê? Se não apoia Salinger, isso significa que tenciona proceder com honradez. Demonstrou-o ontem, também, quando me salvou de Tony e...
Ficou mais corada ainda e desviou a cabeça, pois queimava-a o olhar intenso e apaixonado do homem que tinha na frente.
— Era a isso que me referia — ouviu-o dizer. — Não foi o meu amor à justiça que ontem me levou a sua casa, mas o amor que lhe tenho a si. Estou apaixonado por si, apaixonado de uma maneira absorvente e feroz.
Sue ficou como que paralisada, sem saber que atitude tomar. Esperara ouvir aquilo, más não me modo tão brusco.
— Porém... — gaguejou, confusa.
— Não. «A Justiça não é, não pode ser nunca, aquilo que nos convém, a resposta ao que desejamos. A Justiça, a maior parte das vezes, faz de nós suas vítimas». E eu, ontem, não fui para si o anjo justiceiro, mas 'o homem apaixonado e ciumento.
— Não o compreendo.
Levantara a cabeça e fitava-o com os olhos cinzentos resplandecentes. Bornac não soube resistir, agarrou-a pelos ombros e puxou-a para si.
— Ao diabo tu! — exclamou. — Se um homem e uma mulher não podem amar-se, ainda que seja pelo preço das suas vidas, não vale a pena estar na terra.
Beijou-a. E foi beijado, pois a rapariga não lhe fugiu, cedeu ao seu abraço e fê-lo sentir toda a glória da vitória do homem sobre a mulher.
Ao separarem-se, Bornac disse, com voz triste:
— Aconteça o que acontecer, creia em mim, Sue.
Deixou-a intrigada e absorta e foi ocupar o seu lugar.
Salinger também se encontrava presente, assim como o homem que lhe impusera, no último instante, um julgamento imparcial: o pistoleiro «Seis Dedos». Não faltavam igualmente o xerife e os seus ajudantes.
Ao olhá-los a todos, de boa vontade Bornac teria desatado a rir, pois não era Ben Kunetzky que ia ser julgado, mas ele. Os seus juízes eram todos aqueles homens que lhe fariam pagar o seu comportamento, acabado o espetáculo. Quando pronunciasse as palavras que absolveriam ou condenariam o réu, seria a sua própria sentença que ditaria.
O delegado, que era o merceeiro gordo que fora visitá-lo em Winslow, começou a sua atuação com um ataque tão duro que, ao contrário do que desejava o ambiente se tornou mais favorável ao rapaz. Descreveu a sua infância, os seus roubos de fruta e todas as travessuras próprias dos garotos, e logo a seguir falou do dinheiro que roubara a seu pai e da vida aventurosa que levara nos Estados da costa, desde São Diego ao Cabo Flattery.
— ... tinha o crime no sangue — perorava com tanto ardor, que a camisa se lhe empapava de suor. — Ben Kunetzky é um preguiçoso, um vagabundo sem profissão nem préstimo para a comunidade. Nunca gastou um dólar na... Bem, quero dizer, nunca se comportou como um cidadão decente.
Claro que, para o merceeiro, cidadão decente era aquele que comprava na sua tenda.
Em seguida passou aos factos que iam debater-se em julgado. Descreveu o «espantoso» quadro oferecido pela cabana de Potter quando encontraram o cadáver do velho, e perdeu-se em considerações acerca da sorte que podia ter sido a da «terna criaturinha» que vivia naquele lugar escondido, Rosy, a desaparecida.
Quando terminou, a impressão geral era a de que Ben podia considerar-se livre. Nada provava que cometera o assassínio, e o desaparecimento de Rosa era, precisamente, o melhor argumento em seu favor.
— Como é possível que — clamou Malden, o defensor —, se estava ébrio — só assim poderia justificar-se o seu ato —, tivesse conseguido realizar a proeza incrível de fazer desaparecer uma pessoa? Mas ainda há mais...
Malden apontou para o juiz, que estremeceu. Que iria dizer?
— Na visita que o senhor juiz ontem fez à cabana de Potter, notou-se um facto extraordinário, que ao princípio não se teve em conta. Com exceção do morto, evidentemente, o interior da cabana estava em perfeita obra. Será isso coerente com um ébrio, com um homem enlouquecido pela paixão amorosa?
