Virou-se inquieto na cama. Eram cinco da manhã e ainda não conseguira adormecer.
Sentou-se na cama, procurou os fósforos e acendeu o candeeiro. Graças à luz, pôde enrolar um cigarro. Quantos fumara já durante as longas horas de vigília? O chão estava coberto de pontas.
Aspirou o fumo nervosamente. Em breve amanheceria. O seu último dia, talvez. O seu último dia?
Olhou as estrelas, que tremeluziam ironicamente no alto do céu. Para o leste, empalideciam já um pouco. Em breve amanheceria.
Consumiu o cigarro em poucos minutos. Atirou a ponta para o chão. Continuava sem poder dormir. Vestiu-se devagar e aproximou-se da janela.
Ao longe, no horizonte, distinguia-se já uma estreita linha cinzenta, anunciadora do romper do dia. Para si seria o seu último amanhecer... talvez.
Passou a mão pela testa febril. Porque tinha de morrer? Não era tão hábil como os que mais o eram com os revólveres? Era rápido, muito rápido, a tirar a arma do coldre, a apontar e a disparar. Diziam que a sua pontaria era infalível. Então, porque o preocupava tanto o novo dia?
A sua pontaria era infalível, de facto. E a sua habilidade no manejo das armas insuperável. Mas tinha um defeito. Ou uma virtude, conforme o modo de ver: nunca disparara contra uma pessoa. Jamais empunhara o revólver contra seres humanos. E agora devia fazê-lo... ou passar por um cobarde. Um cobarde?
A linha de luz acinzentada aumentou de tamanho. O novo dia aproximava-se rapidamente. As nove da manhã tinha de enfrentar, em duelo, um homem. Restavam, portanto, menos de quatro horas. Era tão pouco o tempo que lhe restava de vida! As nove da manhã.
Mas — perguntou-se — porque o provocara aquele homem? Ele não lhe fizera nenhum mal, apenas lhe dera um pequeno encontrão, dois dias antes, ao entrar na estação dos correios, de onde o outro saía.
Paul Myers desculpara-se cortesmente. Kent Wander levara, porém, aquilo muito a mal e insultara-o grosseiramente. Paul não quisera responder. Ambos estavam armados, mas, sensatamente, achara o motivo demasiado fútil para desatar aos tiros. Era forte e robusto e, farto das imprecações do outro, de Wander, derrubara-o com um murro e deixara-o sem sentidos.
Tudo acontecera a poucos passos de distância do escritório do xerife. Este presenciara a cena e dera razão a Paul. Pela sua parte, Paul esquecera quase imediatamente o incidente. Mas se julgara que tudo acabara com o murro dado a Wander, enganara-se redondamente. Duas horas mais tarde, quando se dispunha a regressar ao seu rancho, ficara surpreendido ao ver um numeroso grupo de homens diante da tabuleta de anúncios da estação dos correios. Pensara que se tratava de uma nova reclamação contra algum criminoso, e não pensara deter-se, mas um dos curiosos chamara-o.
— Eh, Paul, desce do cavalo e aproxima-te! Há aqui uma coisa que te interessa.
Movido pela curiosidade, desmontara. Os homens tinham-lhe aberto caminho e olhavam-no especulativamente. Aproximara-se da tabuleta de anúncios. Ainda perguntava a si mesmo como conseguira manter a serenidade. Sim, um dos anúncios que estavam a pregar na tábua referia-se a ele. Enganara-se: o incidente com Wander não terminara com o murro.
SE O CHAMADO PAUL MYERS NÃO É UM COBARDE, COMPARECERA AMA-NHÃ, AS NOVE EM PONTO DA MANHÃ, NA RUA PRINCIPAL. ESPERA-LO-EI DIANTE DESTA MESMA ESTAÇÃO DOS CORREIOS.
KENT WANDER
O significado do cartaz era claro: um desafio. Era hábil e rápido com as armas, mas não sabia como reagiria ao ter de as empunhar contra um semelhante. Nunca o fizera. Caçava lebres na corrida e pássaros em voo, com um só tiro, mas era muito diferente ter de disparar contra uma pessoa.
E, sobretudo, se essa pessoa estivesse armada e disposta também a disparar contra ele.
Paul não era um profissional do revólver. Murmurava-se que Kent Wander, que residia havia cerca de um ano em Big Creek, o era. Ou que, pelo menos, o fora.
