terça-feira, 11 de setembro de 2018

CLF026.07 A arte de dominar uma manada tresmalhada

Um esplêndido landau verde e ouro puxado por duas velozes e garbosas pilecas ricamente arreadas, parou próximo do passeio pelo qual sob as frescas arcadas, passeava Andrés Montalvo distraidamente.
Ao dar conta da proximidade do veículo, tirou o chapéu ao mesmo tempo que se inclinava cerimonioso, mas o coche deteve-se então a seu lado.
— Não parece ter pressa de chegar a parte alguma, meu rapaz— disse o cavalheiro, ancião, que ocupava a carruagem —. Quer fazer companhia a um velho rabugento?
— Com todo o prazer, senhor Galvez.
—Pois então faça favor de subir.
Andrés trepou agilmente, deixando-se cair no assento fronteiro ao ocupado pelo aristocrata. O velho estava só, e fumava puxando o fumo de um longo cachimbo de cerâmica branca. Tinha o seu amplo chapéu firmemente enfiado na cabeça, e sob ele aparecia um rosto tão curtido como o de um índio, enquanto que os cabelos tinham reflexos prateados. Os olhos mantinham toda a sua vivacidade, e conservava ainda uma boa figura, magra e flexível.
— Há muito tempo que queria falar consigo, senhor, mas ultimamente não vai muito lá por casa.
— Tenho agora andado muito ocupado, senhor.
— Sim, também ouvi alguma coisa a esse respeito. Quem é esse maldito inglês de quem parece ter-se feito tão amigo?
—Daniel Winter. Quinto filho de um Par do Reino Unido.
—E que diabo veio ele fazer para aqui?
— Parece que por ter chegado «atrasado» tentara fazê-lo padre — riu Andrés, alegremente — . Por isso preferiu vir tentar fortuna para aqui.
— Fala-se muito dele agora.
— Conseguiu trazer uma manada de reses do Sul atravessando o deserto e lutando com os índios, e esse malditos chacais dos mineiros. Passou grandes dificuldades para conservar aquela manada, mas conseguiu vendê-la aos acampamentos mineiros com um lucro extraordinário. Nesta altura, se conseguir passar outra vez, trará mais de um milhar de reses.
— Então, pensa dedicar-se à criação de gado.
—E à agricultura também. Se conseguir realiza todos os seus projetos, não tardará em converter-se num dos fazendeiros mais ricos da região.
—Foi o senhor quem o apresentou à minha filha, não é verdade?
— Sim. Fui eu — assentiu Andrés, com decisão. — Pois deu origem a grandes quebra-cabeças.
—Lamento-o, senhor.
— Que conceito faz desse rapaz?
— É meu amigo — respondeu o jovem simplesmente.
— Segundo me disseram, o seu pai também o estima.
O jovem riu alegremente.
— Creio que é seu favorito. Sempre mo aponta como exemplo, e sente-se muito satisfeito porque por fim acabou por me fazer trabalhar a mim também.
—Matou um homem em São Francisco e feriu por luas vezes esse rapaz, Juan González.
— O homem que ele matou era um mineiro brutal, agrediu-o sem motivo justificado disparando um tiro quase à queima-roupa, embora felizmente lhe tivesse acertado num embrulho que ele transportava debaixo do braço, e ia a disparar novamente quando o meu amigo o matou. Quanto a Juan... Bom, isso é mais difícil de explicar. Mas podia tê-lo morto das duas vezes, e não o fez. Pelo que receio que no seu regresso tenha que lhe dar outra estocada.
A ligeira carruagem deteve-se naquele momento em frente da casa dos Gálvez em Monterrey.
— Entre. Vamos tomar qualquer coisa.
Andrés seguiu o ancião até ao interior da casa, onde um criado se encarregou dos chapéus.
— Eh, Virgi! — gritou Matias Gálvez de pé no meio a escada. — Venha, não demorará muito tempo a descer — acrescentou conduzindo-o para a sala de visitas—. Que é que vamos tomar? Conhaque, aguardente ou vinho?
— Conhaque. Talvez preferisse essa bebida dos ingleses: o whisky».
—Por nada desta vida!
— Alegra-me que não seja também um desses imbecis que bebam às escondidas para se acostumarem a essa bebida pobre e sensaborona, guiados apenas por um estúpido espírito de imitação.
Virgínia apareceu naquele momento, interrompendo a dissertação, e Montalvo pôs-se de pé inclinando-se cortesmente.
—Andrés! — disse a rapariga —. Oh, que alegria!