Bornac ficou perplexo e olhou para o júri. Sem dúvida tratava-se de uma prova de peso. Certamente fora o maldito anão quem facultara a informação ao advogado defensor, depois de ver a impressão que o caso causara ao juiz.
Salinger deixara pender a cabeça para o peito e Bornac compadeceu-se dele. Sabia o que sente um homem quando vê ruir aquilo por que lutou, quando no fim da vida se vê a braços com o opróbrio e a inutilidade da sua obra.
Sue e os amigos, pelo contrário, não cabiam em si de contentes. Bornac experimentou uma sensação de pânico e aniquilamento. Ia deitar tudo a perder, arruinar-se para sempre. E quando a felicidade estava tão perto, quando lhe ia ser fácil refazer a sua vida e esquecer o passado. Poderia até escapar ao perigo da vingança que o aguardava na pessoa do hercúleo pistoleiro.
Mas era inútil tentar fugir ao inevitável, encontrava-se só naquele transe e tinha de enfrentá-lo. Só como apenas o pode estar o homem que se coloca acima dos demais e julga as suas paixões e os seus erros.
O júri esperava, com impaciência, que o mandasse retirar-se para deliberar. Eram amigos de Salinger, mas o seu veredito seria «inocente». Bastava ver-lhes o rosto resoluto.
Bornac inclinou-se para a frente e falou, com voz fria e dura:
— Este Tribunal, fazendo uso das atribuições que lhe conferem as leis do Estado, deseja tornar conhecidos certos factos que não foram tomados em consideração pelas partes declarantes, talvez por não possuírem os elementos necessários.
O ambiente pareceu arrefecer subitamente e as feições da assistência endureceram. O xerife engoliu em seco, Sue pareceu petrificada e Salinger levantou vivamente a cabeça.
— Em primeiro lugar — prosseguiu o juiz —, apontou-se como motivo do crime a paixão amorosa, o que é absurdo, seja Ben Kenetzky culpado ou inocente, pois não se encontraram os mais leves vestígios de luta, como aconteceria se alguém houvesse intentado ultrajar a filha de Potter. O assassínio de Poter foi premeditado friamente. Quanto à rapariga, o seu desaparecimento explica-se facilmente: ninguém a sequestrou ou lhe fez mal, partiu por sua própria vontade e de acordo com o assassino.
Levantou-se um murmúrio, fraco ao princípio, mas que, a pouco e pouco, se transformou em algazarra.
— Dá-se conta, senhor juiz, de que...? — articulou, trémulo, o delegado Sanders.
— É um mentiroso, juiz! — gritou Sue, que se pusera em pé. — Um sujo mentiroso!
Bornac esperou um momento que a calma se restabelecesse, mas foi «Seis Dedos» quem impôs a ordem:
— Silêncio! — gritou com a sua voz aguda, metálica.
— Potter foi assassinado para ser roubado -- acrescentou o juiz, imperturbável. — Encontrava-se só na cabana, pois Rosy partira antecipadamente, para não estar presente quando o crime ocorresse. Foi ela quem facilitou ao assassino todos os pormenores acerca do esconderijo onde o velho guardava a sua fortuna, uma fortuna em pepitas de ouro acumulada nos seus tempos de mineiro. Compreendo os sentimentos que durante muito tempo agitaram a jovem, confinada num sítio selvagem e sabendo que o pai era rico e poderia proporcionar-lhe outro modo de vida. Foi isso que a levou a aceitar o plano do companheiro, naturalmente alguém em quem depositava grande confiança.
Bornac dirigiu-se ao xerife e ordenou-lhe, com voz forte:
— Xerife Danielson, mande trazer Rosa Potter a este tribunal!
Nova algazarra, mas de natureza diferente. Sue deixou--se cair lentamente na cadeira e os seus amigos imitaram--na. O testemunho mais convincente era, porém, o rosto branco, descomposto, de Ben Kunetzky, que voltou rapidamente a cabeça para assistir à chegada da pessoa anunciada.
Rosy era uma jovem morena, de feições finas, cujos olhos denunciavam uma natureza apaixonada 'e violenta: eram negros, grandes, rasgados e sombreados por enormes pestanas.
Dirigiu-se com passo firme para a teia das testemunhas, ladeada por «Knap» Jim e Slocum, e fitou Ben.
