Ao meio-dia os carroções de Patrick, dos irmãos Huston, do velho Gregory e de seu irmão Stefan, e o da viúva francesa, formavam roda, no meio da qual ardia o fogo que aquecia o café. Em monte, viam-se os pratos do almoço.
Patrick opinava que, já que teriam de conviver durante semanas, o melhor era começarem a conhecer-se sem demora.
Quando Patrick bebia a terceira chávena de café e o velho Gregory fumava a sua segunda cachimbada de ervas secas a que chamava tabaco, John Huston levantou--se do grupo e dirigiu-se para os carros. Dali disse.
— Vem aí gente. Duas galeras.
Patrick e os demais, com as chávenas na mão, levantaram-se e acercaram-se de John Huston. Efetivamente, aproximavam-se dois carroções. Na boleia do primeiro vinham dois homens.
Um deles teria cinquenta anos e vestia uma sobrecasaca «Príncipe de Gales», negra, e cobria-lhe a cabeça uma velha cartola, já brilhante pelo uso.
A seu lado sentava-se um homem de uns vinte e cinco anos, vestido de vaqueiro. Porém, apesar da camisa de quadrados, das justas calças texanas e do lenço vermelho atado ao pescoço, via-se perfeitamente que o não era.
No segundo carroção vinha um homem baixo e rubicundo, barbudo, de pele muito branca, coberto por um amplo chapéu. A seu lado sentava-se uma mulher que parecia mais nova do que ele, e atrás via-se o rosto de uma rapariga, indubitavelmente filha do casal.
— Chegamos a tempo, Ivan! — gritou o homem da sobrecasaca, levantando-se na boleia e cumprimentando com a mão aberta. — É aqui que estão a formar uma caravana de «desesperados»? — perguntou.
A frase não agradou a Patrick, que como única resposta se limitou a beber o café.
— O meu pai quer dizer se são vocês os que partem por uma nova rota. Informaram-nos no «saloon» ...
— Talvez — replicou Patrick.
— Gostaríamos de acompanhá-los em tudo, incluindo no café... — voltou a intervir o da labita. — Chamo-me Benton e, no Tennessee, conheciam-me pelo juiz Benton. Este é meu filho Graham, estudante até há dois anos, advogado depois e agricultor ou criador de gado dentro de algum tempo.
— E os outros? — perguntou o velho Gregory, sem tirar o cachimbo dos lábios.
— Sou Ivan Ilivitch, russo de nascimento, e esta é minha mulher Catalina. A outra é minha filha Susi. Faz três anos que abandonámos a nossa pátria; vivemos seis meses na Polónia, a seguir mudámo-nos para Inglaterra e dali partimos para o Este americano. Não gostámos das possibilidades que se nos ofereceram e preferimos tentar novas terras que possamos cultivar e chamar nossas.
—O Oeste é duro e é preciso conhecer o manejo das armas. Alguma vez viu um «Colt» na Rússia?
— Lá só conheci o látego e o manejo das navalhas. Trabalhava na fazenda de um conde e vivíamos corno escravos... Mas aprendi a servir-me da navalha e por isso aqui estou.
— E o conde no cemitério, não? — murmurou Stefan, o irmão do velho Gregory.
Ivan desatou a rir às. gargalhadas.
— Ah, ah, ah!... Sim, no cemitério... Mas foi uma luta leal. Desafiei-o na noite de São Bartolomeu, festa dos camponeses na Rússia, e teve de aceitar. Aquele é o único dia do ano em que os proprietários e os escravos se igualam. Os nossos filhos têm o direito de beber pelo mesmo copo que os filhos dos amos, e as nossas filhas podem negar-se a dançar com eles. Reptei-o para duelo diante de todos e cuspi-lhe para que aceitasse. Um duelo à pistola-navalha...
— Pistola-navalha? — admirou-se John Huston.
— Sim. Ele com a pistola e eu com a navalha. E morreu.
— Impossível — interveio Patrick.
— São Tomé não acreditou enquanto não pôs os dedos na chaga, dizem as Escrituras. Você aponte ao meu chicote e eu atirarei a navalha contra a roda do carroção que está a seu lado... Uma palmada será o sinal.
