Para Paul, o novo amanhecer tinha um aspeto muito diferente do do dia anterior. Embora muito remota, entrevia a possibilidade de voltar a ser de novo um homem livre e respeitado, e isto fazia-lhe conceber certas esperanças. Livre de novo, sem ser perseguido. Poderia voltar a Big Creek e, então, casar com Linda.
Pensou em Linda e sorriu com ternura. As mulheres! Todas iguais na pretensão de dominarem os homens. Bom, dominara-o uma vez; não deixaria que acontecesse o mesmo segunda ocasião. Uma vez casados, ele seria o dono da casa e...
A voz de Raymond tirou-o de tão doces sonhos.
— Escute, Myers.
— Desdobrara uma planta da região e estendera-a no solo.
— Ontem à noite disse-lhe o que queria de si. Aceitou, é o mais sensato, claro. Agora vamos tratar dos pormenores.
Indicou com o dedo cinco ou seis pontos marcados com tinta vermelha no mapa.
— A quadrilha de Cochrane — disse — tem um campo de operações relativamente reduzido. Normalmente, opera dentro do círculo fechado por estas cruzes vermelhas. Isto, claro, foi averiguado à força de paciência e de anotar os lugares onde se efetuaram assaltos.
«É de supor, pois, que a quadrilha está escondida nalgum lugar do círculo. A sua tarefa é encontrá-la e reunir-se a ela. Se lhe ordenarem, uma vez aceita a sua colaboração, que tome parte nalgum assalto, aceite sem hesitar. Evidentemente, procure evitar o derramamento de sangue. Mas se se tratar apenas de roubar, não sinta o menor escrúpulo.
«O primeiro objetivo é a destruição da quadrilha, mas, sobretudo, a localização do seu chefe. Informações pacientes fizeram-nos chegar à conclusão de que o chefe não está nunca com eles. Não sabemos quem é, não temos a menor ideia se é alto ou baixo, gordo ou magro, novo ou velho, mas o que sabemos é que ele obtém informações para a sua quadrilha e costuma ser terrivelmente exato.»
Raymond acariciou o queixo, muito pensativo.
— Em minha opinião, tem de ser uma pessoa vulgar, que vive e convive entre as pessoas normais. Faz a sua vida, trabalha nalguma coisa, provavelmente terá mulher e filhos e assistirá aos ofícios religiosos dos domingos... Mas é o chefe da mais perigosa quadrilha de salteadores que até agora tivemos de enfrentar. Não se esqueça disto, Myers.
«Digo-lhe também uma coisa: tentámos infiltrar dois dos nossos agentes e ambos morreram. Com isto pode ter uma ideia da espécie de gente com que se vai meter. Pode recusar que não o censurarei, mas nesse caso perderá a única oportunidade que tem de se reabilitar.»
Paul olhou-o com curiosidade.
— Isso parece uma extorsão, Raymond — disse.
— Falando cruamente, assim é. Mas não tenho outro remédio senão procurar um homem das suas características. Há cinco anos que ando atrás desse homem; creio que já é tempo de ser recompensado.
— Trabalhar pela minha reabilitação supõe que você acredita na minha inocência, Raymond — alegou o jovem.
— Exatamente.
— Então, porque não começa a tratar disso agora? —perguntou bruscamente.
-- Em primeiro lugar, porque não me convém, E em segundo lugar, porque o governador do estado tem corno norma nunca se imiscuir nas decisões das autoridades locais, a não ser que razões de muito elevado interesse o exijam. Ainda é cedo para propor a sua reabilitação e, além disso, deve fazer alguma coisa para a merecer, não lhe parece?
Paul crispou os punhos.
— Fui o provocado e não o provocador — resmungou. —Fora isso, Wander tinha um cúmplice escondido para acabar comigo, no caso de ele não me liquidar.
— Wander poderia dizer sempre que não o conhecia e que não tinham nada em comum — respondeu Raymond. — Além disso, pelo pouco que pude ver do xerife Houligan, no caso de ter sido você o morto, Wander andaria agora proscrito por aí, de modo que não se queixe. Mais vale, na minha opinião, ser proscrito vivo que pessoa decente morta. Não acha, Myers?