— Lamento, Ben — disse-lhe. — Estenderam-me uma asquerosa ratoeira e eu caí nela.
— Não o lamente, Rosa — cortou o juiz, que assumira o papel principal. — Agradeça antes que, na minha visita à cabana do bosque, me houvesse apercebido de certo pormenor que provava encontrar-se viva. Não resistiu à tentação de voltar para levar os seus frascos de perfume, e não viu, ou não considerou importante, que deixava pegadas no quarto. Para atraí-la bastou fingir que havia fogo em sua casa.
E continuou, num tom mais forte, mais cortante:
— Mas não passa de uma pateta, acreditou de boa fé na promessa do assassino. Ele estava convencido de que nenhum tribunal o condenaria com as provas que existiam e sem encontrar-se o seu cadáver; estudara bem a sua cartada.
Fitou Ben, que parecia prestes a desmaiar, e perguntou-lhe:
— Foi esta a sua brilhante ideia, não é verdade, Ben Kunetzky? Sabido como é que nunca se recorda de nada depois de uma bebedeira, não negaria a sua culpabilidade, limitar-se-ia a escudar-se atrás da afirmação de que ignorava o que se passara. Eram muitas as contradições existentes e tinha esperança de que a opinião dos seus concidadãos se voltasse contra Tony Salinger, mulherengo, fanfarrão c malcriado devido à brandura de um pai que lhe desculpava todas as malfeitorias. Claro que se expunha a ser linchado, mas nesse caso lá estaria sua irmã Sue, o xerife e muitos outros para o defenderem.
As suas palavras, como machadadas firmes, derrubavam infalivelmente a farsa inventada por Ben.
— Rosy contou-lhe o segredo da fortuna do velho mineiro, e você viu aí uma oportunidade para escapar à sua vida de falhado. Convenceu a rapariga de que o melhor seria tirar o tesouro ao velho e fugirem juntos, para qualquer sítio longínquo, mas não lhe disse que para isso o mataria. Claro que, depois, procurou-a e contou-lhe o que acontecera, como se fosse um acidente.
— E foi! E foi! Foi um acidente! — gritou Ben, levantando-se.
— Mente! Sempre pensou acabar com ele... e depois com Rosy. Se a deixou viva, ao princípio, foi porque isso convinha à sua defesa, pois uma vez solto procurá-la-ia e assassiná-la-ia de facto, enterrando-a em qualquer ponto da montanha onde ninguém a encontraria nunca. Ninguém saberia nunca, também, que tinha uma fortuna nas mãos. Não é verdade? Ela devia manter-se oculta até você se lhe juntar, sem saber que esperava um assassino.
Ben caiu para o chão. Soltou uma espécie de uivo, agitou-se como se mãos potentes lhe apertassem o pescoço, enquanto da boca lhe escorria uma espuma esverdeada e os olhos se lhe reviravam.
Bornac soltou um suspiro de alívio. Fora melhor assim, o rapaz era epilético e talvez o mandassem para um manicómio.
Tudo terminara. Os esbirros levaram o preso, que continuava a espernear e a contorcer-se, e a assistência foi saindo. Salinger ficou uns segundos parado, a fitá-lo, e depois saiu também.
Na sala ficaram apenas «Seis Dedos» e ele próprio. O pistoleiro fitava-o com fixidez.
Bornac levantou-se, saiu de detrás da mesa e deu alguns passos na direção do gigante.
— Pronto, «Seis Dedos», é justo que pague agora as minhas dívidas. Não tenciono fugir ao encontro.
— Eu sei, juiz. Mas diabos me levem se tenho a mínima intenção de o defrontar! É preciso muito mais coragem para fazer o que o senhor fez do que para defrontar outro homem com um revólver na mão.
Sorriu e continuou:
— Vi o que lhe custou cada palavra que pronunciou, era como se se abrisse a si próprio e dilacerasse as entranhas, para delas extrair um tumor. Garanto-lhe que eu não seria capaz de fazê-lo. Adeus, juiz, felicidades.
Deu meia volta e afastou-se. Bornac ficou só e encolheu os ombros, num movimento instintivo de defesa, percorrido por um frio estranho.
Pegou nos livros, como um autómato, a pensar que noutras partes do mundo homens como ele deviam experimentar aquela desagradável sensação de serem os únicos sobreviventes de uma grande catástrofe.