— Dá-la-ei eu. Prontos? — perguntou o juiz Benton.
— Sim.
— Sim.
A pancada ressoou, seca. E ao mesmo tempo estalou um tiro que partiu em dois o chicote do russo, enquanto que algo quase invisível, devido à velocidade que levava, atravessou o ar e cravou-se profundamente na roda. A navalha vibrou uns instantes e depois ficou imóvel.
Patrick sorriu, satisfeito.
— Onde a trazias?
— Na manga... E restam-me mais três. Um silêncio admirativo pairou na atmosfera.
— Muito bem — disse Patrick, rompendo-o. — Se quiser, pode vir connosco. Teremos cinco carroções.
A voz do juiz voltou a ouvir-se.
— A meia dúzia fica melhor, não lhe parece? E se ele é rápido no manejo da navalha, nós somo-lo nas armas de mão. Esqueci-me de dizer-lhe que me chamavam «Cospe-Chumbo» Benton... Dizem que impunha a justiça a meu modo, de «Colts» na mão quando era necessário, mas garanto-lhe que esta é a justiça que as pessoas entendem melhor: a do pau. Ou do chumbo.
— Por que lhe interessa o Oeste, Benton?
— Sou juiz porque nasci para isso, mas sem haver estudado. Quando o Este começou a povoar-se, chegaram juízes carregados de dívidas e de desonra, que abandonaram os seus países em busca de fortuna na América. Porém, não eram suficientes, e como não havia Universidade nem possibilidades de estudar, as pessoas, para dirimirem as suas questões, aceitavam as sentenças ditadas por homens que gozavam da sua confiança. Eu era um desses homens. Andava sempre a viajar e quando chegava a uma povoação apresentavam-me os problemas, que resolvia com justiça, se podia. O mal do cargo era que eu mesmo tinha de executar a sentença, e isso obrigava-me a manejar os «Colts» como outros manejam a navalha. A coisa complicou-se há meio ano. Tive de justiçar um xerife e tal facto foi a minha desgraça. Outro, no meu lugar, talvez tivesse preferido dar-lhe razão, mas garanto-lhes que, em justiça, tinha de pendurá-lo. Não o pendurei, mas enchi-o de chumbo, enquanto procurava convencê-lo da necessidade de deixar pôr a gravata de cânhamo. A partir daquele momento, a situação modificou-se. O Governo proibiu este exercício da justiça, que classificou de ilegal, e vi-me obrigado a procurar novos locais para operar, onde ainda não tenha chegado a Jus-liça e, portanto, as coisas caminhem bem. Por isso desejo ir mais longe do que os demais. E vocês vão, não é verdade?...
— É, «Cospe-Chumbo» Benton... Quer café?
— Não uma chávena, mas duas... e cheias de «whisky» — replicou, ao mesmo tempo que saltava da boleia e se dirigia para Patrick, de mão estendida.
Meia hora depois estavam todos reunidos junto do fogo.
— Como disse há pouco o juiz, reunimos meia dúzia de carroções. Creio que somos suficientes para tentarmos atravessar o deserto com êxito e descobrirmos novas terras. Sou de opinião de que devemos partir amanhã ao amanhecer. Que dizem?
— O mais cedo possível — murmurou John Huston, o irmão magricela, que permanecia a maior parte do tempo de olhar perdido no infinito, sem falar, como se estivesse ausente.
— Esta tarde compraremos algumas provisões que nos faltam, barris para o transporte de água, que encheremos antes de entrarmos no deserto, e trataremos dos últimos pormenores para partirmos logo de manhã.
Ninguém se manifestou em desacordo.
Benton levantou-se com uma chávena cheia de «whisky» e exclamou:
— Brindo pelo êxito da «caravana dos desesperados»
— Não, pela caravana dos esperançados — corrigir Patrick, com um sorriso.
E assim era. Todos começavam a aventura arrastando o seu passado, muitas vezes tenebroso, que ocultavam debaixo de um sorriso e de uma alegria aparente, do silêncio ou da verborreia. Não se podia negar tratar-se de um grupo de pessoas que fugiam de algo impossível de esquecer: passado.
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