Mas apesar do seu contentamento ser sincero por vê-lo, o rapaz notou que havia nela uma mudança profunda. Talvez estivesse ainda mais formosa, mas no fundo das suas negras pupilas havia uma melancolia sem limites, e um anseio que pela sua contida intensidade lhe parecia mais apropriado classificar de angústia.
—Estávamos a falar acerca desse rapaz que conheceste na festa dos Penalva — disse o fazendeiro de modo indiferente, muito ocupado ao que parecia e verter o opalino licor nos grandes copos de conhaque —. Parece que se encaminha para fazer nome aqui. Embora seja um maldito inglês, quase pode dizer-se que sinto desejo de o conhecer. Que te parece se pedisse a Andrés que o trouxesse aqui um dia?
—Oh! Pai...!
— Achas que seria despropositado? — perguntou maliciosamente o matreiro velho.
—Pai, peça, por favor!
—Pois bem, Andrés, rogo-lhe que me faça esse favor.
O jovem fez uma ligeira inclinação, tão assombrado como nunca estivera em toda a sua vida.
* * *
Detendo o seu corpulento cavalo negro no cimo de uma pequena colina de suaves ladeiras, Dan contemplou a grande manada que abandonava naquele momento as últimas faldas dos montes Tehachapi. Uma vez mais tinha triunfado, e agora já as suas mil e quinhentas cabeças desciam suavemente e sem dificuldades até ao vale de São Joaquim, para o seu rancho.
Esta ideia fê-lo sorrir de contentamento e, legítimo orgulho, embora no momento não fossem mais do que umas extensas terras incultas, alguns amplíssimos currais e um tosco barracão que teria de compartilhar com os seus quinze homens. Mas nesta ocasião iria ter tempo e dinheiro para começar a grande obra.
Até à primavera seguinte não pensava realizar nenhuma outra condução, e durante o inverno começaria a construir a casa e a cultivar a terra. O aspeto do jovem, depois dos duros meses transcorridos, era magnífico. Sob o amplo e inclinado chapéu caíam os seus longos e louros cabelos. Os seus claros olhos davam a impressão de sorrir sob a pele bronzeada, e parecia ser a imagem viva da força e da vitalidade. A vida ao ar livre, as dificuldades sem conto, os riscos e o trabalho duro tinham feito dele um homem em toda a aceção da palavra. E enquanto sonhava de olhos semicerrados, contemplando o imenso vale que se desdobrava perante ele, estendendo-se por centenas de milhas, onde se concentravam todas as suas esperanças de um próximo futuro venturoso, sobressaltou-o o fragoroso estampido de um cerrado tiroteio, sobre cujo som cavo sobressaí a nota aguda de estridente vozearia.
Voltando-se vivamente verificou que de uma garganta próxima começava a surgir uma nuvem de pó e dela uma nutrida coluna de negros ginetes que no desenfreado galope das suas montadas se lançava sobre a enorme massa do gado em movimento.
Com uma tremenda imprecação, Dan esticou rédeas fazendo girar o novo corcel que montava, num instante lançou-se rápido como o vento ladeira abaixo, direito aos assaltantes. O corpo erguido, as longas pernas tensas apoiando-se firmemente sobre os estribos para libertar mais possível do seu peso o cavalo, exigiu a máxima velocidade do nobre animal, que estendendo o se grande e poderoso corpo parecia mais voar do que correr, enquanto descia como um alude a suave pendente da colina.
O agudo olhar do jovem em breve descobriu que inimigo, ao encontro do qual se lançara como um raio não era suficientemente numeroso para constituir um sério perigo, pois apenas somava uma dúzia de cavaleiros, e isto deixou-o tão surpreendido como inquieto, pois era absolutamente estranho que naquelas condições se atrevessem a um ataque aberto. Surgiria um novo grupo de alguma outra parte, no momento menos adequado? Depois da confusão dos primeiros momentos, os belicosos rapazes que compunham a sua aguerrida equipa, acudiram de todos os lados para o combate tomando-o como vértice, para o qual convergiam a fim de se reunirem e dar batalha.
No entanto, em breve se viu que a intenção dos assaltantes não era a de lhes fazer frente. Tinham sabido escolher, lançando-se contra o flanco mais desguarnecido da manada e, de repente, uma tremenda explosão sacudiu o solo, e imediatamente outras se seguiram de igual ou maior potência. Terrível, enorme, prolongado, se ergueu o assustado mugido das reses e, de repente, cada vez mais intenso, o surdo estrondo produzido por milhares de patas galopando tresloucadamente pela terra fora, que parecia tremer. Densa poeirada se ergueu como uma espessa neblina e depressa começaram a esfumar-se os negros cultos dos homens e animais, tragados pela mesma poeirenta nuvem.