O jovem coçou o rosto com o polegar. Por fim, sorriu:
— Os seus argumentos são irresistíveis, Raymond. Enfim, não tenho outro remédio senão seguir para diante. De acordo, destruirei a quadrilha de Cochrane.
— Com o que, além da sua reabilitação — acrescentou o agente.do Governo —, ganhará um total de recompensas que ultrapassa amplamente os vinte mil dólares. E, depois, esse dinheiro far-lhe-á muito jeito, não negue...
Paul fez uma careta.
— Tenho um rancho que vale alguma coisa, embora agora só Deus sabe como vai, na minha ausência.
—Bem, não se preocupe com isso. Você tem quem olhe por ele e com todo o interesse, garanto-lhe.
— Oxalá seja como diz — suspirou Paul, esperançado. — Deixe-me ver o mapa, de novo. Quero fixar bem os pontos onde se calcula que pode estar essa quadrilha. Porque suponho que não seria conveniente que levasse o mapa, não é verdade?
— Diz bem, Myers. Tome — respondeu Raymond.
Passado um bom bocado, Paul dobrou o mapa e devolveu-o ao seu dono.
— Já está — disse. — Uma pergunta: como posso pôr--me em contacto consigo?
— Todas as vezes que entre numa povoação, escreva--me umas linhas, indicando os futuros projetos da quadrilha. Se o caso for muito urgente, entre na estação dos telégrafos e diga ao operador estas duas palavras: «Susan Hayes». O operador saberá o que deve fazer e você não terá de se preocupar mais.
— «Susan Hayes» — repetiu o jovem. – É um nome de mulher.
— Sim, o da minha prima — respondeu o agente, com indiferença, e entregou-lhe um bocadinho de papel. —Aqui tem a direção. Fixe-a na memória e depois queime-o.
Paul olhou o papel pelo espaço de dois minutos. Quando, por fim, se convenceu de que não esqueceria a direção, levantou a cabeça.
Raymond desaparecera sem deixar rasto. Não tentou procurá-lo sequer; sabia que se o agente partira em silêncio, sem o avisar, era porque não desejava ser seguido.
Melancolicamente, enrolou um cigarro e acendeu-o. Com o mesmo fósforo deitou fogo ao papel. Depois permaneceu uns momentos pensativo.
A vida tinha muitas surpresas. Dois dias antes, apenas, era um honesto rancheiro, prestes a contrair casamento com uma rapariga boa e formosa. Agora estava convertido num proscrito, oficialmente, e num agente secreto, de maneira muito menos oficial. Se quando lera o cartaz de desafio pregado por Wander lhe tivessem dito em que acabaria tudo aquilo, chamaria louco a quem lhe fizesse tal profecia. E, contudo, não era loucura nem sonho, mas sim realidade.
Proscrito, contra o qual podia disparar qualquer agente da lei... e agente da lei, cuja vida correria sério perigo se os homens de Cochrane descobrissem a sua identidade.
Pareceu-lhe que estava a desempenhar o papel de presunto numa sanduíche e não pôde deixar de soltar uma gargalhada estridente, cheia de amargura.
Finalmente, decidiu-se a levantar o acampamento.
Olhou em torno. Raymond deixara-lhe os alforges cheios de víveres e uma manta. Nisso, ao menos, o agente portara-se decentemente; de momento, não passaria fome.
Penetrou nas montanhas. Raymond não lhe fixara tempo, de modo que esteve escondido durante várias semanas, vivendo pouco menos do que como uma fera, até que a barba lhe cresceu o suficiente para não temer ser reconhecido.
Consumiu os víveres dos alforges e viveu da caça, até que por fim, esgotadas as munições, disse para consigo que era tempo de se reabastecer.
Na sexta semana da sua fuga de Big Creek, entrou em Stanton, uma cidadezinha situada quase ao pé das montanhas, na qual, conforme pôde apreciar, abundavam os mineiros.
