terça-feira, 2 de maio de 2023

CLF054.08 O espectro adormece o xerife e beija uma mulher

As pessoas que estavam a beber e a conversar ficaram sem palavras quando a guitarra lançou para o ar os seus acordes. Continuavam assim ainda, quando Rich Nelson abandonou o hotel e saiu para a rua.

Front Street possuía ainda aquela ruidosa e violenta animação que a tornara famosa. Mas já os múltiplos «saloons» começavam a despovoar-se, não faltando luzes e animação pelas ruas.

Nelson encostou-se a um dos salientes edifícios e começou a tocar. Pelo canto do olho, viu o «sheriff» aproximar-se, caminhando apressadamente...

O representante da Lei deteve-se um pouco atrás, com uma das mãos no cinto e a outra levantada, sustendo um cigarro já em meio, à altura do queixo.

— Vejo que a morte não lhe tirou o bom humor —disse secamente.

E Nelson assentiu com o seu sorriso brilhante.

— A morte é apenas um acidente, «sheriff». Como quando uma rajada de vento corta rapidamente. Ninguém sabe donde e em que direção voltará a soprar. Mas o ar que formou não se perde, isso já todos sabem.

— Isso é filosofia?

— Chame-lhe o que quiser. Eu prefiro cantar. Gosta de música?

— Às vezes.

— Conhece «Alone on the prairie»?

— Não estou muito lembrado.

— É assim:

Last night, as I lay on the prairie

And looked at the stars in the sky.

I wondered if ever a cow-boy

Would drift to that sweet bye and bye...

 

Alguns homens aproximaram-se, mas ficando a certa distância do cantor. O «sheriff» escutava fumando com aparente calma. Quando Nelson terminou a canção com um largo rasgar de cordas, tirou o cigarro da boca e disse:

— Se atirar tão bem como canta, compreendo porque se adiantou a Duffey e a Martin.

— Atiro bastante bem. Qual das minhas duas habilidades pensa que me fará falta esta noite?

— Pelo que sei, não há muitos com vontade de comprovar o que é preciso para devolver a um morto o sítio onde deve descansar.

— Mas haverá algum, de verdade?

— Sempre se deve esperar a possibilidade de um incrédulo com vontade de o fazer.

— E onde poderei eu encontrar esses incrédulos, «sheriff»?

— Oh! Por aí. No «Fancy Saloon», por exemplo. Leve essa bonita rapariga para o acompanhar, Nelson...

— Não preciso da sua companhia, «sheriff».

— Conforme. Ela é filha e irmã de homens que um dia tiveram certa fama. Não deve estar muito acostumada a viver em povoados. E pode ser que se encontre muito só. Porque não aproveita a ocasião e lhe vai cantar algumas canções? Olhe que é um bom conselho.

— Pode ser. Mas primeiro vou dar uma volta pelo «Francy». Vou ver o que se passa.

— Se eu fosse você, não o faria.

— Mas como eu não sou você... Até logo, «sheriff».

—Fique quieto! Nelson voltou-se despreocupadamente.

Agora obedeceu voltando só a cara, descobrindo o revólver que a mão do «sheriff» empunhava. Levantou o olhar para os olhos dele. E perguntou calmamente:

— Com que direito, «sheriff»?

— Avisei-o de que, vivo ou espectro, acabaria nas grades, Nelson. Vamos. Fique quieto ou comprovarei o seu verdadeiro estado.

— Muito interessante...

Não se mexeu enquanto o «sheriff» lhe apontava o revólver. E não fez qualquer objeção à sua ordem de o mandar andar até ao cárcere. Começaram a soar vozes pouco amistosas para ele. Mas o «sheriff» depressa os acalmou.

— Não se perdeu nada por aqui. Continuem nas vossas ocupações.

— Temos direito de poder andar pela rua, Lawson. Porque não nos deixa comprovar a quantidade de vida que tem esse homem dentro da pele? Com uma corda bastará...

Detendo-se, Nelson olhou-o fixamente.

— Dar-te-ei esse gosto esta mesma noite, homem --disse.

O outro engoliu em seco. A seguir pegou no revólver. No entanto, o «sheriff» impediu-o, apontando-lhe o seu.