Portanto, para Wander não era novidade ter de fazer fogo contra um homem. E num encontro semelhante a serenidade valia tanto ou mais do que a rapidez e a habilidade no manejo das armas, ao que era preciso acrescentar que Wander não ignorava de modo algum que ele sabia «sacar» e disparar numa fração de segundo. E se o sabia, desafiava-o porque estava certo de lhe ganhar. De outro modo, não se atreveria a desafiá-lo tão clara e terminantemente.
AS NOVE DA MANHÃ, DIANTE DA ESTAÇÃO DOS CORREIOS...
Tinha as letras gravadas na mente, como se lhas tivessem lá posto com um ferro em brasa.
Que aconteceria se não comparecesse? Toda a gente o consideraria um cobarde, lhe voltaria as costas e o desprezaria. Qualquer valentaço se sentiria autorizado a meter-se com ele. E a insultá-lo, sabendo que não receberia resposta. E a vergonha recairia sobre o seu nome.
Um ponto de luz vermelha surgiu no horizonte. Nascia o sol. Passeou pelo quarto, nervosamente. De que maneira poderia resolver aquele caso? Só podia fazer uma coisa.
Saiu do quarto e dirigiu-se para o seu gabinete. Sentou-se à secretária e escreveu umas linhas numa carta:
Pela presente, e enquanto não dispuser pessoalmente o contrário, concedo plenos poderes à menina Linda Garrison para que administre o meu rancho e demais propriedades da forma mais justa e conveniente que entender, sem limitação alguma. A dita administração entender-se-á igualmente outorgada no que respeita à minha conta corrente no banco da cidade de Big Creek, conta de que ela poderá dispor da forma mais adequada aos interesses do rancho.
Paul Myers
Datou, dobrou a folha de papel, meteu-a num sobrescrito, que fechou, e deixou-o em cima da secretária. Depois dirigiu-se para a cozinha.
Juana, a sua criada mexicana, olhou-o em silêncio.
— Dá-me um pouco de café — pediu.
— Não quer tomar o pequeno-almoço, senhor Myers? — perguntou ela.
Paul sacudiu a cabeça.
— Só café.
Um relógio deu horas em qualquer parte. Seis da manhã. Só três horas. O canto do galo madrugador chegou-lhe aos ouvidos. O café correu da cafeteira para a chávena. Absorto nos seus pensamentos, Paul deixou passar o tempo de tal forma que a infusão esfriou.
Respeitosamente, Juana levou a chávena e substituiu-a por outra de café quente. Desta vez bebeu-a.
Passou o tempo. Deram as sete horas. Lá fora, no pátio, soaram vozes destemperadas.
Paul estremeceu. Porque tinha de lutar com Wander? Porque havia de morrer um dos dois? Alguém entrou, com grande tilintar de esporas.
— Patrão.
Paul virou a cabeça com grande esforço.
— Que é, Johnston?
— O seu cavalo está pronto.
— Obrigado.
Assim, pois, os seus vaqueiros davam como certo que iria enfrentar Wander. Pôs-se em pé com esforço. Saiu para o pátio. Olhou os vaqueiros. Estes encontravam-se reunidos, encostados à cerca de troncos, uns, acocorados, outros. Mas todos o olhavam.
Desceu os degraus que conduziam ao pátio e pôs a mão na maçaneta da sela. Um dos vaqueiros aproximou-se. Pigarreou para aclarar a voz.
— Patrão, esse Wander é um filho de cadela.
— Sim — respondeu Paul, inexpressivamente.
— Consta-me que é um pistoleiro. Portanto, deve ser muito rápido. O senhor também o é, mas tem sobre ele uma vantagem.
Paul arqueou as sobrancelhas. O vaqueiro prosseguiu:
— Estive nalguns sítios onde abundavam os pistoleiros tanto como cogumelos no bosque depois da chuva. Vou dar-lhe um conselho.
O vaqueiro pigarreou de novo.
— Todos são rápidos e certeiros, mas a menos de dez metros de distância. São gente habituada às lutas de taberna, às lutas de povoações como Deadwood, Hays City e outras, onde entre cada contendor há apenas uns passos. Então, não falham o tiro. O senhor atira incomparavelmente melhor. Não deixe que se aproxime. Dispare aos vinte passos, vinte e cinco se puder. Vi-o matar uma lebre na corrida a trinta passos e Wander é um alvo que não se pode falhar. O senhor não falhará. Faça como lhe disse: vinte ou vinte e cinco passos. Não lhe conceda a vantagem da distância curta. Paul sorriu.
-- Obrigado pelo conselho, Ollie, mas não tenciono comparecer ao duelo.
O rosto do vaqueiro exprimiu um pasmo absoluto.
— O quê ?! — exclamou, atónito.
— Na minha secretária está uma carta para a menina Garrison. Providenciem para que a receba. Adeus!
