Ao anoitecer do quarto dia, o Enclave Jack não aparecera ainda no horizonte. De novo o silêncio caiu sobre a caravana. O fantasma da sede sofrida antes do oásis de Clermont assaltou os cérebros. Existia o medo latente de que aquele tormento voltasse. A água não era abundante, mas confiava-se que seria suficiente para chegarem ao enclave, onde tornariam a abastecer-se.
No dia seguinte, as horas passaram lentas. Ao meio-dia, Patrick deu a ordem que todos esperavam.
— Racionaremos a água. Ainda há para três dias e antes disso chegaremos ao enclave. Temos de evitar o que sofremos a semana passada.
— Mas chegaremos ao enclave? — perguntou Graham, o filho do juiz Benton.
— Sim. As estacas indicar-nos-ão o caminho.
— E se há algum erro?
— Impossível. Chegaremos.
Ao anoitecer, quando se deitaram, acreditavam que a realidade era tal como dizia o escocês. No dia seguinte, ao recomeçarem a marcha, todos esperavam que antes do sol se esconder chegariam ao Enclave Jack, uma pequena edificação erguida junto um poço de água inesgotável, outro dos mistérios da na reza que se 'notava no deserto de Fergur. Contudo, não foi assim. Chegou o sétimo dia e com ele o fim das reservas de água. Durante a ceia, Patrick dividiu a última ração d líquido.
— Amanhã chegaremos — foi a sua promessa.
Porém, nem ele próprio estava já certo do que afirmava.
O dia seguinte foi terrível. De novo se esgotara a água. O sol queimava como nunca acontecera nos dias anteriores. Os colonos suavam por todos os poros, mas sustinha-os a esperança de que em breve chegariam ao Enclave Jack. As estacas continuavam a indicar-lhes o caminho, sempre para diante.
O martírio da sede aumentou ao chegar o meio-dia. Não se parou para comer. Os animais já quase não podiam mover-se e os carroções pareciam arrastar-se. Paravam com frequência e era necessário o esforço de todos para voltá-los a pôr em andamento.
Patrick multiplicava-se. A sua força hercúlea servia para ajudar os cavalos a desenterrar as rodas. Os outros estavam incapacitados de realizar grandes esforços. O juiz Benton quase não conseguia falar. A garganta convertera-se-lhe numa massa de carne que lhe impedia a saída das palavras. Seu filho Graham acusava também os efeitos do calor e da sede.
Catalina Ilivitch e a filha tinham abandonado os cavalos e haviam-se recolhido no interior do carro, fugindo dos raios do sol. Os animais seguiam o veículo da frente a passo cansado.
Bardon cavalgava junto do carro do velho Stefan. Mary estava lá dentro deitada na sua cama. Os irmãos Huston pareciam ausentes. John continuava na boleia e via-se estar disposto a chegar até ao inferno. O irmão, James, estava convertido em pele e osso.
Meio-dia, uma hora, duas, três...
O tempo decorria com lentidão desesperante. E sempre as estacas, que se prolongavam até ao infinito, sem que se distinguisse a silhueta inconfundível do Enclave Jack.
Paul, o irmão de Bardon, cavalgava de cabeça inclinada sobre o peito, respirando com dificuldade. A barba cobria-lhe quase todo o rosto e o suor fazia-lhe brilhar os cabelos. Permanecia como um estranho à caravana, solitário e negro.
Às quatro produziu-se um acidente. Do carroção dos Huston partiu um grito. Quase ninguém lhe prestou atenção. Depois soou um tiro.
Os animais detiveram-se, surpreendidos e cansados. Patrick, Benton, Graham, Claudine, Bardon, e Paul dirigiram-se para o carro dos irmãos Huston. O espetáculo que se ofereceu aos seus olhos era terrível. John Huston estava pendurado da boleia, com a cabeça aberta por um tiro à queima-roupa. O sangue gotejava e formava um charco que a areia absorvia sem demora.
James, de «Colt» 38 na mão, olhava para os que o rodeavam. Tinha os olhos abertos, quase a quererem saltar-lhe das órbitas, e a mão tremia-lhe. Os lábios entreabertos, deixavam ver a sua língua, inchada, dura, asquerosa.
— Eu... eu... matei-o. Fui eu... — murmurou James.
O seu corpo magricela e delgado movia-se lentamente. As suas pernas pareciam os tentáculos de uma aranha. — Morreremos todos... todos... — acrescentou.
Paul foi o único que se atreveu a falar:
— James, larga o «Colt» — ordenou-lhe.