— Longe daqui, Milner. E tem muito cuidado com as mãos. Para a frente, Nelson. E faça o favor de deixar-se de fanfarronices.

Transcorridas umas escassas duzentas jardas até ao cárcere, esteve cercado por mais de meia centena de homens que contemplaram o passo de Nelson com as mais variadas expressões, nenhuma das quais mostrando amizade. Mas ele parecia tão tranquilo como se fosse para uma festa. Pegou na guitarra e pôs-se a cantar, atraindo ainda mais pessoas que assomavam às portas.

Ky-yee, ki-yay, ki-yippi, ky-yctm!

As he Hurriedly rose from the sport,

Ky-yee, ki-yam,

Un Mellican man

Un Bullifry velly dam hot!...

E assim entrou na prisão. Um homem ainda jovem, de feições rudes e olhos cinzentos, com dois grandes revólveres de cada lado, estava encostado à soleira da porta. Olhou-o com curiosidade e perguntou ao «sheriff»:

— Com que então é este o espectro de Windy Nelson, Lawson? Pois não tem aspeto de cadáver.

Nelson favoreceu-o com um sorriso.

—E não estou, homem. O inferno não devolve cadáveres avariados.

— Muito engraçado... Entra e veremos se podes eclipsar-te através das grades.

O cárcere era bastante amplo e possuía uma boa quantidade de celas, demonstrando tudo isso a importância de Dodge. Nelson deteve-se à entrada do corredor que conduzia às mesmas e inquiriu com voz normal:

— Haverá inconveniente em fumar um cigarro, «sheriff»? Não creio que isso vá contra as regras do regulamento.

Lawson vacilou um instante. A seguir encolheu os ombros.

— Está bem. Ainda farei mais. Consentirei que toque aí dentro. Até agora tem-se portado muito sensatamente, o que me, leva a suspeitar que não tem qualquer interesse em voltar a lutar.

—Coisa rara num fantasma, não é, Lawson? — riu-se o ajudante.

Sem deixar o seu sorriso e não lhes respondendo, Rich pegou no maço de cigarros e estendeu-o ao «sheriff». Este pegou num cigarro e olhou para o ajudante. Quando Rich os guardou, Lawson perguntou:

— Não fuma?

— Já que são tão amáveis para mim, quero, se os não ofender, dedicar-lhes a minha última canção desta noite. A seguir... vou dormir.

Dizendo isto, pôs-se a dedilhar na guitarra. O «sheriff» e o ajudante trocaram um olhar. O primeiro encolheu os ombros e ambos fumaram com prazer os cigarros, sem deixarem de olhar para Nelson. A verdade era que nenhum dos dois acreditava na história inventada pelo preso. Um homem desarmado contra dois vigilantes e quatro revólveres... Não, só um louco vivo, ou o espectro de um morto poderia intentar coisas raras.

Três minutos mais tarde, Nelson contemplava, sorridente e brincalhão, os dois homens caídos a seus pés como se de repente os tivessem golpeado na nuca com um maço de ferro. Deixando a guitarra sobre a mesa do escritório, pegou delicadamente no «sheriff» pelo peito da camisa e levou-o pelo corredor adiante até às celas, onde um par de prisioneiros ficaram como se vissem visões.

— Boas-noites, amigos — saudou-os cortesmente, ao mesmo tempo que introduzia o «sheriff» numa das celas vazias e voltava para ir buscar o ajudante, não tardando em regressar.

Então, com as suas próprias algemas, atou-lhes os pulsos, depois de as ter prendido por entre barrotes. E, com uma nova saudação, saiu dali. Um dos presos falou:

— Tu viste o mesmo que eu?

— Sim, com todos os demónios! Quem será esse tipo simpático?

— Como não seja o fantasma, esse que dizem veio à procura de «Killer» McCoy...

Depois de pegar na guitarra, Nelson meteu a chave das celas num bolso e saiu para a rua tranquilamente. Os homens que estavam de fora fazendo comentários, e que não puderam presenciar a extraordinária cena devido à estratégica disposição do cárcere, ficaram admirados. E mais do que um se afastou precipitadamente para longe dali.