E antes que alguém o pudesse deter, montou de um salto a cavalo e saiu a todo o galope do rancho, envolto numa nuvem de pó.
*
Puxou as rédeas bruscamente quando viu que um cavaleiro lhe saia ao caminho e lhe apontava uma carabina.
— Alto aí, Paul Myers!
Respirou aliviado. O cavaleiro não abrigava intenções hostis contra ele, apesar da arma.
— Linda! — exclamou.
A rapariga fitou-o com cólera.
— Sabia o que ias fazer, Paul. Por isso te esperei aqui, à saída da povoação. Volta e enfrenta Wander.
Paul ficou boquiaberto.
— Linda! — foi tudo o que conseguiu dizer.
— Pensavas fugir e voltar dentro de algum tempo, quando tudo estivesse esquecido, não? Bem — disse a jovem, friamente —, não tenciono impedir-to. Vai-te, se queres, mas nunca mais voltes a Big Creek.
— Pelos vistos — disse ele, recompondo-se —, preferes ver-me morto às nove e um minuto em vez de vivo dentro de um ano, depois de tudo esquecido.
— Acertaste, Paul — respondeu Linda. Guardou a carabina no coldre da sela. — Podes ir, não te impedirei. Mas quero que saibas que não chorarei por ti... se fores. — Preferes chorar sobre o cadáver de um valente. -- Sempre é melhor que sentir nojo por um cobarde, não achas, Paul?
O jovem apertou os lábios.
— Nunca te julguei tão sanguinária, Linda — murmurou.
— Não o sou. Apenas procuro abrir-te os olhos à verdade, Paul. Jamais me poderia casar contigo se partisses.
— E se ficar também não casarás. Ainda não vi ninguém que casasse com um defunto.
— Não morrerás, Paul Myers. És rápido e hábil com o revólver.
— Mas nunca disparei contra uma pessoa.
—Alguma vez teria de ser, não?
— Wander é um pistoleiro experiente. —Um homem como tu. Ele especula com a tua cobardia, para depois se pavonear em Big Creek. Impede-o disso.
Paul baixou a cabeça durante uns momentos. Depois voltou a olhar a noiva.
— É isso que queres, Linda?
A resposta da jovem brotou cortante, explosiva, dos seus lábios:
— Sim!
Paul puxou as rédeas e deu meia-volta.
*
Entrou em Big Creek, pouco antes das nove. Desmontou diante da cavalariça pública. O moço de estrebaria tomou conta do cavalo.
— Não lhe tire a sela — recomendou, mas arrependeu-se imediatamente de tais palavras. Não voltaria a precisar de montada.
Caminhou até entrar na Rua Principal. A cidade estava silenciosa. Brenton, o dono do armazém, olhou-o inexpressivamente. Lucy Salters, a dona do «saloon», sorriu-lhe de modo pouco convincente. Mais pessoas o olharam, umas com seriedade, outras sorrindo-lhe, mas nenhuma se atreveu a dirigir-lhe a palavra.
Tirou o relógio e viu as horas. Faltavam cinco minutos para o encontro com Wander. Os passeios estavam cheios de público tomado de mórbida curiosidade. Seis minutos depois um homem estaria morto.
Quem?
Paul não duvidava. Ele.
Por que motivo Linda, se o amava, o compelira a bater-se com Wander? Outra mulher, no seu lugar, fugiria com ele para qualquer parte, para o ter a seu lado, vivo. Cobarde, mas vivo. Daquela forma ficaria estendido no solo, valente, mas morto.
As mulheres eram assim, pensou com amargura. Linda tinha um temperamento demasiado vivo, era muito enérgica. Por isso o empurrara para o duelo com Wander.
Avançou devagar pelo meio da rua. Podia-se ouvir perfeitamente o rumor dos seus passos, apesar de o pó os amortecer notavelmente. Um homem saiu-lhe de súbito ao caminho. Era o xerife.
— Myers!
Paul olhou-o uns segundos.
— Diga, Houligan.
— Desista do duelo. Todos sabemos quem é você e quem é Wander. Deixe-o. Esqueça a provocação e volte para o seu rancho.
— Não.
O rosto do xerife endureceu.
— Se empunha o revólver prendo-o, Paul.
— Fará o mesmo com Wander?
— Já está avisado. Não quero duelos em Big Creek. Admito que, em determinadas circunstâncias, um homem se veja obrigado a utilizar o revólver, mas tem de ser num caso imprevisto, nunca numa situação planeada de antemão.
— Eu não planeei isto, Houligan. Porque não se dirige a Wander?