A primeira coisa que fez foi tomar um bom banho e mudar de roupa. Não consentiu que o barbeassem e, depois de pronto, julgou oportuno dar um passeio pela povoação, com o fim de ver se averiguava alguma coisa interessante.
Já renovara as munições e tinha nos alforges da sela algumas caixas de cartuchos, além dos que colocara na cartucheira do cinturão. Previdentemente, deixara o cavalo selado e pronto para partir em qualquer momento, se as circunstâncias o obrigassem a isso.
Disfarçado pela barba, passeou tranquilamente pela cidade. Levou a sua ousadia ao extremo de se pôr diante do escritório do xerife, para ler com toda a atenção os cartazes de recompensa.
Admirou-se muito de não ver o seu. Possivelmente, pensou, o xerife local tê-lo-ia lá dentro. Nem todos os fora-da-lei eram expostos à curiosidade pública. Havia muitos xerifes que guardavam para si os cartazes de reclamação, com o fim de não perderem uma possível recompensa, no caso de encontrarem o criminoso reclamado. O xerife de Stanton podia ser um deles.
Stanton era um dos pontos indicados no mapa de Raymond. Tanto fazia começar por aquele como por outro sítio; na realidade, o que fazia era esperar o acaso de se encontrar com algum ou alguns dos homens de Cochrane. Mas como os reconheceria? Era lógico supor que nenhum deles trazia uma marca especial.
Pensou em Raymond. O agente andava havia cinco anos em perseguição da quadrilha; ele, apenas começara seis semanas antes. Era infantil, pois, sentir-se impaciente. Podiam passar outros tantos anos antes que as suas pesquisas dessem resultado.
Experimentou uma cruel agonia ao pensar na hipótese de a sua reabilitação estar ainda tão distante.
De súbito, viu um «saloon». Na sua vida normal, nunca fora bebedor, apesar de não recusar um copo de vez em quando. Depois de mês e meio de contínuo vagabundear pelas montanhas, sentia a necessidade de tomar uma boa bebida. Ainda lhe restavam quatro ou cinco dólares e podia-se permitir aquele luxo. Empurrou as portas e transpôs o limiar.
Ninguém reparou na sua presença, o que lhe agradou. Tipos como ele deviam entrar todos os dias no estabelecimento.
Aproximou-se do balcão e pediu um uísque, que lhe foi servido sem demora. A bebida era intragável, mas soube-lhe bem, depois da abstinência. A seguir enrolou um cigarro. Passeou a vista pela sala. Os tipos do costume: jogadores, mineiros, um ou outro vaqueiro, o pobre pianista a um canto e as habituais pequenas de «saloon», à caça de algum eventual cliente.
Uma ou duas aproximaram-se, todas sorrisos, mas repeliu-as. Pensava demasiado em Linda para ligar importância a outra mulher.
Durante um bom bocado permaneceu encostado ao balcão, mergulhado em amargas evocações. Tão absorto estava nos seus pensamentos que chegou a esquecer-se por completo do lugar em que se encontrava.
De súbito, uma violenta discussão que rebentara a seu lado chamou-lhe a atenção.
Os contendores eram dois homens. Um era um gigante, capaz de mover uma montanha com as mãos. O outro, embora bastante mais pequeno, também era corpulento. Ambos estavam armados. O segundo parecia bêbedo. Pelo seu aspeto, era um mineiro de génio muito irritável, a julgar pelos palavrões que lhe saíam da boca. O gigante, pelo contrário, dava a sensação de querer contemporizar e evitar zaragata. A atitude pacífica do seu contrário tornou o mineiro mais atrevido. Acabou por lhe atirar à cara um insulto imperdoável:
-- Filho de uma cadela!
O silêncio apoderou-se da sala depois da última imprecação. Os clientes, temendo o que ia suceder, correram loucamente em busca de refúgio. Os dois contendores ficaram frente a frente, separados por uma distância de cinco ou seis passos.
Paul foi o único que não correu e que se manteve no mesmo canto do balcão que ocupara à chegada. Então, a sua vista penetrante captou um pormenor que passara despercebido à maioria dos presentes.
