Morice Bornac recebeu a visita dos dois emissários com o seu ar de irónica indiferença. — Sentem-se, cavalheiros.
Indicou com o braço estendido o outro lado da mesa e continuou o gesto para reclamar a presença do moço que atendia aquela parte da sala.
— Cerveja ou uísque?
— Cerveja para mim.
— Bem. Cerveja e uísque, Pet.
A seguir, e durante quase meio minuto, dedicou-se a estudar os dois tipos. Tendeiros, catalogou-os em seguida. Um deles, baixo, maciço, com certa tendência para a esfericidade, talvez por expandir-se para o meio do corpo a energia de que dava mostras nos olhos pardos e no mento saliente. Uns cinquenta anos intensamente empregados.
O seu companheiro era jovem, nem sequer devia ter trinta anos, alto e esbelto, mas possuía elegância de figurino e todo o ar de tratar com senhoras em plano comercial quase continuamente.
— Vimos em representação dos habitantes de Marte — começou o mais velho, que se deitou para diante, bateu com a barriga e endireitou-se de novo.
— Ah! Marte. Isso não fica um pouco longe?
Era o gracejo obrigatório, e Bornac riu-se interiormente daquela alusão ao planeta do mesmo nome. O moço criado deixou escapar urna gargalhada de dentes postiços. Pela sua parte, os dois delegados de Marte examinaram o juiz com não dissimulado interesse.
Corriam numerosas histórias acerca da sua pessoa. E não muito boas. Na realidade, consideravam-no homem que vendera a alma ao diabo e, a partir desse memorável dia, não tinha outra missão neste mundo senão a de atormentar os pobres infelizes que lhe caíam nas mãos.
Especialmente, a que forjara a sua reputação referia--se a May Zender, a bailarina do «saloon» chamado de «As Três Coroas», em Flagstaff. Um triste caso que tornou célebre o seu nome no Arizona e nos Estados. limítrofes.
«As Três Coroas» incendiaram-se uma noite e pereceram o dono e duas raparigas do conjunto. Das declarações das restantes deduziu-se que May, que as capitaneava, saíra da sala uma meia hora antes de começar o fogo.
No julgamento, viu-se perfeitamente que a bailarina ocultava qualquer coisa e que se negava a explicar onde fora. Aquilo e outros pormenores que surgiram fizeram que a acusação adquirisse um dramático interesse.
Não havia dúvida a respeito da culpabilidade da jovem. Ela, fosse pelo que fosse, decidira queimar o estabelecimento. Num curral próximo descobriram-se várias latas--de petróleo, vazias, e o dono de um armazém revelou que as vendera semanas atrás. O que definitivamente estabeleceu a maldade do facto foi saber-se que urna importante quantia em dinheiro faltava no cofre do «saloon», e que se notara a presença, nos dias precedentes ao incêndio, de um indivíduo que falava amiúde com May.
Era claro o que ocorrera. May preparara as cortinas, que enchera de petróleo, no sítio escolhido, a sala de jogo, e abandonara o «saloon» com tempo, a fim de forjar um alibi.
Então, o seu cúmplice, o homem que desaparecera sem deixar rasto, entrara em cena, ateara o incêndio e, aproveitando o tumulto, deitara a mão a todo o dinheiro que havia em cima das mesas.
A seguir, introduzira-se no escritório e abrira o cofre, pormenor este que confirmara ainda mais a intervenção da bailarina, que conhecia o «segredo» por gozar da confiança do proprietário do estabelecimento.
Pois apesar de semelhante evidência e de o júri a declarar culpada, por unanimidade, Bornac condenou-a Unicamente a ser deportada. Rebentou o escândalo e os enraivecidos habitantes da cidade quiseram fazer justiça por suas mãos.
Mas Bornac levou ainda mais longe a sua equívoca atuação. Naquela mesma noite fugiu com May Zender, arrebatando-a assim às iras dos vingadores, e todos pensaram, com fundamento, que uma parte do dinheiro roubado fora engrossar os bolsos do sinistro juiz.
A partir daquilo, a sua carreira andou sempre ligada a subornos do mesmo estilo.. Deixava-se subornar, numa palavra, para que ditasse sentença, favorável ou adversa, segundo o desejo de quem lhe pagava.
A sua vida, noutros aspetos, não era mais recomendável. Não tinha família nem teto estável que cobiçasse, montava o seu escritório nas tabernas ou em qualquer espelunca de má nota e como as suas amizades, se algumas tinha, pertenciam ao mundo das sombras, em lugar de nos livros de leis apoiava a sua autoridade num par de «Colts» enferrujados, sem gatilhos nem pontos de mira.
