quarta-feira, 24 de maio de 2023

ARZ077.09 O ataque dos índios faz as primeiras baixas

Durante os dias seguintes a caravana continuou rumo a Oeste. Nada parecia diferente. A terra continuava a estender-se até ao infinito, e apenas de quando em quando a sua superfície plana era quebrada por um capricho da Natureza, produzido pela erosão.

O céu, azul e límpido, era vigiado constantemente. Todos esperavam com temor o momento de verem uma nuvem de fumo negro nascer no cume de qualquer daqueles monólitos.

Toda a gente pareceu tornar-se mais reservada.

Os irmãos Huston continuavam com as suas discussões em voz baixa. James emagrecia ainda mais e os seus olhos apresentavam com frequência sinais de loucura.

Claudine permanecia sempre de olhos postos no horizonte, na distância. Tinha um medo terrível de que qualquer coisa pudesse suceder que lhe roubasse a vida da filha... Esta, Cíntia, não se apercebia do perigo que pairava sobre a caravana, e muitas vezes a mãe surpreendia-a a brincar com o botão dourado que lhe dera o tenente Carrugan.

O velho Gregory e seu irmão Stefan embrenhavam-se em compridas conversas. Ambos eram velhos e estavam de acordo em que empreendiam a aventura para assegurar o futuro de seus filhos e neta.

— Temos muitos anos e vimos já muitas coisas. Fazemos isto por eles.

— Sim — replicou-lhe Stefan — mas sempre é bonito viver...

O que parecia preocupar-se menos com a situação era o juiz Benton. Passava o dia de carro em carro, falando pelos cotovelos e procurando animar todos. Muitas vezes, ao abrir a boca para falar, saía-lhe por esta o bafo característico do «whisky». E ele, ao notá-lo, sorria satisfeito.

— É o cheiro de santidade — murmurava.

Seu filho Graham passava as horas na boleia, de olhos postos no carro dos russos. Susi, a filha de Ivan Ilivitch, já reparara no interesse que despertara. E o mesmo acontecera com Ivan. Na sua Rússia natal, teria obrigado a rapariga a esconder-se. Mas estavam no Oeste, no meio da pradaria, e compreendia que seria estupidez tal procedimento.

As horas passavam lentas e sempre os acompanhava o chiar dos carros. As rodas estavam lubrificadas, mas a carga era muita. Naquela noite acamparam junto do Silver, um afluente do rio Oliver. Patrick deu ordem de encher os barris.

— Amanhã, se tudo correr bem, chegaremos ao deserto. É a última vez, durante algumas semanas, que temos toda a água que quisermos ao nosso dispor. É preciso   aproveitá-la para nos abastecermos.

Todos obedeceram em silêncio. A operação foi realizada o mais rapidamente possível. Os carroções eram colocados junto da margem e os barris que levavam à volta enchidos em poucos minutos. Formaram-se duas cadeias e utilizaram-se baldes no enchimento.

Ao anoitecer, quando já todos dormiam, Bardon iniciou o primeiro turno de guarda. O recém-chegado incorporara-se no grupo e ninguém parecia interessar-se demasiado por si. Alguns tinham-no visto matar o xerife, mas preferiam acreditar no que ele explicava do que duvidar. Era mais cómodo.

Passeava da parte de dentro do círculo, atento ao que poderia suceder do lado de fora, quando Patrick saiu do seu carro. Era a ele que competia rendê-lo.

— Ainda não são horas, Patrick — murmurou.

— Bem sei, mas não tem importância... Preciso de falar contigo.

— Diz.

— Louis, penso que já estiveste no Oeste e que conheces tudo isto...

— Sim. Tive de atravessá-lo para matar um homem, o companheiro de Jou. E depois regressei ao Este, quando esse homem me indicou onde podia encontrar o cúmplice. Foi o juiz quem acabou de orientar-me.

— Bem sei... Que te parece a nossa ideia de atravessar o Fergur por uma rota nova?

— Uma loucura..., mas realizável. Por ora o que me preocupa mais são os índios.

— Ainda não apareceram.

— Mas aparecerão... Amanhã chegamos ao deserto, e antes não atacarão. Pare eles, o mundo acaba nas areias calcinadas. O que ali começa é o seu inferno, a sepultura dos deuses do mal, a morada de todas as desgraças... São um povo simples que julga mau tudo o que não consegue vencer. O deserto é o inferno, porque não lograram atravessá-lo... Não entrarão no Fergur, mas antes de chegarmos a ele atacar-nos-ão.