—Malditos mineiros! — praguejou então Winter compreendendo tudo.
Com efeito, estava bem claro que se não tratava de roubar a manada, mas sim de tresmalhá-la com o fim de ir caçando depois, calmamente, as rezes perdidas, Não eram ladrões de gado, tratava-se de mais uma tropelia daqueles indesejáveis que infestavam o pais, destruindo tudo quanto encontravam na sua passagem, semeando a desolação e a ruína sem outro fim que não fosse o proveito próprio.
Efetivamente, logo que lançaram os cartuchos de dinamite, aqueles ginetes reagruparam-se dirigindo-se para o mesmo local por onde tinham chegado.
—Diego! — chamou o jovem a toda a força dos seus pulmões, sem deixar de galopar velozmente atrás dos espoliadores.
Um dos ginetes mais próximos aproximou-se então, velozmente, e mesmo naquele momento Dan não pôde deixar de admirar a insuperável mestria daquele cavaleiros que eram, provavelmente, os melhores dos mundo.
— Que aconteceu, patrão? — gritou o centauro.
— Que os homens voltem para trás e empurrem a, manada para o vale, procurando agrupá-la.
—Está bem, patrão. Quantos?
—Todos!
— Mas então esses malditos chacais...!
—A manada, Diego! Isso é o mais importante. Que se não perca nem uma única rês!
Aos gritos do capataz, os demais foram ficando para trás, até acabarem por se reagrupar. Entretanto, os assaltantes estavam prestes a desaparecer pela garganta de onde tinham saído, e nessa altura Dan deteve o seu cavalo, que levantou as patas dianteiras fazendo piafé, para se aquietar e ficar imóvel a uma ordem do seu amo, o qual puxou pela espingarda «Enfields», fazendo pontaria cuidadosamente.
Ouviu-se uma detonação e através da branca nuvem de fumo que se desvanecia rapidamente, Winter pôde ver como um dos fugitivos se desequilibrava sobre a cela e um momento depois caía pesadamente no solo onde permaneceu imóvel, qual boneco desarticulado, evidentemente morto.
Antes que o jovem pudesse voltar a carregar a arma e fazer de novo pontaria, já os restantes cavaleiro tinham desaparecido, pelo que, esporeando o animal se lançou para o ponto da escarpa por onde a subida era relativamente fácil, e quando o progresso ascendente do animal se foi tornando demasiado lento, desmontou e com a espingarda empunhada correu ladeira até atingir o cimo. Então pôde ver o grupo dos perseguidores, tomando posições num alargamento da curta e estreita garganta.
Ao que parecia os pesquisadores de ouro esperavam ser perseguidos e tinham armado a ratoeira. Com efeito, o estreito desfiladeiro tinha-se convertido numa armadilha mortal para quantos entrassem nela, e só graças às precauções de Winter para com as reses se tinha evitado o desastre.
Não tendo sido advertida a sua aparição no alto da escarpa, Dan pôde então abater um daqueles indivíduos, pois não estavam a mais de quatrocentas jardas e a sua «Enfields» era uma arma certeira, de cano comprido e grande alcance, mas embora fervesse de justa cólera conservou o bom-senso necessário para compreender que o mais acertado era ganhar tempo.
Do ponto onde se encontrava dominava os mineiros e também podia ver tudo o que se estava passando do outro lado, onde os seus homens se afanavam por conter a manada tresmalhada e agrupar novamente o gado.
Cortada pelo meio, a grande manada tinha-se dividido em várias pontas, a maioria das quais seguia, em linhas gerais, a mesma direção que levava antes das explosões, mas uma das mais numerosas galopava loucamente para o lado oposto — e precisamente junto às primeiras reses que formavam a parte afilada da enorme ponta de flecha produzida pelo gado em desordenada correria — reconheceu o formoso baio que montava o pequeno e destemido Diego, seu capataz.
Sentindo profunda admiração por aquele pequeno homem de grande coração, viu-o situar-se junto dos tresmalhados animais, e brancas nuvens de pó mostraram-lhe que o excecional ginete estava disparando o seu revólver, embora as detonações fossem afogadas pelo estrondoso fragor do tropel.
O espetáculo, que presenciava pela primeira vez na sua vida, fascinava-o pela sua selvagem grandeza. Desprezando o perigo, aquele pequeno vaqueiro, cosia-se com os touros, disparando as armas em frente dos olhos dos animais, e por forma lenta mas contínua foi-os desviando para os fazer dar a volta.
Uma marrada das hasteadas cabeças, um simples tropeço do cavalo, e a morte viria instantaneamente para ambos sob os milhares de patas que os converteriam numa massa informe.