Era alto, magro, de compridos membros, cabelo louro e olhos cinzentos; e como sinal distintivo do seu cargo, ou por se coadunar bem com o seu temperamento, vestia de negro desde o chapéu às botas.
— Pois os senhores dirão, cavalheiros — convidou-os, embora pelo seu aspeto se pudesse deduzir que não lhes ligava grande importância.
— Senhor Bornac, em Marte vai realizar-se um julgamento por homicídio, e pensou-se em si para juiz.
— Mas então não têm lá um?
— Sim, temos Nat Hamilton, mas não o consideramos suficientemente imparcial para este caso.
— Ah!
Bornac bebeu um gole de cerveja e passeou o olhar pelas sujas paredes do «saloon». O tendeiro de mais idade tossiu:
— O senhor Salinger Mosy Salinger, do rancho «Campana» — está muito interessado em que o julgamento decorra dentro da maior legalidade. E como pensa que para o senhor será um incómodo...
Puxara, entretanto, de uma carteira que, por estar excessivamente recheada, trazia presa com uma cinta de borracha, e limpou enervado os lábios com a mão. O jovem que o acompanhava mexeu-se, contrafeito, no assento.
— lembrou-se de...
— Não se esforce. Mil dólares parecem-me bem como sinal, e se arranjarem as coisas com as autoridades do condado, não terei dúvida em presidir ao tribunal nesse julgamento.
Depois perguntou quem era o acusado e quais eram os factos. Com a mesma indiferença com que recebera os dois comissionados, pegou nas notas que lhe ofereciam e guardou-as na algibeira das calças.
A seguir fez um displicente gesto com a mão direita, despedindo-os, e na mesma ocasião aproveitou para chamar Pet, que acudiu pressuroso.
Não se ocupou mais dos dois homens, que saíram apressados. Pelo espaço de uma hora dedicou-se a beber cerveja e a observar os clientes que apareciam e desapareciam com regularidade.
Por fim, ergueu-se do assento e tomou a direção da porta. Ninguém o cumprimentou nem ele tão-pouco parecia desejar que o fizessem. Atravessou a rua a largas passadas, balanceando os braços, e dirigiu-se para o centro de Winlow, onde se erguia o hotel «Universal».
A força do sol declinava. Diante da «Well Fargo» desciam os passageiros da diligência precedente de Holbrook. Grupos de vaqueiros e um ou outro caçador caminhavam pachorrentamente pela calçada ou detinham-se para enrolar um cigarro.
Um cão famélico revolvia um monte de lixo e, de tempos a tempos, retorcia-se para mordiscar o lombo junto do rabo, onde as pulgas deviam atormentá-lo.
Bornac atravessou o vestíbulo e subiu a pretensiosa e escavacada escadaria. No primeiro lanço encontrou-se com um indivíduo que descia, alto e magro, de cara fechada e queixo saliente.
O desconhecido ficou a olhar fixamente até que o juiz alcançou a porta do seu quarto, e só cessou a sua descarada inspeção quando aquele se virou para lançar-. -lhe uma fria e ponderativa olhadela.
Bornac encolheu os ombros e empurrou a porta. Em seguida, o rosto contraiu-se-lhe num tique irreprimível de desagrado. Alguém se encontrava no quarto. Uma mulher.
May Zender fora formosa e ainda, apesar das faces murchas e do círculo azulado que lhe rodeava os olhos, possuía grandes atrativos. Alta, cabelo ruivo e olhos azuis. Aparentava trinta anos, mas vista de perto notava--se ter mais idade.
— Olá, Mo — cumprimentou.
O juiz acabou de fechar a porta atrás de si e avançou até à janela, junto da qual se voltou.
— Que temos agora?
Não havia muita cordialidade na sua voz. A mulher pareceu encolher-se e tomou expressão compungida.
— Mo, preciso de dinheiro.
Havia uma nota lastimosa na sua petição, como latido de um cão esfomeado a quem se corre à paulada, mas que volta com a barriga colada à terra.
— Dei-to a semana passada — recordou-lhe ele, olhou para a rua.
— Preciso de mais. Por Deus, Mo, tu sabes que preciso de mais!
Arrastou os pés na sua direção.