O mineiro não estava só; tinha um companheiro. Este encontrava-se negligentemente encostado a uma coluna, em atitude calma, mas, na realidade, vigiava com atenção os dois antagonistas. A sua mão direita estava muito perto da coronha do revólver. O rosto do gigante congestionou-se.
— Retira imediatamente o que disseste! -- exclamou com voz tensa.
— Se queres que o faça — respondeu o mineiro — pede-mo com o revólver na mão.
O gigante respirou com força.
— Está bem — disse. — Não te queixes. Assim queres, assim...
O homem da coluna endireitou-se. A sua mão crispou-se em torno da coronha do revólver. Mas não chegou a tirar a arma; Paul foi muito mais rápido. Enquanto o indivíduo caía, fulminado por uma bala em pleno coração, Paul dizia para consigo que a vida humana já não era tão importante para ele. Depois do encontro com Wander, disparar contra seres humanos era tão fácil...
Prestou atenção à luta entre os dois homens. O mineiro virou a cabeça e viu que o seu companheiro, o que havia de lhe cobrir as costas, caía de bruços no solo.
Paul observou atentamente a mudança de expressão que se operou nas feições do mineiro. O medo mais abjeto assomou-lhe aos olhos. As mãos tornaram-se-lhe desajeitadas. Apesar de tudo, quis tirar o revólver. Os seus movimentos foram, porém, muito lentos, em comparação com os do gigante.
Com toda a calma, este empunhou a arma e disparou três vezes contra o corpo do seu inimigo. O mineiro convulsionou-se. Agarrou o peito ensanguentado com ambas as mãos e caiu de joelhos. Um fio de baba sanguinolenta escorreu-lhe dos lábios. O gigante acabou-o com um tiro no meio da testa. O corpo do mineiro sofreu um forte estremecimento, caiu no chão e ficou imóvel.
Alguns dos presentes tentaram reagir. Então, o gigante moveu o revólver em semicírculo.
— Ninguém se mexa, se não quer ir fazer companhia no inferno a este bastardo!
Ouviram-se vários murmúrios de reprovação. Paul notou que provinham dos companheiros do morto. Este fora o provocador, mas os mineiros, embora não fosse mais do que por solidariedade conferida pela mesma profissão, estavam dispostos a vingar a morte do companheiro.
Paul apercebeu-se rapidamente da ameaça que pairava no ar. De momento, os mineiros estavam contidos pelo revólver do gigante, pois ele guardara o seu, após o disparo. Mas essa contenção era só momentânea. No instante em que um só se atrevesse a puxar do revólver, duas dúzias de armas apareceriam sem demora. E então, ambos morreriam crivados de balas.
Empunhou de novo o revólver e colocou-se ao lado do gigante.
— Temos de sair daqui, camarada — disse.
O outro deitou-lhe um olhar rápido.
— Foi você quem me livrou daquele moscardo?
— Fui.
— Obrigado, amigo. Devo-lhe a vida. Sim, é um bom conselho. É melhor sairmos daqui.
Começaram a retirar pouco a pouco, sem deixarem de ameaçar com as armas os circunstantes.
— O meu cavalo está lá fora — disse o gigante.
—O meu também respondeu o jovem, que já tinha o segundo revólver na mão.
Estavam à porta do «saloon».
— Saia você primeiro — disse Paul. — O meu cavalo é esse que tem uma estrela branca na testa. Desamarre-o.
— Pois sim.
A tensão alcançava limites extremos. Paul ouviu atrás de si o rangido dos batentes da porta. Esperou uns segundos intermináveis. De súbito, ouviu o vozeirão do gigante.
— Pronto, camarada!
Paul atirou alguns tiros para o ar, embora procurando que as balas passassem perto da cabeça dos clientes. Houve uma debandada geral, que Paul aproveitou para dar meia-volta e sair a correr.
O gigante já estava a cavalo e tinha na mão as rédeas da montada de Paul. Este montou de um salto e picou de esporas. Saíram como uma tromba de Stanton, perseguidos por um tiroteio furioso, completamente inofensivo. Em poucos minutos puseram-se fora do alcance dos seus perseguidores.
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