— Receio isso mesmo... Enfim, se querem luta, tê-la-ão. Fecharemos o círculo e defender-nos-emos com pudermos.

— Isso é o que se não deve fazer... Tive um amigo explorador, um tal Murango, filho de índia e branco que me explicou muitas vezes ser um erro formar círculo para defender-nos, em certas ocasiões. Isso apenas é aconselhável quando não se pode seguir para a frente, por o terreno o não permitir... É uma vantagem que eles desejam sempre. Se se fechar o círculo, os de dentro ficam prisioneiros da sua própria armadilha, e mais cedo ou mais tarde acabam por ser batidos. No nosso caso, é preciso agir de outra maneira... Proceder do modo que os índios não estão habituados: seguir para diante, custe o que custar.

— Fugir?

— Não, lutar. Mas de maneira diferente. A pradaria é ampla e até ao deserto não encontraremos muitos monólitos que quebrem a planura. Os nossos sete carroções podem correr uns ao lado dos outros, numa frente única, com uma mulher ou um homem na boleia e o resto a fazer fogo... Ficarão surpreendidos e lançar-se-ão ao ataque sem possibilidade de surpresa, visto que, em vez de os esperarmos fechados num círculo, tomaremos o caminho do deserto... Se nos atacarem ao entardecer, a possibilidade de vencer será entrar no Fergur.

— E se nos atacam amanhã de manhã?

— A mesmo coisa: correr em linha, formando uma rente. 

— Algum ficará para trás... E o que se atrasar...

— Morrerá. Mas não se pode esperar uma luta sem mortos.

— Esperemos que não aconteça nada.

— Acontecerá... Somos uma presa apetecível e aparentemente fácil. Estou certo de que nos seguem desde que saímos do forte.

— Então, só nos resta uma possibilidade: lutar.

— Exatamente. Veremos se me engano.

Bardon retirou-se para o carro do juiz e Patrick ficou de guarda debaixo das estrelas. No dia seguinte, durante o pequeno-almoço, o escocês explicou a todos a situação que pela certa lhes surgiria durante o dia e a resolução adotada: não optar pela defesa em círculo. Continuar a marcha formando uma frente e procurando manter os carros a par. Ninguém disse nada.

Começava um novo dia, que prometia ser quente e sangrento. Assim que se puseram em marcha, todos os olhos se cravaram no horizonte, à procura de qualquer indício que lhes revelasse a proximidade do perigo.

As horas passaram lentas. A manhã decorreu do mesmo modo que os dias anteriores. A única mudança apreciável foi no terreno. A pradaria convertia-se paulatinamente em terra cada vez mais ressequida.

Atravessaram um arroio sem água. Alguns catos enredaram-se nas rodas dos carroções. Começava a notar-se a proximidade do deserto. No ar pairava a secura própria das terras áridas e ressequidas. O Fergur estava perto.

— Devem faltar umas quinze milhas — disse Bardon.

Patrick não deu ordem de parar para comer.

— Cearemos esta noite nas areias. Agora, para diante.

Pressentia-se o medo do que pudesse suceder. Um medo enorme. Eram quatro da tarde quando Patrick, que conduzia a primeira galera, parou os animais. Todos fizeram o mesmo e deixaram as boleias. No céu, à direita, elevava-se uma nuvem de fumo negro, a partir do cume de uns monólitos.

— índios — murmurou Patrick.

E a mesma ideia ocorreu a todos os cérebros.

— Sim, índios..., mas temos de continuar — disse Brandon.

Regressaram todos aos seus lugares. As mulheres sentaram-se nas boleias e os homens verificaram de novo as armas e as munições. A luta parecia inevitável.

Durante as duas horas que se seguiram, as nuvenzitas de fumo repetiram-se quase uma dezena de vezes. Compreenderam que estavam cercados. A inquietação começou a dominá-los.

— Por que motivo não nos atacam? — perguntavam-se todos.

Bardon ia de carro em carro.

— Faltarão seis ou sete milhas para chegar ao deserto. Será uma corrida selvagem, mas temos de resistir... Cuidado, Mary, não faças nenhuma asneira.

— Pensarei em ti — replicou-lhe a rapariga, com unia careta graciosa.

Entretanto, Ivan Ilivitch limpava pela última vez a sua coleção de navalhas. Além disso, tinha ao lado duas arabinas, duas «Winchester». Susi, sua filha, guiava os animais.