— Mas deves escorraçar-me, Mo; escorraçar-me e não atenderes mais as minhas súplicas. Por que não o fazes? Por que continuas a suportar-me? Arruinei a tua carreira, contribui para que sentisses asco de ti mesmo, e tudo para nada, para que este maldito monstro continue a devorar os dois. Não posso mais, Mo; não posso mais.
De repente rompeu em frenéticos soluços que lhe agitavam o corpo como se lhe dessem chicotadas e deixou-se cair sobre a cama.
— Quero morrer, Mo, acabar de uma vez.
Bornac deu uns passos e colocou-se a seu lado. Inclinou-se ligeiramente e apertou-lhe o ombro com força.
— Vamos, May; tem coragem.
Sentou-se à beira da cama e contemplou-a com desespero.
— Se me tivesses deixado então... todas as tuas dificuldades teriam terminado.
A antiga bailarina endireitou-se e torceu o busto para observá-lo.
— Não digas isso, Mo — protestou e exalou um profundo suspiro. — Bem sabes que não tinha por onde escolher... — E continuou na mesma lamúria: — Que posso fazer? Chorei, ameacei, supliquei... mas sempre com o mesmo resultado.
Bornac ergueu então os seus seis pés de estatura.
— Está bem. Não te preocupes comigo, May. Aqui tens. Governa-te com isso durante uma temporada. Eu vou-me embora.
— Vais?
Bornac assentiu com um enérgico movimento de cabeça.
— Sim. Outro julgamento.
A mulher levantou-se também e colocou-se diante dele.
— Não vás, Mo. Acaba com isso de uma vez!
— Sim?
A pergunta envolvia todo um mundo de insinuações. Ela adotou a atitude do princípio, encolhida e suplicante. Bornac sorriu-lhe.
— Talvez seja a última vez, May — disse. — Planeei deixar esta parte do país, dirigir-me para o Leste. Imagino que, desaparecido eu, o problema cessará. É o qui' penso, pelo menos...
Meteu o dinheiro que lhe tinham dado os representantes do poderoso Salinger entre os dedos da mulher.
— Agora retira-te, May. Tenho de fazer alguns preparativos.
Com delicadeza, mas inexoravelmente, empurrou-a para fora do quarto, e permaneceu junto da porta até que a sua protegida desceu a escada e desapareceu da sua vista.
De novo fechado no quarto, Morice esteve uns momentos imóvel, com as pernas ligeiramente abertas, no meio do aposento, e os olhos cinzentos cravados num ponto indeterminado do espaço.
Com um encolher de ombros, arrancou-se aos seus pensamentos e dirigiu-se para um canto do quarto, onde se encontrava uma maleta negra. Abriu-a e à vista do seu conteúdo um riso abafado alterou-lhe as feições.
Ali estavam, com as páginas meio rasgadas e amarelecidas pelo uso, os símbolos da sua profissão — uma profissão que convertera numa coisa odiosa, trocando o signo da Justiça pelo dá corrupção e da fraude.
A sua decisão de fugir para o Leste não era repentina. Constava-lhe que os seus dias como juiz estavam contados, dado serem numerosas as queixas formuladas contra si.
Regozijava-se por ser assim. Devorava-o uma ânsia terrível de escapar da sua indignidade, de empreender novo caminho, ainda que tivesse de começar pelo pior dos ofícios.
Antes, porém, praticaria um delito mais, aquele para que o chamavam da cidade que ostentava um nome tão guerreiro. Calculava de que se tratava. Um miserável qualquer, convicto de alguma malfeitoria grossa, a quem se procurava livrar da forca.
Bom. Um mais não faria transbordar o copo da delinquência. O dinheiro que obtivesse entregá-lo-ia por completo a May Zender e desligar-se-ia dela também. Para o diabo, pois, as preocupações!
Meteu na maleta os seus pertences e fechou-a com uma pancada seca, que ressoou dentro dela como se fosse um pequeno ataúde onde ia o cadáver de todas as suas ilusões.
A seguir dedicou-se, à já muito débil luz que penetrava pela janela, a examinar os revólveres. Era um ato obrigatório. Devido às suas patifarias, eram muitos os que lhe exigiam contas.
Como o filho daquele rendeiro que o procurou em Phoenix e a quem teve de matar, apesar de ter sido o causador da ruína do pai. E o vaqueiro Dollen que viu livre o assassino da mulher e dos seus dois filhos peque-nos. Mas todos aqueles homens não sabiam que Bornac era um juiz convertido em «gun-man» pela força das circunstâncias.
