sexta-feira, 16 de junho de 2023

CLF028.10 E será que nem tudo é ódio?

O dia decorria com uma lentidão exasperante. O carcereiro era um velho que lhe serviu o café da manhã e o almoço em silêncio.

Por mais que pensasse, Nolan não conseguia adivinhar o motivo por que tinham morto Hart. Era evidente que tentara defender-se, fazendo frente ao inimigo. Mas quem? E porquê? Depois do jantar, chegou Elton Graver, com aspeto cansado.

— O que Jones contou é verdade. Falei também com os Flores, pai e filho.

— Mas também comprovou que havia pegadas de três cavalos?

— Pouca sorte a sua, Brod. Houve tempestade esta madrugada, e a chuva destruiu todas as pistas que pudessem existir.

— Alguém nos deve ter visto, a Green e a mim. Passámos todo o dia a cortar cedros na montanha.

— Continua a insistir que esteve o dia todo na montanha?

— Até às cinco horas da tarde. Pergunte a Green.

— Já lhe perguntei. Por si, Green era capaz de Jurar falso sobre a Bíblia. Queria vir, mas eu impedi-o.

— Porquê?

— Os ânimos andam um pouco exaltados. As pessoas ainda se recordam da morte de Leblanc.

—Mas Leblanc não era meu irmão.

— Não, nem tão-pouco a sua viúva se chamava Carla. Bom, a fiança são cinco mil dólares. Será melhor que arranje um bom advogado, rapaz.

Meia hora depois apareceu Carla Gorvin. Vestia de negro e os seus olhos estavam levemente vermelhos Murmurou:

— Pobre Brod.

— Não devias ter vindo.

— Não me importa o que as pessoas possam pensar...

— Sabes porque Hart foi visitar-me?

— Ele não me disse nada. Escuta... Tenho um plano para te tirar cá para fora. Nenhum júri acreditará em Green, mas em mim terá de acreditar. Jurarei que estavas comigo no rancho. Compreendes? Graver pensará que mentiste para proteger a minha reputação. Todos pensarão o mesmo.

— Ouve, Carla... Aprecio a tua oferta, mas não quero dar razão a todas essas víboras que andam para aí a espalhar veneno.

Houve nos olhos da rapariga um clarão, um lampejo fugaz, que Nolan não soube traduzir, mas que significava sarcasmo.

—Não temos de fingir, Brod.

— Fingir o quê?

— Agora o rancho é meu. E teu. Dentro de alguns meses podemos casar. Não tens de ficar em Buffalo Creek nem lutar contra a Associação. Tudo aconteceu como eu desejava.

Brod Nolan recuou, compreendendo pela primeira vez o verdadeiro carácter da rapariga.

— Crês que eu matei Hart?

Ela disse que sim, lentamente. O tom de voz de Brod tornou-se áspero:

— Crês, na realidade, que matei o meu irmão para ficar com o rancho e contigo?... E tudo isso te parece bem, mulher desgraçada...

— Não me fales nesse tom.

—Hart ainda não está enterrado e já tu me vens oferecer esse repugnante contrato... Cala-te... Que esperavas que eu te respondesse? Muito obrigado, Carla. Obrigado por me tirares da prisão... mentindo. Seremos imensamente felizes... Tenho dó de ti, Carla.

— Não me fales assim. Acaso esperas a ajuda de Evelyn? Sim, não te faças parvo. Já tive conhecimento da tua sublime acção— disse a jovem, venenosamente. — Mas se Miller sabe...

— Deixa em paz Evelyn. Não te metas na sua vida.

— Ah, incomoda-te? Pois olha, se ela continua a considerar-te um herói romântico, não sei como tudo isto irá acabar...

Nolan apertou fortemente as grades, até os nós dos dedos ficarem brancos.

— O que me consola, em parte, da morte de Hart, é ele ter morrido sem conhecer o género de bicho que tu és.