— A mãezinha ajudá-lo-á a carregar as armas, e eu conduzirei — disse a Bardon, ao vê-lo aproximar-se.

— Procura manter-te a par dos outros. Se alguém se atrasar, correrá risco de morte.

— Farei o possível.

No carroção do velho Gregory, os três homens carregavam as carabinas de repetição. Eram das mais modernas que existiam e capazes de semear a morte a velocidade surpreendente, quando manejadas por homens experientes. O velho Gregory tirou o cachimbo de entre os dentes gritou:

— Patrick! Chegou a hora de mostrar-te que não lenho medo. Lembras-te da primeira conversa que tivemos? Pois chegou a altura de agir em vez de falar.

Patrick aproximou-se.

— Sei que se portarão bem.

— Sim, claro ...E antes que aconteça qualquer coisa quero fazer-te uma confidência: tenho um pacote de quinze libras de tabaco «Virgínia» no meu carro. Se morrer, é teu.

— «Virgínia» com couro raspado? — perguntou, zombando, o escocês.

— Não, não; «Virgínia» autêntico... que não faz vomitar. Guardei-o como se fosse ouro. Fuma-o tu, se me acontecer alguma coisa.

— Tu o fumarás. Não te acontecerá nada. A um homem que é capaz de fumar couro e folhas de beterraba os índios não serão capazes de fazer mal.

— Mas eles não se fumam... — murmurou o velho.

Continuaram a marcha. As cinco da tarde o sol começava a declinar no horizonte. Pressentia-se que os monólitos que se erguiam na sua frente eram os últimos que encontrariam antes de chegarem ao deserto.

— Estamos perto... Depois de passarmos aquelas montanhas atacar-nos-ão.

— Bem, então nos defenderemos.

Faltava uma milha. O deserto aproximava-se. Na caravana reinava enorme tensão. Os minutos passavam com lentidão desesperante e o calor aumentava, provocado pela impaciência e pela incerteza.

No fundo, todos desejavam que, se alguma coisa tinha de suceder, sucedesse o mais depressa possível. Aproximaram-se dos monólitos. Eram dois blocos enormes, de pedra vermelha, gretada e caprichosa, moldada pela carícia brutal do vento que arrastava as areias do deserto.

Os dois monólitos estavam separados por uma milha. Entre eles passaram os sete carroções. O ar pesava. A secura do deserto parecia deter as pulsações. Todos olhavam as rochas com desconfiança.

De repente, um grito rasgou o ar. E a esse grito sucederam-se mais, como se fossem ecos monstruosos do primeiro, que se misturavam com o reboar dos cascos de dezenas de cavalos.

— Adiante e em frente!

Os chicotes silvaram sobre o lombo dos animais e a rodas chiaram com redobrada intensidade. Houve uns segundos de indecisão, até que o velho Gregory se atirou para diante, saindo da fila, para dar início ao plano previsto. Quase no mesmo instante, Claudine fez o mesmo. Bardon, que ia a cavalo, saltou para o carroção da francesa.

— Siga para a frente! — gritou.

Cíntia olhou-o, assustada.

— Que... que... aconteceu? — gaguejou.

— As armas! Sabes carregá-las?

— Sei...

— Então, despacha-te!

A pradaria convertera-se num inferno. O barulho era terrível e das rodas das galeras escapavam-se autênticas nuvens de pó. Patrick gritava e gesticulava como um demónio, de pé na boleia, açoitando os animais sem compaixão.

Ainda não decorrera nem um minuto e já os carroções formavam uma frente única, que avançava avassaladoramente. Separados por menos de um par de metros uns dos outros, animando-se com os seus gritos, rodavam em busca do deserto que sabiam próximo.

Aquela reação produziu desorientação e surpresa no grupo atacante. Esperavam que os brancos se fechassem num círculo, para só terem de fustigá-los e cansá-los, até que a falta de água e o sol fizessem o resto.

Bardon viu que os atacantes paravam, indecisos.

— Para a frente! — rugiu, animando-se.

Cada metro que os afastava dos atacantes significava muito. Era mais um metro que os índios teriam de recuperar, e era um metro menos para chegarem às areias queimadas pelo sol.

Todavia, a indecisão não durou muito tempo. Um grito gutural saiu da boca do que parecia o chefe, e de novo se lançaram ao ataque. Estenderam-se, seguindo a rota das galeras.

Quase se podiam contar. Era um grupo de perto de uma centena, montados em cavalos semisselvagens, de membros fortes e resistência quase inesgotável.

