Dan avançou por entre a viciada atmosfera que o fumo enrarecia e aproximando-se do mostrador pediu um «whisky». Depois voltou-se de costas e com os cotovelos apoiados sobre a borda do balcão percorreu com o olhar todo o recinto. Um dos muitos «bars» abertos àquela hora em «Barbary Coast».
O local não era mais do que um antro coberto, sem pavimento sequer, mas estava animadíssimo e a concorrência não parecia importar-se, absolutamente nada, pisar aquela terra nua calcada pelos pés.
Riam, jogavam, gritavam e bebiam, do mesmo modo como se, em lugar de estarem numa barraca suja e desmazelada, se encontrassem no mais confortável e luxuoso dos casinos.
Todavia, Winter, conhecendo a impaciência com que o estava esperando Andrés Montalvão, não perdeu mais tempo do que o indispensável, e sem se atrever a beber o «whisky» que abandonou sobre o balcão, dirigiu-se, cambaleando, para a mesa onde se jogava às cartas e tirou à sorte algumas mantendo dificilmente o equilíbrio numa esplêndida imitação de bebedeira.
— Olhem para o elegante! — chacoteou alguém —. Porque não vais curti-la?
Aquela frase chamou a atenção do assistente sobre, o falso borracho. Não porque tal fauna fosse estranha no lugar, mas por se tratar de um cavalheiro, o que era, sem dúvida bastante descabido.
— Virgem Santíssima! — Berrou um alentado marinheiro que devia ser meio canadiano — Esse chapéu e esse casaco tão lindos era exatamente o que eu precisava. Que lindo que eu havia de ficar! Se os vestisse tenho a certeza de que a minha querida Peggy não se me havia de fazer rogada.
Winter viu chegada a oportunidade e deteve-se entre a troça de quantos o rodeavam, encarando marinheiro, a quem olhou de muito próximo e com os olhos ligeiramente semicerrados, como o deveria fazer qualquer ébrio.
—Jogo-os contra as tuas calças — tartamudeou com voz pastosa.
Aquela estrambólica proposta, totalmente descabida e inesperada, produziu um indescritível pandemónio em toda a taberna.
—Que me conservem em salmoura, se isto não ultrapassa tudo quanto tenho visto —rugiu um gigantesco e louro irlandês, todo músculos. assombrado franco-canadiano—. Vamos lá ver se tem as calças no seu lugar. Vamos lá ver se tens as calças no seu lugar.
— Então, este lindo inglesinho deixou-te mudo. Toda a taberna pareceu gritar em uníssono de forja, entre variadíssimos comentários, a maioria dos quais eram indiscritíveis.
Durante alguns minutos foi totalmente impossível ouvir-se o que quer que fosse, tal era o alvoroço; mas pouco a pouco foi-se apaziguando a gritaria até voltar tudo à normalidade.
—Vamos lá ver, francesinho, jogas as calças ou não? — rugiu o irlandês, impondo silêncio.
—Quem é que falou em medo? —cochichou alguém, provocando novos risos.
Depois dos primeiros instantes de assombro), o marinheiro uniu o seu riso ao dos amigos. Tinha pela frente um borracho «chalado» e julgou que seria fácil enganá-lo. Assim, nem por um instante o preocupou a possibilidade de vir realmente a perder as calças.
— Está bem — vociferou de modo a fazer-se ouvir por cima de toda aquela vozearia. — Aceito o desafio.
Aquela declaração provocou uma nova revoada de gargalhadas. Muito sério e ligeiramente cambaleante, Dan tirou o chapéu e o casaco, pousando-os cuidadosamente nas costas de uma cadeira. Os seus movimentos calaram a ruidosa assistência, que não queria perder um único pormenor da original aposta.
— Vamos, despe as calças — disse então o rapaz.
A perspetiva de que o mastodôntico semi-canadiano fosse ficar em trajos menores para depositar também a peça de vestuário, era o cúmulo para aquelas gentes alegres e ruidosas. Gargalhadas, assobios e toda a espécie de escandalosas manifestações e de algazarra, pareciam fazer ruir o desmantelado edifício.
— Vamos, marinheirozinho, vamos lá ver essas ceroulas.
— Olhem! Não veem que ele é muito envergonhado.
—É que usa lacinho cor-de-rosa nas cuecas.
Confuso e espicaçado daquele modo, o homem não se deu por achado. Despindo as calças ergueu-as bem alto e deu dois ou três saltos esperneando no ar com as peludas e musculosas pernas nuas.
As pessoas contorciam-se e levavam as mãos à barriga rindo a bandeiras despregadas. Durante um bom bocado foi completamente impossível ouvir-se qualquer coisa no interior do tugúrio que parecia ter-se convertido num verdadeiro manicómio. O próprio Dan tinha de fazer um esforço sobre-humano, para não juntar as suas gargalhadas à hilaridade geral. Todavia, de repente, começou a restabelecer-se novamente a ordem, pois a assistência queria a todo transe conhecer o desenlace.