Sim, porque era uma grande catástrofe arrancar um ser humano da sociedade, por muito criminoso que ele fosse, e anulá-lo, fazê-lo desaparecer de entre os demais.
Sempre que se via obrigado a proceder de modo semelhante, o juiz sentia um choque, uma comoção, e identificava-se com o condenado, sentia-se desamparado ante o poder absoluto da Justiça.
«Porque a Justiça é uma grande consciência coletiva, a suprema consciência que rege o Universo.»
Saiu para a rua, com passo largo e seguro, e a luz violenta do sol ofuscou-o, por instantes.
Iria buscar o cavalo e depois sairia da cidade, do próprio Oeste. Deixaria de ser juiz, de realizar aquele esforço sobre-humano de estar acima dos seus semelhantes, à custa de desumanizar-se...
De súbito, viu-a. Caminhava de cabeça pendida, caídos os braços ao longo do corpo, enquanto Rosy, a seu lado, tentava consolá-la.
Bornac sentiu que qualquer coisa se quebrava dentro de si. E, afinal, por que não? Por que evitar a verdade das coisas? Nem deixaria de ser juiz, nem sairia do Oeste, nem sequer abandonaria aquela cidade.
Lutaria para que Sue o compreendesse, embora isso não fosse questão de um dia ou de um mês. Talvez passassem anos, mas no fim alcançaria a vitória, conseguiria que Sue Kunetzky esquecesse o que se passara.
«Porque a Justiça é também da vida o triunfo».
Arranjou-se um estrado para o júri, e Morice Bornac instalou-se atrás de uma grande mesa, com o martelo, um tinteiro e os seus livros de leis.
Ben Kunetzky tinha um aspeto patético, mais pálido do que na obscuridade da cela, com os olhos afundados nas órbitas, fugidios. Torcia as mãos e olhava, ansioso, o juiz.
Entre o público encontravam-se a irmã do acusado e os seus amigos. Aquela, em contraste com Ben, mostrava--se arrogante, cheia de vitalidade e formosura, como se desafiasse toda a gente.
Pouco antes de começar o julgamento falou com Bornac. Estava corada e percebia-se quanto lhe custava reconhecer o seu erro.
— Parece que, afinal, o senhor tinha razão. Não creio que o sucedido ontem à noite no «Chaparral» fosse parte de uma farsa. Por isso lhe peço perdão do que fiz... bem, quando o senhor vinha para cá...
O juiz contemplou-a com um indefinível sentimento de angústia. Estava certo de que aquela mulher seria a sua companheira ideal, de que eram dois seres feitos para se entenderem.
De súbito, sentiu a necessidade imperiosa de confessar-lhe o que se passava consigo, pois já não existia o obstáculo que até então o impedira de fazê-lo e o colocara numa encruzilhada trágica.
— Não se apresse a arrepender-se — murmurou. —Talvez tenha motivos para odiar-me.
— Porquê? Se não apoia Salinger, isso significa que tenciona proceder com honradez. Demonstrou-o ontem, também, quando me salvou de Tony e...
Ficou mais corada ainda e desviou a cabeça, pois queimava-a o olhar intenso e apaixonado do homem que tinha na frente.
— Era a isso que me referia — ouviu-o dizer. — Não foi o meu amor à justiça que ontem me levou a sua casa, mas o amor que lhe tenho a si. Estou apaixonado por si, apaixonado de uma maneira absorvente e feroz.
Sue ficou como que paralisada, sem saber que atitude tomar. Esperara ouvir aquilo, más não me modo tão brusco.
— Porém... — gaguejou, confusa.
— Não. «A Justiça não é, não pode ser nunca, aquilo que nos convém, a resposta ao que desejamos. A Justiça, a maior parte das vezes, faz de nós suas vítimas». E eu, ontem, não fui para si o anjo justiceiro, mas 'o homem apaixonado e ciumento.
— Não o compreendo.
Levantara a cabeça e fitava-o com os olhos cinzentos resplandecentes. Bornac não soube resistir, agarrou-a pelos ombros e puxou-a para si.
— Ao diabo tu! — exclamou. — Se um homem e uma mulher não podem amar-se, ainda que seja pelo preço das suas vidas, não vale a pena estar na terra.
Beijou-a. E foi beijado, pois a rapariga não lhe fugiu, cedeu ao seu abraço e fê-lo sentir toda a glória da vitória do homem sobre a mulher.