A maioria dos índios encontrava-se seminua. Nas mãos, brandindo-as como se fossem maças, viam-se carabinas.

— Depressa! Para diante! — continuava a rugir Patrick.

E ao mesmo tempo olhava à direita e à esquerda, para observar o andamento das outras galeras. Corria-se a uma velocidade incrível e tinha-se a impressão de que os eixos das rodas estavam prestes a estalar. A massa lubrificante derretia-se e cheirava a queimado.

Os índios, mais ligeiros e sem o impedimento dos carroções, aproximavam-se rapidamente. Bardon compreendeu que seriam alcançados antes de percorrerem uma milha.

— Fogo! — gritou.

E ao mesmo tempo disparou. Um cavaleiro que se metera no seu ponto de mira caiu ao solo e o seu cadáver foi espezinhado pelos que o seguiam.

Da parte de trás dos carros partiu uma verdadeira catarata de chumbo. O juiz Benton, com uma carabina de repetição nas mãos, disparava quase sem cessar. E cada um dos seus tiros significava um cavaleiro a menos. Em breve as balas cruzaram o ar, em direção à retaguarda da caravana.

Sobre o ruído das rodas e do galopar dos animais, ouvia-se o silvar das balas que se cravavam na madeira ou atravessavam e rasgavam a lona ressequida pelo sol.

— Outra carabina! — rugiu Bardon.

Cíntia obedeceu maquinalmente e pegou na que o vaqueiro acabara de pousar, que carregou de novo. Patrick, segurando com uma das mãos as rédeas, disparava com a outra. Catalina Ilivitch, pregada à boleia, observava o marido. Ivan, suando e de sorriso nos lábios, disparava como um louco. A seu lado estava a filha, que carregava as carabinas com a mesma facilidade com que seu pai as descarregava.

A corrida em busca do deserto prosseguia. A paisagem, já mudará por completo e faltavam apenas duas ou três milhas para atingir as areias. Era a esperança que os sustinha.

Os índios aproximavam-se cada vez mais. Estavam a menos de vinte cinco jardas. Distinguiam-se perfeitamente e já se lhes notavam os rostos pintalgados.

De repente, um grito partiu de um dos carros. O velho Gregory ergueu-se como que impulsionado por um raio e os seus dedos agarraram-se a um ponto imaginário que não encontrou. Um projétil penetrara-lhe pelas costas. O sangue começou a sair aos borbotões. Procurou manter-se em pé, mas não o conseguiu. Caiu ao solo e as rodas da sua própria galera passaram-lhe por cima do corpo, destroçando-o. Os animais, ao sentirem o obstáculo, inclinaram-se para a direita, sobre o carro de Stefan e de Mary, que se encontrava sentada na boleia.

Foram segundos terríveis, durante os quais parece que os carroções acabariam por chocar e por converterem-se num monte de destroços.

Mary esticou as rédeas e puxou os animais para a direita, fugindo do que lhe vinha em cima e aproximando-se do carro de Claudine. Contudo, o choque não se produziu. Stuart, um dos filhos de Gregory, chegou no último instante, a tempo de suster os animais e de evitar a colisão.

Os cavalos relincharam de dor e cravaram as patas no solo. Os outros seis caros afastaram-se como demónios, envoltos numa nuvem de pó.

Mary tentou voltar os seus cavalos para a esquerda, mas não o conseguiu. As suas mãos, não acostumadas ao esforço, não os dominaram. Foi naquele momento que uma sombra saltou do carro da francesa e se atirou sobre os animais, caindo montada no primeiro deles.

— Bardon!

— Segura bem nas rédeas! — gritou aquele, que fora quem saltara.

Decorreram momentos de perigo, dominados pelo troar das armas. O carro ainda oscilou uma vez mais, mas os cavalos não puderam seguir o seu instinto e viram-se obrigados a desviar-se para a esquerda e, por conseguinte, a afastar-se da galera da francesa.

Por um segundo, Bardon olhou para trás. O espetáculo que lhe surgiu diante dos olhos era horrível. O carro de Gregory estava rodeado de índios e lutava-se corpo-a-corpo.

Ficar para trás significaria a morte. Para os Gregory chegara a hora final. Era impossível fazer qualquer coisa para evitá-la. Com o horror pintado no rosto, os sobreviventes prosseguiram na sua corrida alucinante.

Ao longe, a menos de duas milhas, divisava-se a orla amarelada do princípio do deserto. Ali apenas se podia esperar terra ressequida, sol e sede. Mas não havia índios sedentos de sangue e de morte.