Naquela altura, ninguém ousou sacar das armas contra um homem. ou o que fosse, que após quinze minutos de ter entrado na prisão, com o «sheriff» de pistola em punho, saía dali como se tal não tivesse acontecido.

Com passo moderado, Nelson dirigiu-se para o «Fancy», que se encontrava a meio caminho do hotel. Ninguém ainda tivera tempo de dar ali aquela novidade. Encontrava-se ali bastante gente, talvez umas quarenta ou cinquenta pessoas, de entre elas umas dez raparigas muito pintadas e bastante decotadas.

Faltava Molly Pitcher, que ainda se encontrava com os nervos bastante alterados. Em troca, estava Julie Anderson, a noiva de «Killer» McCoy. Era uma ruiva opulenta, bastante atraente e mais que bastante desenvolta, que acreditava em fantasmas e se recordava de um tal Windy Nelson, pela única razão de que o achara simpático. Quando soube a notícia de que o seu infortunado galã tinha voltado a Dodge, não teve o menor interesse em ir procurá-lo. Aquelas notícias tinham-na posto bastante nervosa, ainda que o procurasse dissimular. Agora escutava o arrogante relato de Milner, o tipo que quis tocar em Nelson para comprovar o seu grau de espectralidade.

Havia também outras raparigas, assim corno uma dúzia de homens, escutando o que ele dizia.

— … tinha-lhe dado uma boa ração de chumbo, se não fosse o imbecil do Lawson me...

O vibrante tocar da guitarra cortou-lhe a palavra e também o entusiasmo. Correu o mais depressa que pôde para a porta. E os outros fizeram o mesmo. Pelo seu lado, Julie Anderson ficou sem cor e com as pupilas dilatadas...

 

Come along, boys, and listen to my tale,

And Til tell you of my troubles on the Old Chisholm Trail,

Also about my death in Dodge City

When a pistol man killed me...

 

A porta de batente duplo abriu-se dando passagem a Rich Nelson com o chapéu sobre os olhos e a guitarra nas mãos, cantando...

Milner ficou como que petrificado. Quanto a Julie Anderson, os olhos pareceram sair-lhe das órbitas e pôs-se a tremer precipitadamente.

Os outros demonstraram diversos gestos de incredulidade, supersticioso terror ou desconcerto. Ninguém moveu uma mão ou disse qualquer palavra...

Cantando, cantando, mas sem deixar de vigiar todo o local e sem perder pormenores de tudo o que ali se passava, Nelson aproximou-se três passos de Milner e ali parou de cantar.

— Olá, Milner. Disse-te que te daria uma ocasião.

O aludido tremeu como se fosse uma árvore jovem atacada por uma rajada de furacão, e passou a língua pelos lábios.

— Como... Como pudeste sair? — tartamudeou.

— Porque sou um espectro. Não o sabias?

— Não! Não podes ser... Windy!

A rouca exclamação de Julie fez que quase todos se fixassem nela. Estava lívida e desfigurada. As suas mãos, crispadas, apertavam-se diante da boca.

Rich Nelson tinha uma saída para todas as ocasiões. Agora limitou-se a dizer:

— Não é verdade, criancinha?

Era aquela a maneira de Windy se dirigir às mulheres. Logicamente, Julie recordou-se...

Milner tinha muito pouco cérebro, como quase todos os rufiões. Agora, a sua escassa matéria cinzenta estava quase paralisada por completo. E aconteceu o pior que poderia ter acontecido. Pensou ver uma distração naquele... o que fosse, que estava diante de si. E recorreu ao único remédio que conhecia para sair de maus lençóis.

Tinha o revólver na mão e o percutor já levantado quando a arma de Nelson se disparou. Soou um único estampido. E, com uma careta incrédula, aterrada, o velhaco caiu, ferido de um lado ao outro da cabeça. Caiu como que fulminado por um raio...

— Sempre fui de opinião de que os estúpidos morrem com muito mais facilidade — foi o frio comentário de Nelson.