Ao separarem-se, Bornac disse, com voz triste:
— Aconteça o que acontecer, creia em mim, Sue.
Deixou-a intrigada e absorta e foi ocupar o seu lugar.
Salinger também se encontrava presente, assim como o homem que lhe impusera, no último instante, um julgamento imparcial: o pistoleiro «Seis Dedos». Não faltavam igualmente o xerife e os seus ajudantes.
Ao olhá-los a todos, de boa vontade Bornac teria desatado a rir, pois não era Ben Kunetzky que ia ser julgado, mas ele. Os seus juízes eram todos aqueles homens que lhe fariam pagar o seu comportamento, acabado o espetáculo. Quando pronunciasse as palavras que absolveriam ou condenariam o réu, seria a sua própria sentença que ditaria.
O delegado, que era o merceeiro gordo que fora visitá-lo em Winslow, começou a sua atuação com um ataque tão duro que, ao contrário do que desejava o ambiente se tornou mais favorável ao rapaz. Descreveu a sua infância, os seus roubos de fruta e todas as travessuras próprias dos garotos, e logo a seguir falou do dinheiro que roubara a seu pai e da vida aventurosa que levara nos Estados da costa, desde São Diego ao Cabo Flattery.
— ... tinha o crime no sangue — perorava com tanto ardor, que a camisa se lhe empapava de suor. — Ben Kunetzky é um preguiçoso, um vagabundo sem profissão nem préstimo para a comunidade. Nunca gastou um dólar na... Bem, quero dizer, nunca se comportou como um cidadão decente.
Claro que, para o merceeiro, cidadão decente era aquele que comprava na sua tenda.
Em seguida passou aos factos que iam debater-se em julgado. Descreveu o «espantoso» quadro oferecido pela cabana de Potter quando encontraram o cadáver do velho, e perdeu-se em considerações acerca da sorte que podia ter sido a da «terna criaturinha» que vivia naquele lugar escondido, Rosy, a desaparecida.
Quando terminou, a impressão geral era a de que Ben podia considerar-se livre. Nada provava que cometera o assassínio, e o desaparecimento de Rosa era, precisamente, o melhor argumento em seu favor.
— Como é possível que — clamou Malden, o defensor —, se estava ébrio — só assim poderia justificar-se o seu ato —, tivesse conseguido realizar a proeza incrível de fazer desaparecer uma pessoa? Mas ainda há mais...
Malden apontou para o juiz, que estremeceu. Que iria dizer?
— Na visita que o senhor juiz ontem fez à cabana de Potter, notou-se um facto extraordinário, que ao princípio não se teve em conta. Com exceção do morto, evidentemente, o interior da cabana estava em perfeita obra. Será isso coerente com um ébrio, com um homem enlouquecido pela paixão amorosa?
Bornac ficou perplexo e olhou para o júri. Sem dúvida tratava-se de uma prova de peso. Certamente fora o maldito anão quem facultara a informação ao advogado defensor, depois de ver a impressão que o caso causara ao juiz.
Salinger deixara pender a cabeça para o peito e Bornac compadeceu-se dele. Sabia o que sente um homem quando vê ruir aquilo por que lutou, quando no fim da vida se vê a braços com o opróbrio e a inutilidade da sua obra.
Sue e os amigos, pelo contrário, não cabiam em si de contentes. Bornac experimentou uma sensação de pânico e aniquilamento. Ia deitar tudo a perder, arruinar-se para sempre. E quando a felicidade estava tão perto, quando lhe ia ser fácil refazer a sua vida e esquecer o passado. Poderia até escapar ao perigo da vingança que o aguardava na pessoa do hercúleo pistoleiro.
Mas era inútil tentar fugir ao inevitável, encontrava-se só naquele transe e tinha de enfrentá-lo. Só como apenas o pode estar o homem que se coloca acima dos demais e julga as suas paixões e os seus erros.
O júri esperava, com impaciência, que o mandasse retirar-se para deliberar. Eram amigos de Salinger, mas o seu veredito seria «inocente». Bastava ver-lhes o rosto resoluto.
Bornac inclinou-se para a frente e falou, com voz fria e dura:
— Este Tribunal, fazendo uso das atribuições que lhe conferem as leis do Estado, deseja tornar conhecidos certos factos que não foram tomados em consideração pelas partes declarantes, talvez por não possuírem os elementos necessários.