A cena era tão bela como emocionante, mas Dan não pôde dedicar-lhe mais do que um ligeiro momento de atenção. Tinha de vigiar os responsáveis daquilo e retê-los ali para que não pudessem causar ma mal algum.
Os emboscados começaram a dar sinais de inquietação em vista de que não chegava o assalto que tinham esperado, e mais de um se pôs a descoberto olhando para a entrada do desfiladeiro e discutindo com os que continuavam postados de atalaia. Um a um foram saindo, e quando estavam todos à vista, Dan pôde contar até dez. Pareciam deliberar sobre o caminho a seguir em vista dos acontecimentos não se terem desenrolado da forma prevista.
Desde os seis meses transcorridos a partir do dia em que matara um homem, nas ruas de São Francisco, Dan tinha lutado frequentemente contra os índios, bandoleiros e pesquisadores de ouro, pelo que já lhe não causava nenhum horror o derramamento de sangue humano, e agora apontava a sua espingarda com firmeza contra aqueles criminosos que, a sair-lhe bem as coisas como tinham planeado, tê-los-iam exterminado, a ele e aos seus homens, sem a menor relutância.
Sabendo que o esperar um pouco mais não lhe traria qualquer vantagem, pois de um momento para o outro o grupo desfazer-se-ia, uma vez postos de acordo os seus componentes, quaisquer que fossem os seus planos, Dan apontou cuidadosamente para o mais nutrido deles, e quando apertou o gatilho o homem contorceu-se grotescamente antes de cair no solo onde se rebolou durante uns momentos, para acabar por ficar imóvel, muito encolhido.
Por instantes a surpresa paralisou o resto do bando, mas no mesmo momento desfez-se o grupo como um bando assustado de perdizes, procurando refúgio nos mais próximos acidentes do terreno.
Dan disparou ainda atirando sobre um sujeito, que, totalmente desmoralizado, procurava proteger-se atrás de uma rocha ridiculamente pequena, mas fê-lo com uma certa precipitação, falhando, e o homem fugiu dando gritos para se atirar por entre uns espinhosos matagais atrás dos quais desapareceu.
Winter carregou de novo a arma e esperou então pacientemente. Não tinha pressa alguma. Pelo contrário, convinha-lhe deixar passar o tempo até que os seus homens e o gado se tivessem afastado o suficiente, certo de que na planície aberta não voltariam a ser atacados por uma força tão reduzida.
Um rápido relancear de olhos pelo vale mostrou--lhe que Diego e alguns dos seus companheiros tinham conseguido fazer dar a volta à manada, e não tardariam a voltar por debaixo do rochedo, enquanto que as outras pontas se tinham afastado muito e estavam reagrupando-se rapidamente. Se conseguisse conter os malditos mineiros, a escaramuça passaria sem outras consequências além do susto.
Os pesquisadores de ouro pareciam temer que os rochedos circundantes estivessem infestados de «cow-boys», e não se mexiam com medo de serem crivados pelas balas. Para manter aquela impressão, Dan arrastou-se rapidamente, procurando não ser visto, até um dos matagais que cresciam no rebordo do despenhadeiro umas quinze jardas à sua direita, e assomando-se com precaução procurou algo contra que atirar, e não o encontrando, fez pontaria para os silvados e que vira desaparecer o atemorizado mineiro, atirando um ou dois projéteis naquela direção.
Replicaram imediatamente ao seu fogo, mas, não quiseram expor-se demasiado, ou não dispunha de armas de alcance suficiente, pois nenhuma b chegou a incomodá-lo. Repetiu a operação várias vezes sem que voltasse a oferecer-se-lhe oportunidade de tentar o tiro contra algum ser animado, e ao cabo de meia-hora pó abandonar tranquilamente o seu posto, descer em busca do cavalo e, montando, afastar-se em direção à manada.
Depressa alcançou o rebanho conduzido por Diego, e ajudou a conduzi-lo até onde os estavam esperando o resto do gado, já apascentado.
Naquela mesma tarde acompanharam no extremo sul do imenso e fértil vale da Califórnia, de centenas de milhas de extensão, e a partir dai não tiveram já sérias dificuldades. Vinte dias mais tarde, a grande manada avistava as toscas instalações da «Esperança», nome com que Dan tinha batizado aquilo que iria ser a sua fazenda.
Pela pradaria aproximava-se um ginete a todo o galope, montando num formoso baio de cauda e crinas prateadas, e muito antes de estar suficientemente próximo para reconhecer as suas feições, Dan sabia já que era Andrés Montalvo.
 

Sem comentários:

Enviar um comentário