— Vamos, rapazes, vamos lá a calar — vociferou o gigantesco irlandês, que parecia ter-se arrogado o direito de juiz na questão.
— A que jogamos? — perguntou o franco-canadiano quando o silêncio ficou um tanto restabelecido.
—Ora! A carta mais alta, que achas?
— Como quiseres —chacoteou o marinheiro fazendo uma reverência sumamente ridícula, tendo em conta que se encontrava em trajos menores.
Entre risadas tão estridentes como insolentes comentários, um criado trouxe rapidamente o baralho. O irlandês pegou nele, baralhou-o habilmente antes de o pousar sobre a mesa mais próxima, à volta da qual se agrupou imediatamente quanta gente enchia o recinto, dispondo-se em várias filas, pois não poucos tiveram de se encarrapitar sobre mesas e cadeiras para poderem ver.
— Será a três mãos e ganhará o que conseguir tirar a carta mais alta. De acordo? —propôs o gigantesco irlandês dirigindo-se aos dois adversários.
Ambos se mostraram de acordo.
—Está bem, vamos a isso, francesinho. Tu cortas primeiro.
— Porquê?
— Temos de ser corteses para com os forasteiros.
— Ah, bem. Se é por isso...
O franco-canadiano pegou tranquilamente num monte de cartas, e ao voltá-las mostrou um valete de paus. Todos o felicitaram, porque era de facto uma boa carta. Com efeito, Winter ao cortar, apenas conseguiu um seis de ouros.
— Animo, francesinho, vais transformar-te num elegante cavalheiro.
— O que é pena é que tenhas a cabeça muito grande para esse chapéu.
— Com o chapéu e o casaco vestido até vais parecer o governador lá da minha terra.
O irlandês baralhou outra vez, por entre todos aqueles jocosos comentários, e um momento depois estava novamente o baralho em ordem.
— Vamos, inglesinho, é a tua vez agora.
Dan cortou, e de novo tirou ouros. Um quatro, desta vez.
— Agora és tu! — indicou outro marinheiro.
— Ai que a Peggy vai-se derreter toda quando te vir.
—É vaidosa?
—Se é!
— Pois então podes estar certo de que não te resistirá. Com esse chapéu vais parecer um torrão de açúcar pilé.
Uma gargalhada geral corou aquela graciosa saída. O marinheiro cortou, e à vista de todos apareceu o três de espadas que igualava a partida. Baralhadas de novo as cartas o semi-canadiano voltou a sua carta sem mais demora, e com uma exclamação de alegria ergueu-a bem alto para que toda a gente a visse. Era a dama de copas!
Dan tirou então a carta que ficara em cima do monte, atirando-a sobre a mesa. Voltou a ser ouros. O rei!
No mesmo instante se acabaram as jocosas exclamações que tinha produzido a sorte do marinheiro, e um silêncio de espectativa se seguiu ao bulício do momento anterior. A ninguém restava dúvidas que tinha acabado a brincadeira. Winter ergueu a vista da carta, olhando fixamente o seu antagonista.
— Agora — disse este—, passa-me as suas calças.
— As minhas calças! Havia de ter graça, tente apanhá-las e racho-o em dois!
— Muito bem, irei eu buscá-las — afirmou o jovem resolutamente —. E nenhum malnascido como tu me impedirá disso.
— Malnascido eu! — rugiu o franco-canadiano enfurecido —. Ora, eu sou mas é filho de um barracuda e quando mordo arranco logo um pedaço!
—Pois aproxima-te e verás com que facilidade te parto os dente.
—Vou derrubar-te como quem derruba um cepo e ainda por cima te arrancarei orelhas!
Excessivamente confiado na sua própria força e corpulência, e julgando presa fácil aquele jovem elegante que parecia estar bêbedo como um casco, atirou-se sobre ele disposto a cumprir a sua ameaça sem mais demora. O homem não sabia que aquele esbelto rapaz, totalmente sóbrio, tinha sido durante vários anos o melhor peso médio da Universidade de Oxford.
Dan aproveitou bem o descuido do alentado marinheiro, detendo-o com um curto e tremendo direta na base do externo, para lhe dar seguidamente um seco murro atrás das orelhas, que o derrubou fulminantemente caindo no solo como um boi acutilado.
Winter cambaleou então um pouco como se tivesse perdido o equilíbrio, e como o movimento o levasse até muito próximo donde se encontrava a roupa, apanho-a de caminho e, erguendo em triunfo as calças, saiu antes que o assombroso permitisse à assistência reagir.
— Corre, Dan — ciciou ao californiano — que ao vê-lo tinha assomado de dentro do umbral da porta, desatando a correr em direção à esquina próxima. — Conseguiste? — perguntou Montalvo correndo a seu lado.
Dan passou-lhe as calças em silêncio.