O fogo continuava com a mesma intensidade e os projéteis cruzavam o ar em busca dos corpos contrários. Eram pedaços de chumbo portadores da morte.

— Para a frente! — rugia Patrick, disparando contra um índio que lograra encarrapitar-se na parte traseira da sua galera.

Os animais continuavam a correr, sentindo as chicotadas sobre o lombo, que lhes provocavam golpes dos quais brotava o sangue. Era uma luta selvagem, contra os índios e contra a distância, a que tinham de vencer os colonizadores.

Os índios saltavam das suas montadas para os carroções, mas as pancadas e o chumbo obrigavam-nos a desistir dos seus propósitos.

A galera de Ivan foi assaltada quatro vezes. E as quatro significaram a morte dos que a isso se aventuraram. Uma morte instantânea, brutal, provocada pela afiada lâmina de uma navalha que se cravava na garganta dos assaltantes. Contudo, o russo não pôde evitar que um tiro, uma bala perdida, se lhe alojasse na cabeça. Caiu para dentro do carroção, pesadamente, como um fardo. Catalina Ilivitch soltou um grito de horror, mas não largou as rédeas.

Cada galera vivia a sua luta, mas sempre seguindo para diante, procurando transpor as últimas centenas de metros. A orla de areia ressequida aproximava-se cada vez mais. Divisava-se já o deserto infinito. E as estacas que indicavam o caminho que se devia seguir.

Patrick parecia um colosso a açoitar sem piedade os cavalos. De repente, aconteceu uma coisa estranha. Um dos carros desviou-se da rota e afastou-se algumas jardas. Patrick soltou uma maldição.

— Para a frente! — rugiu.

Porém, a sua ordem não foi obedecida por aquele carroção, que continuava a perder velocidade. Foi então que notou ser o de Claudine. A sua reação foi instantânea, impensada. Puxou com violência terrível as rédeas e os animais relincharam de dor, mas diminuíram o andamento até quase pararem. O resto das galeras passou a seu lado e afastou-se.

Então, com outro puxão de rédeas, atirou os animais para o carro da francesa, que perdia velocidade. Chegou no momento exato em que um índio saltava do seu cavalo e se atirava à boleia. O corpo de Patrick pareceu voar pelo ar, até cai sobre o índio. O choque foi terrível e os dois lutadores estiveram a ponto de perder o equilíbrio.

Patrick teve pouca dificuldade em desfazer-se do seu inimigo. Projetou o punho como uma catapulta contra o rosto do índio, o qual voou por cima dos cavalos. O escocês voltou a pegar nas rédeas e fustigou os animais, ao mesmo tempo que disparava contra um atacante que se aproximava.

No momento em que o carro retomou a marcha, o índio caiu entre o rodado. Patrick, inclinado sobre os cavalos, rugia palavras ininteligíveis, disposto a salvar aquela galera. Importava--lhe muito pouco ter perdido a sua; acima de tudo queria salvar Claudine.

Olhou para dentro do carro e viu a francesa ajoelhada junto do corpo da filha. Compreendeu o que se passara e mordeu os lábios. Deixou de olhar a cena e continuou a fustigar os animais, disposto a alcançar as outras quatro galeras, que naquele momento pisavam os primeiros metros de areia. As balas silvavam à sua volta, atravessando a lona e o ar e incrustando-se na madeira. Porém, o escocês não se apercebia do que se passava.

— Depressa, depressa, cavalinhos! — gritava.

Faltavam poucas jardas. Menos de cem. Continuou a açoitar os animais como se tivesse enlouquecido. Até si, chegavam continuamente os tiros e os gritos de guerra.

— Mais, mais, mais! — berrou.

Cinquenta jardas. Quarenta. Trinta. Vinte... E de súbito a areia.

Um grito de triunfo escapou-lhe dos lábios.

— O deserto! — gritou, sem deixar de continuar a fustigar os cavalos, seguindo o caminho tomado pelo resto da caravana.

Meia milha depois, parou. O resto dos carroções estava à sua espera. Olhou para trás. Exatamente no limite, encontravam-se os índios. Quietos, parados, sem se atreverem entrar no inferno da sede e do sol. Mais longe, via-se o carro de Patrick, abandonado e rodeado pelos índios. E muito mais ao longe ainda, erguia-se o fumo que brotava da galera incendiada de Gregory.