Lívida, de olhos a chisparem ódio, ela gritou:

— Oxalá que te enforquem, Brod Nolan. E hão-de enforcar-te, pois farei todo o possível para isso... — e baixando o tom de voz, acrescentou: — Direi a Graver que tu mataste Hart. Dir-lhe-ei que na minha presença ameaçaste matá-lo. Jurarei ante o juiz que...

Brod Nolan permaneceu como que petrificado ante aquela mulher desconhecida, histérica e maligna, que agora voltava a gritar:

— Colocarei a corda em redor do teu pescoço, assassino. Eu própria...

O «sheriff» acudiu aos gritos da jovem, segurando-a por um braço.

— Por favor, senhora, não grite assim.

— Oiça-me bem, «sheriff». Ele matou Hart! Acaba de mo dizer e gaba-se de tão bonita acção!... Ele...

Enérgico, Graver arrastou-a para fora, tentando acalmá-la. Brod sentou-se no catre, e passou pelo rosto as mãos trémulas. Tinham sido uns momentos terríveis Era como se o seu grande sonho de adolescente se transformasse em pesadelo. Era ver a mulher sonhada transformar-se em bruxa. Estendeu-se e o sono apoderou-se dele clementemente.

Era aproximadamente meia-noite, quando o ruido da porta a abrir-se o despertou. Os seus olhos ensonados fixaram a figura de Graver.

— Venha até ao meu escritório — disse-lhe o «sheriff».

Assombrado, Nolan seguiu-o. Sobre a secretária encontrava-se um envelope aberto com notas de banco. O «sheriff» pegou no envelope e guardou-o no cofre. Depois estendeu a Nolan um papel e uma caneta.

— Assine aqui. É a sua liberdade sob fiança.

— Liberdade?

— O envelope que acabo de guardar contém cinco mil dólares... Gorvin veio acordar-me. E não me pergunte mais nada.

Nolan assinou. Graver entregou-lhe os seus objetos pessoais.

— Depois aviso-o quando for o julgamento. Não saia da comarca. Se a abandona, além de perder a fiança até ao último centavo, irei atrás de si.

— Estou livre?

— Até ao dia do julgamento. É a Lei. Lembro-lhe que não fui eu que a fiz.

Nolan pôs o chapéu. Depois da visita de Carla, o «sheriff» deixara de ter dúvidas sobre a sua culpabilidade. Para aquele homem ele era o assassino do seu próprio irmão. Nolan avançou pela rua deserta. De uma esquina surgiu Gorvin.

— Não quis falar-te na presença do «sheriff», Brod.

— Compreendo, Francis. O que não compreendo é porque deu o dinheiro para a fiança. O banqueiro tardou a responder.

— O que eu quero saber é o que se passou entre ti e Carla, naquela noite.

— Discutimos. Lamento-a bastante pode crer.

A mão do banqueiro crispou-se em volta do ombro de Nolan.

—Ela está descontrolada, Brod. Tens de ser tu a contar-me a verdade.

—Ela julga que eu matei Hart... e que o fiz para me casar com ela.

— Sim, já compreendo... —e na sua voz havia amargura.

— Obrigado por tudo, senhor Gorvin. Nolan afastou-se apressadamente em direção do hotel. O rececionista abriu o livro de registos. Ao assinar, Nolan viu a última inscrição: «E. Leblanc».

Brod fechou o livro e saiu rapidamente para a rua, Não sabia porque se encontrava Evelyn, àquela hora, na cidade, mas não estava disposto a correr o risco de encontrá-la.

Dormiu no estábulo, e abandonou a cidade logo depois do funeral, chegando a Buffalo Creek ao meia -dia. Relatou a Green os últimos acontecimentos

Pela tarde, dedicou-se com ardor à tarefa de cravar estacas de cedro no solo. Num intervalo do trabalho, Green disse:

— Se Miller aparecer com o seu pessoal, como lhe farás frente? A pedrada?

— Nem Miller nem ninguém dispara num homem desarmado. Mas há uma coisa que queria dizer-te, Sol Preferia que te fosses embora, e só regressasses quando tudo estivesse arrumado.

— Esta terra é livre, não é? — disse o negro. — Então continuemos com o trabalho.