A resposta foi negativa.
— Não, Paul... E não procures tirar-mo... Deixa-me sair daqui...
James saltou para o chão.
Todos lhe obedeceram, com lentidão, formando quase um corredor que levava ao deserto sem fim. A caravana estava parada, os animais pareciam estátuas de pedra, imóveis, suportando o duro sol que se abatia sobre eles.
— James, deixa o «Colt». Não foste tu, James. Estou certo disso — voltou a dizer Paul, empregando um tom de voz suave, quase carinhoso, como se falasse a uma criança.
James Huston cravou os olhos nele.
— Sabes...? É verdade que sabes?... Tu estavas em Midgeville quando aquilo aconteceu... Estavas lá, não verdade?
Paul assentiu.
— Sim... E por isso é que sei que não foste tu. Foi John. Ele é que o matou; estou certo disso. Falaram-me muito de ti, do teu carácter, dos teus ataques, da tua maneira de ser... Quando ele desapareceu, eu estava convencido de que o verdadeiro assassino fora John... apesar de tu teres disparado contra ele... Foi ou não Foi assim?
James meneou afirmativamente a cabeça. Os seus olhos tinham reflexos de desorientação. Debaixo da sua pele sobressaíam as veias, como se estivessem prestes a rebentar.
— Eu... eu só disparei sobre ele... três vezes e todas pelas costas. Mas foi John que me obrigou a isso... eu estava louco, louco...
— Sim, James, tu estavas louco... Anda, não faças mais asneiras. Dá-me o brinquedo que tens na mão... James, sê bom rapaz, tem juízo...
James recusava com a cabeça.
— Não... não... Vou-me embora para junto dele... Desde que morreu, parece que caiu uma maldição sobre nós... Os campos secaram, a terra queimou-se... Uma maldição que nos custará a vida... Ele acaba de aparecer-me... disse-me que morrerei hoje... Está dentro do carro... Não tem corpo; apenas cabeça... Hoje morrerei... Hoje...
James avançou lentamente pelo corredor que lhe abriam. Paul tentou pôr a mão no braço do louco, mas a rápida reação deste atirou-o ao chão. James retirou o braço com violência e afastou Paul para longe de si.
— Paul... não tentes deter-me... Ele disse-me que morrerei hoje... está no carro... não tem corpo...
Os lábios de James tremiam, enquanto ele falava, e os seus olhos deixavam transparecer o que se passava no seu cérebro de louco. James olhou o deserto fixamente. O suor cobria-lhe a fronte. Os seus gestos já não eram tão lentos como minutos antes. Avançou por entre os homens.
— Vou já... — murmurou. — Matei-te, mas vou já... Desde o dia em que te matei... que sei que acabarias por chamar-me para junto de ti, pai...
Ao ouvirem aquela palavra, um calafrio de terror percorreu o corpo dos presentes. Aquele homem assassinara o seu próprio pai! James avançou com maior rapidez.
— Aí vou, pai! — gritou.
Os seus gestos tornaram-se ainda mais velozes. O cansaço e a sede que dominavam os seus membros minutos antes haviam desaparecido. Agora era um louco, com toda a misteriosa força dos loucos, capaz de fazer o que nenhum homem normal faria naquelas circunstâncias
— Aí vou, pai! — repetiu, com mais força.
Os seus passos converteram-se em corrida. Os seus pés afundavam-se na areia e levantava pequenas nuvens de pó, ao correr.
— Pai!
Aquele grito chegou até aos colonos com um acento de indescritível súplica. Ninguém tentou impedir os passos de James. O louco precipitara-se em busca da morte.
Viram-no correr durante alguns minutos, até que parou. Estava longe, a cerca de meia milha.
Ninguém dissera nada desde que James fugira. Permaneciam todos quietos, imóveis, assustados ante o segredo que acabava de revelar-se-lhes.
James andou ainda umas cem jardas. Depois parou. Viram-no levar a mão à cabeça e tombar. Enquanto caía, o vento trouxe-lhe o ruído de um tiro. Todos compreenderam que chegara o fim para os irmãos Huston. O primeiro a reagir foi Paul.
— Seguirei no seu carro — declarou, dirigindo-se para ele.
Ninguém disse nada. Todos se limitaram a regressar aos seus lugares. Paul, com o pé, afastou o corpo de John Huston, que caiu ao chão. Os chicotes estalaram no ar e os cavalos romperam a marcha. As estacas continuavam a indicar o caminho.
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