Ao anoitecer, Patrick, o velho Gregory, seu irmão. Benton, seu filho e o russo Ivan, foram à povoação, a fim de se despedirem definitivamente do Este. O círculo da caravana ficou quase deserto. Os irmãos Huston fecharam-se no seu carroção, e a francesa e a filha fizeram o mesmo. Catalina Ilivitch e a filha, Susi, ficaram a conversar junto do fogo com os filhos de Gregory e Mary, a neta de Stefan.
Uma hora depois, o grupo desfez-se e todos se encaminharam para as suas galeras. Mary afastou a lona e entrou. Às cegas, procurou um lampião, para acendê-lo; mas o seu gesto foi interrompido por uma voz.
— Não... Não faça isso — murmurou.
A primeira intenção da rapariga foi gritar, fugir... Porém o medo dominou-a e impediu-a de mexer-se.
— Não grite, por favor — disse a voz, como se adivinhasse o pensamento de Mary. —Não faça nenhuma asneira... Apenas desejo... uma noite... Amanhã partem... Tenho de sair de St. James...
Na escuridão, ouvia-se o arquejar do homem. Mary suspeitou de uma coisa.
— Bardon... Bardon... — repetiu suavemente. — Você é... Bardon?
A voz não lhe respondeu.
— Está ferido? — insistiu.
Também não recebeu resposta.
— Não tenha medo, Bardon... Eu estava lá, vi tudo... Você é, de facto, Bardon?
Durante alguns segundos persistiu o silêncio, como resposta, até que a voz murmurou:
— Sim... estou ferido... Tinha de matá-lo...
— Bem sei. Agora cale-se e espere. Acenderei a luz.
— Não!... Não acenda a luz.
— Sim, Bardon. Não lhe acontecerá nada.
Na obscuridade, ouviu-se o ruído do vidro do candeeiro. E de repente surgiu a luz. Diante de Mary, caído no solo, apoiado num saco de legumes, estava Bardon, o homem que na noite anterior disparara como um demónio contra o xerife e contra o indivíduo que tentara atacá-lo pelas costas. Tinha a camisa rasgada e o peito coberto de sangue seco. O ombro apresentava uma ferida, um buraco de saída e entrada de bala, e profundo golpe na carne. Não estava fechado e o sangue ainda brotava, mas em pouquíssima quantidade.
Mary apalpou-lhe o ombro. Bardon mordeu os lábios, procurando conter a dor.
— Sossegue... — murmurou a pequena. — A bala não ficou lá dentro. Com uma semana de repouso, ficará bom.
Bardon fitou-a suplicante. E ela sorriu-lhe. Ao fazê-lo, os seus olhos tomaram uma expressão indescritível, uns matizes incríveis. Acariciavam, tranquilizavam... Eram uns olhos como muito poucas vezes se encontram.
— Estive escondido... num valado... todo o dia... sem comer.
— Não se preocupe com isso. Agora o importante é tratar da ferida.
Mary dirigiu-se para uma caixa de madeira muito grande e tirou uma peça de roupa branca. Rasgou-a com rapidez, fez ligaduras. Depois, procurando apertar bem, começou a vendar a ferida. Quando terminou, disse:
— Agora beberá uma chávena de café.
— Obrigado.
A rapariga dirigiu-se para a saída do carroção e afastou a lona.
— Mary... — murmurou ele.
— Voltarei, descansa — respondeu-lhe a jovem, tratando-o por tu pela primeira vez.
Assim foi. Ainda não passara um minuto quando voltou com o café.
— Não está muito quente, mas... — desculpou-se.
Bardon bebeu avidamente. Assim que acabou, olhou a rapariga, fixamente, nos olhos. E, por uma estranha associação de ideias, disse:
— Era um assassino... Merecia-o...
- Bem sei. Cala-te e sossega. Quando estiveres mais levar-te-ei para outro carroção, onde poderás passar todo o tempo que for necessário... O juiz também matou um xerife.
— Obrigado... Mary; muito obrigado...
Bardou inclinou a cabeça e apoiou-se aos joelhos da rapariga. Quando ela lhe acariciou o rosto, Louis Bardon dormia, esgotado pelo esforço. Cerca da meia-noite, a rapariga acordou-o.