Ao anoitecer, Green acendeu o fogo para prepara a ceia. Assobiou entre dentes quando viu seis cavaleiros aproximarem-se: Ron Miller, Jones, Howard, Muir Barlow e outros dois. Os seis formavam um semicírculo do qual se destacou Miller. Olhando as estacas fincadas no solo, disse:

— Ouvi dizer que saiu sob fiança. Foi Carla que pôs o dinheiro?

— Pergunte a Graver.

Cruzando as mãos sobre o peito, Miller voltou a falar:

— Hart tentou convencê-lo, embora eu lhe dissesse que palavras não serviam para resolver problema desta categoria. Agora — e acentuou as palavras — agora tem precisamente dez minutos para se ir embora daqui.

Nolan retirou do bolso a flauta que seu irmão fizera.

— Já a tinham visto? — perguntou.

Miller permaneceu impassível. Um pequeno sobressalto, que Wax Jones não pôde conter, transformou todas as dúvidas de Nolan em certezas. Guardando a flauta, Brod continuou:

— Para que serve eu partir agora? Voltarei.

— Não creio que volte.

E puxando da espingarda, Miller voltou-se na cela e disparou. O touro que pastava a uns trinta passos, dobrou-se sobre os membros dianteiros, e caiu de costas. Nolan avançou. Um laço silvou no ar, indo-lhe cingir os braços e as costas. Howard e Barlow desmontaram e caíram-lhe em cima, arrastando-o até à árvore mais próxima, onde o amarraram.

Miller continuava montado, apontando a espingarda a Green.

— Eu cuido do negro, Wax. Já sabes o que tens a fazer.

Os minutos seguintes foram um pesadelo... Wax Jones, empunhando o revólver, cavalgou pelo prado. A cada tiro, uma rês caía. Teve de recorrer à espingarda para completar a sua obra, até que sobre a erva verde ficaram doze reses mortas.

Por fim, aproximou--se dos dois cavalos e, a curta distância, alojou uma bala em cada um, exatamente entre os olhos.

Entretanto, os outros iam laçando as estacas, arrastando-as até fazerem com elas um enorme monte, a que lançaram fogo. Uma acha incendiada caiu sobre a lona do carro, pegando fogo às provisões e ferramentas. Segundos depois, o carro estava completamente envolvido em chamas.

Então, Miller aproximou-se de Nolan e, inclinado na sela, pegou nos cabelos do jovem, obrigando-o a olhar para a grande fogueira.

— Não afastes a vista, Nolan. Olha bem...

—Já olhei... Não o posso apagar com cuspo...

E cuspiu para cima. Miller assentou um potente soco na face musculosa de Nolan. Enquanto limpava a cara, disse:

— Se voltas a fazer o mesmo, arrasto-te na ponta de urna corda!

Nolan passou a língua pelos lábios sangrentos.

— Agora, é a tua vez, negro — anunciou Miller, aproximando-se do imóvel Green. — Ajudaste os «intrusos». Pois bem, vejamos se eles agora te ajudam. Vamos, negro! Corre! Corre!

Sol Green continuou imóvel.

— Corre, negro!

Um músculo estremeceu na face de Green. Ron Miller, prestigiado cavalheiro sulista, disparou. A bala foi alojar-se ao lado da bota direita de Green, que continuou imóvel. Miller guardou a espingarda e começou a desenrolar o laço. Compreendendo a sua intenção, Green gritou:

— Nós vamos embora, senhor Miller!

O laço rodeou o dorso do negro e Miller deu um forte esticão. As esporas do insigne cavalheiro sulista penetraram no ventre do cavalo, que se encabritou, esticando mais e mais a corda. Sol Green caiu de bruços no solo, e o cavalo, esporeado por Miller, arrastou o negro para as árvores, por entre as quais desapareceram, em corrida desenfreada.

Os gritos de Green pareceram ficar suspensos no ar. Por fim, Muir Barlow murmurou roucamente:

— Santo Deus!

E afastou-se, seguido pelos companheiros silenciosos e pensativos.