— Estou-lhe a repetir, ponto por ponto, o que disse a Wander há dez minutos. Qualquer que seja o vencedor do duelo, terá de enfrentar o peso da lei. E serei inexorável, note bem, Myers.
— Pois sim. Obrigado pela advertência, Houligan. E agora, importa-se de me deixar seguir o meu caminho?
O xerife tentou pôr-se-lhe diante, mas ele afastou-o para um lado, com um simples gesto do seu braço poderoso. Houligan não tentou opor-se mais ao avanço do jovem.
Os olhos de Paul captaram de repente a imagem de um homem negligentemente encostado a um poste vizinho. O homem olhou-o por seu turno com ar indiferente. Era relativamente novo, uns trinta e seis anos, de boa presença, magro e com o rosto curtido pelo sol. Trazia um revólver à cintura e dos lábios pendia-lhe um cigarro meio consumido. Paul não o conhecia; era novo em Bib Creek.
O homem sorriu ironicamente ao vê-lo passar. Os nervos do jovem crisparam-se durante um momento. «Calma, tem calma», disse a si mesmo. Mas, dentro de si, o coração galopava-lhe loucamente.
Esqueceu o indivíduo e seguiu para diante. A estação dos correios estava a menos de trinta passos de distância.
O silêncio na cidade era absoluto.
Paul sentiu que uma gota de suor lhe escorria pelo rosto. Por todo o corpo sentiu um súbito calafrio. Um homem saltou repentinamente para o meio da rua. Era alto, magro, mas corpulento, de boa figura, com um sorriso cínico no rosto, varonilmente belo, adornado com um fino bigodinho preto no lábio superior. Aquele era Kent Wander.
Habitualmente, Wander vestia uma comprida sobrecasaca preta, sempre imaculadamente limpa de pó. Agora tirara-a para que as abas da peça de vestuário não o estorvassem ao sacar a arma. O seu colete bordado resplandecia ao receber de lado os raios do sol. Um sorriso cruel desenhou-se nos lábios delgados de Wander. Estava certo de ganhar o duelo. Permaneceu calmo, no meio da rua, com as pernas ligeiramente abertas, mais adiantada a esquerda, com o fim de facilitar o movimento do seu braço direito ao puxar do revólver.
Paul parou. Chegara à distância conveniente. Vinte e cinco ou trinta passos. Recordou os conselhos do seu vaqueiro: «Não são hábeis a mais de dez passos de distância.» Inspirou com força. Wander pareceu perturbado com a sua quietude repentina.
— Vamos! — gritou de súbito. — Aproxima-te, Paul Myers!
Paul sentiu que uma estranha serenidade o invadia de repente. E então, naquele momento, soube que não sairia derrotado do duelo. Permaneceu quieto, calado. Wander voltou a falar.
— Não fiques tão longe, cobarde. Aproxima-te. Ou trazes uma carabina debaixo da camisa?
Paul não respondeu. O seu silêncio, a sua imobilidade, desconcertaram Wander.
— Vão dar as nove! — gritou o pistoleiro.
«Está a encorajar-se a si mesmo», pensou Paul. «Tem medo, medo.» E continuou calado. Wander deu dois passos em frente. Retrocedeu de novo. Olhou para a direita e para a esquerda.
Apesar da distância, Paul reparou que o pistoleiro se sentia intranquilo. E, de súbito, uma suspeita assaltou-lhe a mente. Wander esperaria alguém? A voz do provocador ouviu-se uma vez mais:
— Terei de te chamar cobarde na tua própria cara, Myers?
Paul continuava quieto. Sabia que a sua imobilidade desconcertava Wander. E quanto mais nervoso se punha o pistoleiro, mais tranquilo se sentia ele. Com a mão esquerda, muito devagar, tirou o relógio do bolso do colete. Viu rapidamente as horas. Faltava menos de meio minuto para darem as nove. Quem esperava Wander?
E naquele momento, Paul captou uma expressão estranha no rosto do seu antagonista. Wander acabava de olhar para um lugar situado à sua esquerda e ao alto, justamente a meio do caminho entre os dois contendores.
O coração de Paul ferveu de cólera. Assim, Wander não era tão valente nem hábil atirador como toda a gente supunha. Necessitava de ajuda. E arranjara-a. Deitou uma rápida olhadela para o lugar que o gesto de Wander lhe indicara.
Era a janela do primeiro andar de um edifício, cujas cortinas se moviam suavemente. Não soprava vento, de modo que aquele adejar das cortinas só se podia dever a uma coisa: alguém estava postado atrás da janela. Naquele momento soou o primeiro tiro.
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