Todos permaneciam num silêncio, que, depois do estrépito da luta, era tão brutal como a própria luta. Patrick entrou no carro. Claudine olhou-o.

— Morta — murmurou.

Entre os braços tinha o corpo de Cíntia. Patrick ajoelhou-se junto dela e pegou nas mãos da adolescente. Uma delas estava fechada e apertava qualquer coisa com força. O escocês abriu-lhe os dedos com um botão dourado caiu ao chão. Até ao último momento sonhara com o seu amor, com o amor deixado no Este.

Patrick ergueu Cíntia nos braços e saiu do carro. Em silêncio, depositou o cadáver no solo, à sombra. Segundos depois, Bardon colocava junto do corpo da criança o cadáver de Ivan Ilivitch.

— Queria ser livre — murmurou — e agora será escravo da morte.

— E os outros.

— Estão vivos.

Claudine ajoelhou-se junto da filha.

— Cíntia... — murmurou como um lamento.

Patrick colocou a sua grande mão no ombro da francesa.

— Claudine... — começou a dizer. — A vida trata--nos às vezes duramente... Virão tempos melhores; tem confiança...

Viviam-se momentos de dor. Catalina Ilivitch e sua filha Susi permaneciam abraçadas, a chorar.

O sol começava a descer no horizonte, num clarão dos seus raios avermelhados. O deserto tomava uma cor estranhamente bela. A areia queimada brilhava como ouro.

Porém, aqueles homens e mulheres não reparavam no que os rodeava. Ante os seus olhos tinham a realidade candente da tragédia.

Num dia, a caravana perdera uma família inteira, Ivan Ilivitch, o homem que não queria ser escravo, e Cíntia, a adolescente que amara sem ser correspondida.

Dois carroções tinham ficado para trás. Patrick McCrowe perdera todos os bens que lhe restavam. Mas no seu íntimo continuava a viver o desejo de chegar cada vez mais longe. Bardon resolveu-se a tomar uma decisão.

— É preciso enterrar os mortos.

— E esquecê-los, para que a sua lembrança não nos escravize— acrescentou o juiz Benton. — Eu tenho pás e picaretas. Vai buscá-las, Graham.

O interpelado encontrava-se junto de Susi, a filha de Ivan. Olhou para o pai, e «Cospe-Chumbo» Benton compreendeu que tinha de ir ele buscar as ferramentas.

Minutos depois, os irmãos Huston abriam as covas. A areia oferecia muito pouca resistência e a cavidade aumentava rapidamente. Quando já estavam enterrados até aos joelhos, o juiz Benton e Bardon renderam-nos e acabaram de cavar as sepulturas.

No momento em que o sol chegava ao limite do horizonte, os corpos desceram à terra. Claudine deixou cair um botão dourado na campa da filha. Catalina Ilivitch depositou quatro navalhas envolvidas, num lenço de cabeça.

— Senhor — começou a dizer o juiz Benton. — Eles, como nós, procuravam a paz e o esquecimento do seu passado. A morte interpôs-se no seu caminho e não puderam realizar o seu sonho. Acolhe-os no Teu seio e dá-lhes a paz que desejavam. Ajuda-nos, Senhor, para que juntos possamos cumprir os desejos que eles não viram realizados. Senhor, estamos nas Tuas mãos. Faça-se a Tua vontade.

Um silêncio impressionante ficou suspenso no ar quando Benton terminou as suas palavras. O ruído que rompeu aquele silêncio foi o da areia que caía sobre os cadáveres.

Minutos mais tarde, a caravana pôs-se de novo em marcha. Patrick McCrowe montou um dos cavalos de reserva, salvos milagrosamente.

— Em marcha!... Pararemos daqui a um par de milhas.

Os carroções começaram a rodar. A partir da entrada no deserto, perdiam o sentido de orientação e limitavam-se a seguir as estacas que, cravadas de cem em cem milhas, assinalavam o caminho.

Quando a galera de Claudine passou diante de Patrick, a francesa olhou-o suplicante, ao mesmo tempo que as mãos lhe estendiam as rédeas.

— Conduz tu... por favor — murmurou. — Perdeste o teu carro por minha culpa...

— Tinha de ser assim. Tu merecia-lo — replicou-lhe o escocês, sorrindo e subindo para a baleia.

Claudine afastou-se e deu-lhe lugar. Depois, apoiou-se no braço de Patrick. Segundos mais tarde, com a cabeça reclinada no ombro do escocês, as lágrimas, suaves e lentas, escorriam-lhe pelas faces.

 

 

 

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