O ambiente pareceu arrefecer subitamente e as feições da assistência endureceram. O xerife engoliu em seco, Sue pareceu petrificada e Salinger levantou vivamente a cabeça.
— Em primeiro lugar — prosseguiu o juiz —, apontou-se como motivo do crime a paixão amorosa, o que é absurdo, seja Ben Kenetzky culpado ou inocente, pois não se encontraram os mais leves vestígios de luta, como aconteceria se alguém houvesse intentado ultrajar a filha de Potter. O assassínio de Poter foi premeditado friamente. Quanto à rapariga, o seu desaparecimento explica-se facilmente: ninguém a sequestrou ou lhe fez mal, partiu por sua própria vontade e de acordo com o assassino.
Levantou-se um murmúrio, fraco ao princípio, mas que, a pouco e pouco, se transformou em algazarra.
— Dá-se conta, senhor juiz, de que...? — articulou, trémulo, o delegado Sanders.
— É um mentiroso, juiz! — gritou Sue, que se pusera em pé. — Um sujo mentiroso!
Bornac esperou um momento que a calma se restabelecesse, mas foi «Seis Dedos» quem impôs a ordem:
— Silêncio! — gritou com a sua voz aguda, metálica.
— Potter foi assassinado para ser roubado -- acrescentou o juiz, imperturbável. — Encontrava-se só na cabana, pois Rosy partira antecipadamente, para não estar presente quando o crime ocorresse. Foi ela quem facilitou ao assassino todos os pormenores acerca do esconderijo onde o velho guardava a sua fortuna, uma fortuna em pepitas de ouro acumulada nos seus tempos de mineiro. Compreendo os sentimentos que durante muito tempo agitaram a jovem, confinada num sítio selvagem e sabendo que o pai era rico e poderia proporcionar-lhe outro modo de vida. Foi isso que a levou a aceitar o plano do companheiro, naturalmente alguém em quem depositava grande confiança.
Bornac dirigiu-se ao xerife e ordenou-lhe, com voz forte:
— Xerife Danielson, mande trazer Rosa Potter a este tribunal!
Nova algazarra, mas de natureza diferente. Sue deixou--se cair lentamente na cadeira e os seus amigos imitaram--na. O testemunho mais convincente era, porém, o rosto branco, descomposto, de Ben Kunetzky, que voltou rapidamente a cabeça para assistir à chegada da pessoa anunciada.
Rosy era uma jovem morena, de feições finas, cujos olhos denunciavam uma natureza apaixonada 'e violenta: eram negros, grandes, rasgados e sombreados por enormes pestanas.
Dirigiu-se com passo firme para a teia das testemunhas, ladeada por «Knap» Jim e Slocum, e fitou Ben.
— Lamento, Ben — disse-lhe. — Estenderam-me uma asquerosa ratoeira e eu caí nela.
— Não o lamente, Rosa — cortou o juiz, que assumira o papel principal. — Agradeça antes que, na minha visita à cabana do bosque, me houvesse apercebido de certo pormenor que provava encontrar-se viva. Não resistiu à tentação de voltar para levar os seus frascos de perfume, e não viu, ou não considerou importante, que deixava pegadas no quarto. Para atraí-la bastou fingir que havia fogo em sua casa.
E continuou, num tom mais forte, mais cortante:
— Mas não passa de uma pateta, acreditou de boa fé na promessa do assassino. Ele estava convencido de que nenhum tribunal o condenaria com as provas que existiam e sem encontrar-se o seu cadáver; estudara bem a sua cartada.
Fitou Ben, que parecia prestes a desmaiar, e perguntou-lhe:
— Foi esta a sua brilhante ideia, não é verdade, Ben Kunetzky? Sabido como é que nunca se recorda de nada depois de uma bebedeira, não negaria a sua culpabilidade, limitar-se-ia a escudar-se atrás da afirmação de que ignorava o que se passara. Eram muitas as contradições existentes e tinha esperança de que a opinião dos seus concidadãos se voltasse contra Tony Salinger, mulherengo, fanfarrão c malcriado devido à brandura de um pai que lhe desculpava todas as malfeitorias. Claro que se expunha a ser linchado, mas nesse caso lá estaria sua irmã Sue, o xerife e muitos outros para o defenderem.