Wax Jones deixou-se ficar para trás e, quando passou junto de Nolan, cortou as cordas que o prendiam, partindo depois a galope. Cambaleando, Nolan acercou-se do carro em chamas, com a intenção de recolher a espingarda e o «colt» de Green. Mas as chamas, agora mais poderosas e densas, não o deixaram satisfazer os seus intentos. E de súbito, correu para o desfiladeiro, gritando incoerentemente, tremendo como um homem com febre.

A uns trezentos metros, encontrou Sol Green entre as rochas. De borco, respirando com dificuldade, com folhas de cactos espetadas no corpo. As suas roupas, esfarrapadas, mostravam as contusões que lhe cobriam o corpo, desde o peito até aos tornozelos.

Era noite avançada quando Nolan, levando Green inconsciente atado à sela da égua, chegou ao pátio do «Rancho Leblanc». Bateu à porta. A voz de Evelyn tardou a perguntar:

— Quem é?

— Brod Nolan. Trago um ferido. Preciso que me empreste o seu carro para levar o ferido à cidade.

A jovem abriu a porta e, ao ver as laceradas costas de Green, inquiriu sobressaltada:

— Que sucedeu?

— Não estava bêbado, nem caiu do cavalo. Precisa dos cuidados de um médico.

— Não pode ser transportado assim. Traga-o para minha casa, se quer que ele sobreviva.

Nolan carregou sobre o ombro o gigantesco negro. O ódio que trazia consigo dava-lhe urna força sobre-humana. Quando o corpo inanimado de Green ficou estendido sobre a cama, Evelyn disse:

— Acorde Banks Barclay. Diga-lhe que vá procurar o médico.

Quando momentos depois Nolan regressou ao quarto, Evelyn extraía a última espinha de cacto com uma pinça. Depois aplicou compressas nas feridas. Green jazia em absoluta imobilidade, movendo só, de quando em quando, os lábios azuis. A jovem murmurou:

— Tem algumas costelas fraturadas. Receio que tenha perfurado o pulmão... — e limpando com algodão a espuma sanguinolenta que se formava nas comissuras dos lábios de Green, indagou: — Foi Miller?

— Sim — murmurou Nolan abatido.

— Tente descansar um pouco...

Nolan sentou-se numa cadeira e fechou os olhos. Mas não conseguiu dormir. A luz cinzenta do amanhecer começava a entrar no quarto, quando Evelyn lhe tocou no ombro. Nolan precipitou-se para junto do leito. Sol Green, de costas, gemia suavemente. O suor perlava-lhe as sobrancelhas e o rosto negro acastanhado.

— Podes ouvir-me, Sol?

Os olhos do negro iam adquirindo expressão. Com a voz embargada pela comoção, Nolan acrescentou:

—Estiveste estupendo, Sol. Não te faz doer... não...

— Tu... estás bem?

— Esplêndido... E tu também... logo que chegue o médico. Compraremos mais gado, e voltaremos a começar... tu e eu...

— Tu e eu... Um bom sonho, Brod. Muito bom, mesmo... — os seus olhos fecharam-se e os músculos do rosto negro contraíram-se.

Brod Nolan passou ao quarto contíguo.

— Pode cuidar dele, Evelyn?

— Naturalmente. Mas, o que pensa fazer? Vai-se embora?

— Sim, voltarei logo à noite.

— Não se preocupe com Green. Terei cuidado com ele.

— Perguntou-me certa vez porque tinha vindo, recorda-se? Quem me dera que nunca tivesse voltado! Mas agora não posso mudar as coisas. Vim sem ódios... e agora... Não posso mudar as coisas, não é verdade? Compreende-me, Evelyn?

— Sim, compreendo. Nem você nem ninguém pode mudar as coisas — e estendeu a mão trémula, até apoiá-la sobre o antebraço de Nolan. — Mas creio... que nem tudo é ódio...

Cabisbaixa, a jovem deu meia-volta e regressou ao quarto. Brod Nolan montou a égua e afastou-se na direção do vale.

 

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