Um singular juiz que rematava os julgamentos na via pública, a tiro descoberto.
Indicou com o braço estendido o outro lado da mesa e continuou o gesto para reclamar a presença do moço que atendia aquela parte da sala.
— Cerveja ou uísque?
— Cerveja para mim.
— Bem. Cerveja e uísque, Pet.
A seguir, e durante quase meio minuto, dedicou-se a estudar os dois tipos. Tendeiros, catalogou-os em seguida. Um deles, baixo, maciço, com certa tendência para a esfericidade, talvez por expandir-se para o meio do corpo a energia de que dava mostras nos olhos pardos e no mento saliente. Uns cinquenta anos intensamente empregados.
O seu companheiro era jovem, nem sequer devia ter trinta anos, alto e esbelto, mas possuía elegância de figurino e todo o ar de tratar com senhoras em plano comercial quase continuamente.
— Vimos em representação dos habitantes de Marte — começou o mais velho, que se deitou para diante, bateu com a barriga e endireitou-se de novo.
— Ah! Marte. Isso não fica um pouco longe?
Era o gracejo obrigatório, e Bornac riu-se interiormente daquela alusão ao planeta do mesmo nome. O moço criado deixou escapar urna gargalhada de dentes postiços. Pela sua parte, os dois delegados de Marte examinaram o juiz com não dissimulado interesse.
Corriam numerosas histórias acerca da sua pessoa. E não muito boas. Na realidade, consideravam-no homem que vendera a alma ao diabo e, a partir desse memorável dia, não tinha outra missão neste mundo senão a de atormentar os pobres infelizes que lhe caíam nas mãos.
Especialmente, a que forjara a sua reputação referia--se a May Zender, a bailarina do «saloon» chamado de «As Três Coroas», em Flagstaff. Um triste caso que tornou célebre o seu nome no Arizona e nos Estados. limítrofes.
«As Três Coroas» incendiaram-se uma noite e pereceram o dono e duas raparigas do conjunto. Das declarações das restantes deduziu-se que May, que as capitaneava, saíra da sala uma meia hora antes de começar o fogo.
No julgamento, viu-se perfeitamente que a bailarina ocultava qualquer coisa e que se negava a explicar onde fora. Aquilo e outros pormenores que surgiram fizeram que a acusação adquirisse um dramático interesse.
Não havia dúvida a respeito da culpabilidade da jovem. Ela, fosse pelo que fosse, decidira queimar o estabelecimento. Num curral próximo descobriram-se várias latas--de petróleo, vazias, e o dono de um armazém revelou que as vendera semanas atrás. O que definitivamente estabeleceu a maldade do facto foi saber-se que urna importante quantia em dinheiro faltava no cofre do «saloon», e que se notara a presença, nos dias precedentes ao incêndio, de um indivíduo que falava amiúde com May.
Era claro o que ocorrera. May preparara as cortinas, que enchera de petróleo, no sítio escolhido, a sala de jogo, e abandonara o «saloon» com tempo, a fim de forjar um alibi.
Então, o seu cúmplice, o homem que desaparecera sem deixar rasto, entrara em cena, ateara o incêndio e, aproveitando o tumulto, deitara a mão a todo o dinheiro que havia em cima das mesas.
A seguir, introduzira-se no escritório e abrira o cofre, pormenor este que confirmara ainda mais a intervenção da bailarina, que conhecia o «segredo» por gozar da confiança do proprietário do estabelecimento.
Pois apesar de semelhante evidência e de o júri a declarar culpada, por unanimidade, Bornac condenou-a Unicamente a ser deportada. Rebentou o escândalo e os enraivecidos habitantes da cidade quiseram fazer justiça por suas mãos.
Mas Bornac levou ainda mais longe a sua equívoca atuação. Naquela mesma noite fugiu com May Zender, arrebatando-a assim às iras dos vingadores, e todos pensaram, com fundamento, que uma parte do dinheiro roubado fora engrossar os bolsos do sinistro juiz.
A partir daquilo, a sua carreira andou sempre ligada a subornos do mesmo estilo.. Deixava-se subornar, numa palavra, para que ditasse sentença, favorável ou adversa, segundo o desejo de quem lhe pagava.
A sua vida, noutros aspetos, não era mais recomendável. Não tinha família nem teto estável que cobiçasse, montava o seu escritório nas tabernas ou em qualquer espelunca de má nota e como as suas amizades, se algumas tinha, pertenciam ao mundo das sombras, em lugar de nos livros de leis apoiava a sua autoridade num par de «Colts» enferrujados, sem gatilhos nem pontos de mira.