— Bardon, eles estão a chegar e não poderás ficar aqui. O meu avô... compreendes?
— Sim.
— Vamos. Podes levantar-te?
Bardon experimentou e verificou que podia fazê-lo. Porém, preferiu afirmar o contrário.
— Não posso.
— Apoia-te.
Ele assim fez. Passou o braço pela cintura da rapariga deixou-a fazer o mesmo. Cambaleando, atravessou o carroção, e no momento de saírem os seus rostos tocaram-se. Foi uma sensação rápida, fugaz, mas inolvidável. Os rostos estavam muito próximos e a respiração bafejava-lhes as faces.
— Mary... — murmurou ele.
— Por favor — replicou ela.
E uma vez mais ganharam os seus olhos. O calor que possuíam impôs-se à vontade de Bardon. Deixaram o carroção e dirigiram-se para o do juiz Benton. Mary afastou a lona e ajudou Bardon a entrar.
O interior da galera era um autêntico arsenal.
— Vive algum exército aqui? — murmurou Louis tentando sorrir.
— Não. É de um juiz, um tal Benton.
— Benton?... «Cospe-Chumbo» Benton? — perguntou.
— Conhece-lo?
— Sim... E ele a mim. Somos amigos. Foi ele que me indicou o sítio onde se encontrava Jou.
— Nesse caso, não levantará nenhum obstáculo.
Naquele momento ouviu-se o ruído de cavalos. Eram os homens que regressavam de comemorar a sua despedida da civilização. Mary recebeu-os junto do fogo.
— Ainda a pé? — perguntou-lhe o avô.
— Tinha sede e pensei que podia fazer café para todos...
— Bem pensado, filhinha — murmurou o juiz. — E não pensaste que a sede se acalma com «whisky»?
— Bem, «Cospe-Chumbo», bem!... Deixa de pensar sempre no «whisky» ... E vai para a cama — interveio Patrick.
— Sim, é melhor — concordou o juiz.
Ao aproximar-se do seu carroção, Mary foi ter ele.
— Conhece um tal Louis Bardon, juiz?
— Conheço.
— Esteve ontem aqui.
O juiz parou e fitou-a.
— Tens uns olhos muito bonitos... que não sabem mentir. Onde está agora o Louis? No teu carro ou no meu?
A rapariga não respondeu.
— Sou juiz e não me enganam facilmente, pelo menos as mulheres que não amo... Onde está ele?
— No seu carro. Encontra-se ferido e precisa de uma semana de descanso.
— Tê-la-á, ou um mês, se quiser... E por falar em querer: gostas dele?
Mary hesitou. Por fim, meneando a cabeça como uma criança, disse:
— Não..., mas lamento o que se passou.
— Fica descansada. Escondê-lo-emos até chegar o momento oportuno. E pode ser que se resolva a acompanhar-nos até ao nosso paraíso... se tu lhe pedires. Ela voltou a negar com a cabeça e afastou-se do juiz. Quando entrou no carroção, o avô já estava deitado.
— Mary, lembraste do homem que ontem matou o xerife?
— Lembro — murmurou ela, sobressaltada.
— Pois foi ferido e encontrou-se o seu cavalo agonizante. Receio que amanhã nos revistem.
— E isso que nos importa?
— A nós, nada... Mas o juiz Benton disse que o conhece e não me admiraria que estivesse escondido no seu carro...
Mary ficou perplexa. Por fim respondeu:
— Não o julgo tão estúpido. Um homem desses não merece auxílio, enquanto não se demonstrar a sua inocência...
— E tu acreditas nela?
O interrogatório começava a incomodá-la.
— Não fales mais nisso, avô... Estou cansada. Boas noites.
— Como quiseres. Boas noites.
A rapariga estendeu a cortina que convertia o interior do carro em duas divisões durante a noite e despiu-se.
Meteu-se na cama e fechou os olhos, num esforço infantil para dormir. Não o conseguiu até muito tarde. A ideia de que se descobrisse Louis Bardon atormentava-a. Recordava a sua decisão, a sua valentia, a rapidez dos seus reflexos e a profundidade do seu olhar.
E depois a confiança que depositara em si.
Quando adormeceu, brincava-lhe um sorriso nos lábios.
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