As suas palavras, como machadadas firmes, derrubavam infalivelmente a farsa inventada por Ben.
— Rosy contou-lhe o segredo da fortuna do velho mineiro, e você viu aí uma oportunidade para escapar à sua vida de falhado. Convenceu a rapariga de que o melhor seria tirar o tesouro ao velho e fugirem juntos, para qualquer sítio longínquo, mas não lhe disse que para isso o mataria. Claro que, depois, procurou-a e contou-lhe o que acontecera, como se fosse um acidente.
— E foi! E foi! Foi um acidente! — gritou Ben, levantando-se.
— Mente! Sempre pensou acabar com ele... e depois com Rosy. Se a deixou viva, ao princípio, foi porque isso convinha à sua defesa, pois uma vez solto procurá-la-ia e assassiná-la-ia de facto, enterrando-a em qualquer ponto da montanha onde ninguém a encontraria nunca. Ninguém saberia nunca, também, que tinha uma fortuna nas mãos. Não é verdade? Ela devia manter-se oculta até você se lhe juntar, sem saber que esperava um assassino.
Ben caiu para o chão. Soltou uma espécie de uivo, agitou-se como se mãos potentes lhe apertassem o pescoço, enquanto da boca lhe escorria uma espuma esverdeada e os olhos se lhe reviravam.
Bornac soltou um suspiro de alívio. Fora melhor assim, o rapaz era epilético e talvez o mandassem para um manicómio.
Tudo terminara. Os esbirros levaram o preso, que continuava a espernear e a contorcer-se, e a assistência foi saindo. Salinger ficou uns segundos parado, a fitá-lo, e depois saiu também.
Na sala ficaram apenas «Seis Dedos» e ele próprio. O pistoleiro fitava-o com fixidez.
Bornac levantou-se, saiu de detrás da mesa e deu alguns passos na direção do gigante.
— Pronto, «Seis Dedos», é justo que pague agora as minhas dívidas. Não tenciono fugir ao encontro.
— Eu sei, juiz. Mas diabos me levem se tenho a mínima intenção de o defrontar! É preciso muito mais coragem para fazer o que o senhor fez do que para defrontar outro homem com um revólver na mão.
Sorriu e continuou:
— Vi o que lhe custou cada palavra que pronunciou, era como se se abrisse a si próprio e dilacerasse as entranhas, para delas extrair um tumor. Garanto-lhe que eu não seria capaz de fazê-lo. Adeus, juiz, felicidades.
Deu meia volta e afastou-se. Bornac ficou só e encolheu os ombros, num movimento instintivo de defesa, percorrido por um frio estranho.
Pegou nos livros, como um autómato, a pensar que noutras partes do mundo homens como ele deviam experimentar aquela desagradável sensação de serem os únicos sobreviventes de uma grande catástrofe.
Sim, porque era uma grande catástrofe arrancar um ser humano da sociedade, por muito criminoso que ele fosse, e anulá-lo, fazê-lo desaparecer de entre os demais.
Sempre que se via obrigado a proceder de modo semelhante, o juiz sentia um choque, uma comoção, e identificava-se com o condenado, sentia-se desamparado ante o poder absoluto da Justiça.
«Porque a Justiça é uma grande consciência coletiva, a suprema consciência que rege o Universo.»
Saiu para a rua, com passo largo e seguro, e a luz violenta do sol ofuscou-o, por instantes.
Iria buscar o cavalo e depois sairia da cidade, do próprio Oeste. Deixaria de ser juiz, de realizar aquele esforço sobre-humano de estar acima dos seus semelhantes, à custa de desumanizar-se...
De súbito, viu-a. Caminhava de cabeça pendida, caídos os braços ao longo do corpo, enquanto Rosy, a seu lado, tentava consolá-la.
Bornac sentiu que qualquer coisa se quebrava dentro de si. E, afinal, por que não? Por que evitar a verdade das coisas? Nem deixaria de ser juiz, nem sairia do Oeste, nem sequer abandonaria aquela cidade.
Lutaria para que Sue o compreendesse, embora isso não fosse questão de um dia ou de um mês. Talvez passassem anos, mas no fim alcançaria a vitória, conseguiria que Sue Kunetzky esquecesse o que se passara.
«Porque a Justiça é também da vida o triunfo».
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