Era alto, magro, de compridos membros, cabelo louro e olhos cinzentos; e como sinal distintivo do seu cargo, ou por se coadunar bem com o seu temperamento, vestia de negro desde o chapéu às botas.
— Pois os senhores dirão, cavalheiros — convidou-os, embora pelo seu aspeto se pudesse deduzir que não lhes ligava grande importância.
— Senhor Bornac, em Marte vai realizar-se um julgamento por homicídio, e pensou-se em si para juiz.
— Mas então não têm lá um?
— Sim, temos Nat Hamilton, mas não o consideramos suficientemente imparcial para este caso.
— Ah!
Bornac bebeu um gole de cerveja e passeou o olhar pelas sujas paredes do «saloon». O tendeiro de mais idade tossiu:
— O senhor Salinger Mosy Salinger, do rancho «Campana» — está muito interessado em que o julgamento decorra dentro da maior legalidade. E como pensa que para o senhor será um incómodo...
Puxara, entretanto, de uma carteira que, por estar excessivamente recheada, trazia presa com uma cinta de borracha, e limpou enervado os lábios com a mão. O jovem que o acompanhava mexeu-se, contrafeito, no assento.
— lembrou-se de...
— Não se esforce. Mil dólares parecem-me bem como sinal, e se arranjarem as coisas com as autoridades do condado, não terei dúvida em presidir ao tribunal nesse julgamento.
Depois perguntou quem era o acusado e quais eram os factos. Com a mesma indiferença com que recebera os dois comissionados, pegou nas notas que lhe ofereciam e guardou-as na algibeira das calças.
A seguir fez um displicente gesto com a mão direita, despedindo-os, e na mesma ocasião aproveitou para chamar Pet, que acudiu pressuroso.
Não se ocupou mais dos dois homens, que saíram apressados. Pelo espaço de uma hora dedicou-se a beber cerveja e a observar os clientes que apareciam e desapareciam com regularidade.
Por fim, ergueu-se do assento e tomou a direção da porta. Ninguém o cumprimentou nem ele tão-pouco parecia desejar que o fizessem. Atravessou a rua a largas passadas, balanceando os braços, e dirigiu-se para o centro de Winlow, onde se erguia o hotel «Universal».
A força do sol declinava. Diante da «Well Fargo» desciam os passageiros da diligência precedente de Holbrook. Grupos de vaqueiros e um ou outro caçador caminhavam pachorrentamente pela calçada ou detinham-se para enrolar um cigarro.
Um cão famélico revolvia um monte de lixo e, de tempos a tempos, retorcia-se para mordiscar o lombo junto do rabo, onde as pulgas deviam atormentá-lo.
Bornac atravessou o vestíbulo e subiu a pretensiosa e escavacada escadaria. No primeiro lanço encontrou-se com um indivíduo que descia, alto e magro, de cara fechada e queixo saliente.
O desconhecido ficou a olhar fixamente até que o juiz alcançou a porta do seu quarto, e só cessou a sua descarada inspeção quando aquele se virou para lançar-. -lhe uma fria e ponderativa olhadela.
Bornac encolheu os ombros e empurrou a porta. Em seguida, o rosto contraiu-se-lhe num tique irreprimível de desagrado. Alguém se encontrava no quarto. Uma mulher.
May Zender fora formosa e ainda, apesar das faces murchas e do círculo azulado que lhe rodeava os olhos, possuía grandes atrativos. Alta, cabelo ruivo e olhos azuis. Aparentava trinta anos, mas vista de perto notava--se ter mais idade.
— Olá, Mo — cumprimentou.
O juiz acabou de fechar a porta atrás de si e avançou até à janela, junto da qual se voltou.
— Que temos agora?
Não havia muita cordialidade na sua voz. A mulher pareceu encolher-se e tomou expressão compungida.
— Mo, preciso de dinheiro.
Havia uma nota lastimosa na sua petição, como latido de um cão esfomeado a quem se corre à paulada, mas que volta com a barriga colada à terra.
— Dei-to a semana passada — recordou-lhe ele, olhou para a rua.
— Preciso de mais. Por Deus, Mo, tu sabes que preciso de mais!
Arrastou os pés na sua direção.