Depois disso, e sem se preocupar com mais ninguém, fixou o olhar na aterrorizada Julie:

— Pois é, olhos verdes, eu sou Windy. Já vi que te recordas de mim. Outra coincidência... que o não era muito. Windy só se dirigia às raparigas referindo-se à cor dos olhos. E assim o tinha feito com Julie oito meses atrás, quase no mesmo tom lisonjeiro. Por isso, ela começou a recuar, enquanto Rich avançava no mesmo ritmo. Ninguém pestanejava, como i se estivessem fascinados com a cena que se desenrolava.

Finalmente, as costas da rapariga ficaram encostadas ao balcão, não podendo retroceder mais. Rich estendeu-lhe a mão direita. Já tinha guardado o revólver, com absoluto desdém para todos os presentes.

Julie gritou.

— Não... Não me toques!...

— Tens medo? Porquê? Da outra vez gostaste da minha carícia, não é verdade?

Continuava a brincar. Mas o certo era que Windy tinha acariciado a rapariga. E ela gostara. Agora, louca de terror, apertou as mãos no balcão, contendo a respiração, e voltou a gemer:

— Por... Por Deus... Não me toques!...

Rich começou a suspeitar qual a causa indireta da morte de seu irmão. Por isso não teve compaixão. E continuou fazendo o seu jogo.

— Já vejo que tens medo. Mas asseguro-te que nas minhas mãos não há frio de além-túmulo. O diabo permitiu-me voltar para ajustar contas com McCoy. Mas quanto a ti só te quero dar um beijo. Assim poderás contar aos teus amigos que és, talvez, a única mulher viva que beijou um espectro.

Estendendo a mão completamente, apanhou-a propositadamente pelo cabelo. Ela estava tão rígida como se fosse de cera. Os olhos pareciam querer sair-lhe das órbitas. Em redor, nem se ouvia a respiração das pessoas presentes.

A obsessão dramática da cena punha uma concordância de terror em todas as mentes, incluso nos mais enérgicos. Porque já ninguém duvidava de que era o próprio Windy Nelson que regressara do Além-Túmulo, que estava diante deles.

Acaso Julie Anderson não o demonstrava com a sua atitude? Acaso alguns não tinham presenciado como o «sheriff» o levava debaixo da ameaça da sua pistola até à prisão e, passados poucos minutos, se tinha apresentado tão tranquilamente no «Fancy»?

Rápido, propositadamente, Rich obrigou a rapariga a aproximar-se, inclinando-se sobre ela para a beijar.

—O beijo de um morto...

Tinha-o dito com a boca sobre os seus lábios. Apenas chegaram a roçar ao de leve os seus. E Julie ficou apanhando o cabelo. Tinha sido demasiado violento para ela, que tinha ganho grande fama de mulher de ânimo resoluto. Soltou-a e reparou como ficava exausta, encostada ao balcão.

Uma rapariga soluçou e tapou a cara com as mãos. Alguém arrastou os pés, outro tossiu... Aquela tensão já se estava a tornar insuportável para muitos. Dominando-os a todos com o olhar, Nelson levantou a voz em tom vibrante e tranquilo:

— Se alguém quiser saber o que aconteceu ao «sheriff» e seu ajudante, encontrá-los-ão amarrados dentro duma cela. Vim trazer um aviso público a. «Killer» McCoy. Se vocês souberem por onde ele anda, digam--lhe que o espero aqui para lhe devolver a bala que ele no Verão passado me meteu no corpo. E que será muito melhor para ele vir. Já só tenho vinte e quatro horas de prazo. A seguir tenho de regressar ao sítio de onde vim. Mas se o faço sem ajustar primeiro as contas, dedicar-me-ei a atormentar McCoy todas as noites que ele tenha de vida. E contra isso não haverá esconderijo que o guarde. Agora vou-me embora. Agradecerei que fiquem aqui dentro tranquilos. Podem entreter-se a olhar para esse que me queria matar.

Assinalou o cadáver de Milner. Todos sentiram um calafrio percorrer-lhe a espinha. Não houve nenhum que sustivesse o olhar, e se os havia destemidos...

Ninguém o molestou durante o seu regresso ao hotel. Dodge ficava semeada de pânico sobrenatural naquela noite...

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