— Mas deves escorraçar-me, Mo; escorraçar-me e não atenderes mais as minhas súplicas. Por que não o fazes? Por que continuas a suportar-me? Arruinei a tua carreira, contribui para que sentisses asco de ti mesmo, e tudo para nada, para que este maldito monstro continue a devorar os dois. Não posso mais, Mo; não posso mais.
De repente rompeu em frenéticos soluços que lhe agitavam o corpo como se lhe dessem chicotadas e deixou-se cair sobre a cama.
— Quero morrer, Mo, acabar de uma vez.
Bornac deu uns passos e colocou-se a seu lado. Inclinou-se ligeiramente e apertou-lhe o ombro com força.
— Vamos, May; tem coragem.
Sentou-se à beira da cama e contemplou-a com desespero.
— Se me tivesses deixado então... todas as tuas dificuldades teriam terminado.
A antiga bailarina endireitou-se e torceu o busto para observá-lo.
— Não digas isso, Mo — protestou e exalou um profundo suspiro. — Bem sabes que não tinha por onde escolher... — E continuou na mesma lamúria: — Que posso fazer? Chorei, ameacei, supliquei... mas sempre com o mesmo resultado.
Bornac ergueu então os seus seis pés de estatura.
— Está bem. Não te preocupes comigo, May. Aqui tens. Governa-te com isso durante uma temporada. Eu vou-me embora.
— Vais?
Bornac assentiu com um enérgico movimento de cabeça.
— Sim. Outro julgamento.
A mulher levantou-se também e colocou-se diante dele.
— Não vás, Mo. Acaba com isso de uma vez!
— Sim?
A pergunta envolvia todo um mundo de insinuações. Ela adotou a atitude do princípio, encolhida e suplicante. Bornac sorriu-lhe.
— Talvez seja a última vez, May — disse. — Planeei deixar esta parte do país, dirigir-me para o Leste. Imagino que, desaparecido eu, o problema cessará. É o qui' penso, pelo menos...
Meteu o dinheiro que lhe tinham dado os representantes do poderoso Salinger entre os dedos da mulher.
— Agora retira-te, May. Tenho de fazer alguns preparativos.
Com delicadeza, mas inexoravelmente, empurrou-a para fora do quarto, e permaneceu junto da porta até que a sua protegida desceu a escada e desapareceu da sua vista.
De novo fechado no quarto, Morice esteve uns momentos imóvel, com as pernas ligeiramente abertas, no meio do aposento, e os olhos cinzentos cravados num ponto indeterminado do espaço.
Com um encolher de ombros, arrancou-se aos seus pensamentos e dirigiu-se para um canto do quarto, onde se encontrava uma maleta negra. Abriu-a e à vista do seu conteúdo um riso abafado alterou-lhe as feições.
Ali estavam, com as páginas meio rasgadas e amarelecidas pelo uso, os símbolos da sua profissão — uma profissão que convertera numa coisa odiosa, trocando o signo da Justiça pelo dá corrupção e da fraude.
A sua decisão de fugir para o Leste não era repentina. Constava-lhe que os seus dias como juiz estavam contados, dado serem numerosas as queixas formuladas contra si.
Regozijava-se por ser assim. Devorava-o uma ânsia terrível de escapar da sua indignidade, de empreender novo caminho, ainda que tivesse de começar pelo pior dos ofícios.
Antes, porém, praticaria um delito mais, aquele para que o chamavam da cidade que ostentava um nome tão guerreiro. Calculava de que se tratava. Um miserável qualquer, convicto de alguma malfeitoria grossa, a quem se procurava livrar da forca.
Bom. Um mais não faria transbordar o copo da delinquência. O dinheiro que obtivesse entregá-lo-ia por completo a May Zender e desligar-se-ia dela também. Para o diabo, pois, as preocupações!
Meteu na maleta os seus pertences e fechou-a com uma pancada seca, que ressoou dentro dela como se fosse um pequeno ataúde onde ia o cadáver de todas as suas ilusões.
A seguir dedicou-se, à já muito débil luz que penetrava pela janela, a examinar os revólveres. Era um ato obrigatório. Devido às suas patifarias, eram muitos os que lhe exigiam contas.
Como o filho daquele rendeiro que o procurou em Phoenix e a quem teve de matar, apesar de ter sido o causador da ruína do pai. E o vaqueiro Dollen que viu livre o assassino da mulher e dos seus dois filhos peque-nos. Mas todos aqueles homens não sabiam que Bornac era um juiz convertido em «gun-man» pela força das circunstâncias.
Um singular juiz que rematava os julgamentos na via pública, a tiro descoberto.
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