Velozmente meteram pela primeira rua que encontraram, e não se detiveram até terem a certeza de que qualquer perseguidor tinha forçosamente de tê-los perdido naquele intrincado dédalo de torturas vielas por entre as quais se tinham internado com tal fim.
Uma vez a salvo, Andrés vestiu as calças, com um suspiro de alívio, embora estas lhe estivessem imensamente grandes.
— Caramba! Não podias ter escolhido um tipo menos avantajado?
— Puxa-as para cima.
— Mesmo assim estão-me grandes!
Como pôde, lá ajeitou aquela peça de vestuário que o excedia por estar demasiado comprida.
—Como foi que as arranjaste?
Winter deu um jeito ao chapéu para o deixar bem-posto e ajustou o casaco.
—Ganhei-o a jogar à carta mais alta.
—Mas então porque saíste correndo?
— Bom — disse Dan alegremente ao lembrar-se do transe—. Era um tipo grande que nem uma torre não levou muito a bem a brincadeira. Além disso, tinha uns amigos da mesma envergadura.
—E pelos vistos não se mostraram muito complacentes em deixar-te partir com as calças? — riu também o californiano.
—O interessado não, quanto aos outros não me detive a averiguá-lo,
—E como conseguiste convencer o brutamontes
—Deixei-o estendido com um valente murro no ventre, e sai correndo. Já deves ter constatado que tenho boas pernas.
—Na verdade! Embora viesse atrapalhado com toda aquela roupa, mesmo assim era-me difícil acompanhar-te.
— Oxford, percebes? Li menos os compêndios e aprendi lá muitas outras coisas.
— Estou a ver, estou a ver.
—Mas vamo-nos embora daqui, não achas? Na melhor das hipóteses devem andar à nossa procura para recuperar as calças, e se derem connosco o mais provável e que fiquemos os dois sem elas.
Afastaram-se de braço dado, deixando que as suas claras gargalhadas se elevassem na escuridão.
—Vais para minha casa — disse o californiano—. Ainda temos tempo de dormir algumas horas, e depois do pequeno almoço poderei então mostrar-te a cidade, se assim quiseres.
—Está bem. Mas não me leves para «Barbary Coast», entendes-me?
Andrés riu divertido.
—Não, não te levarei para «Barbary Coast».
—Estamos pois de acordo.
—A verdade é que não sinto vontade alguma de me despedir de ti. Antes do que se passou esta noite andava imensamente aborrecido.
—Terás tempo de sobra para te enfastiares —riu Dan—. Vim para ficar.
As ruas tornaram-se mais amplas, embora enlameadas, e os edifícios mais altos. Mas isto, e o facto de aparecerem alguns falsos passeios constituídos por tábuas, foi o único indício que fez notar ao jovem inglês que tinha deixado a parte costeira da cidade.
— Chegámos — disse Andrés detendo - se perante uma pequena casa, mas bem construída.
—Receio que os teus pais não te façam uma cordial receção — comentou Winter enquanto o seu amigo batia à porta. — Eles nunca vêm à cidade.
— Ah! Vocês vivem no campo?
— Sim. Na fazenda.
—Quer dizer que és fazendeiro!
—Infelizmente. Um fidalgo californiano nunca pôde ser outra coisa. Até agora.
— E isso desagrada-te?
— Acho-o muito aborrecido.
—E, no entanto, sempre foi esse o meu sonho dourado.
—Tencionas fazer-te fazendeiro?
—É essa a minha ideia.
—Posso ajudar-te.
— Pego-te na palavra. Creio que a terra não deve estar muito cara por aqui, não é verdade?
—Não é preciso mais do que apanhá-la.
—Homem, não penso levar um saco!
Andrés riu divertido.
— Falo a sério — acrescentou a seguir —. Posso indicar-te um lugar esplêndido do outro lado das montanhas junto ao São Joaquim.
—É um rio, não?
—Sim.
—Desculpa, mas não sou muito forte na geografia nesta parte do mundo.
—É natural.
— Mas tinhas dito que não era preciso mais do que «apanhar» a terra...
—Sim, foi o que disse.
—Queres fazer o favor de te explicares?
—Basta-te assentar por ali, firmemente, arraiais, e não deixar que ta tirem.
— Não é possível!
— Assim estão as coisas por cá.
— Então...
—Mas não julgues que é muito fácil. Precisas de comprar um bom revólver e contratar vaqueiros que estejam dispostos a lutar contra as hordas dos mineiros rebeldes e indomáveis, que nos caíram em cima. Esses malditos chacais arrasam tudo quanto encontram na sua passagem, como uma praga de gafanhotos.
—Então sempre é verdade!
—É verdade o quê?
—Que está em vigor a lei de «Squatter» (1).
— De facto assim é, embora se trate da maior imoralidade do mundo.
—Mas tal estado de coisas não pode durar muito.
—Assim o espero. E também o esperam todas as pessoas decentes. Mas de qualquer modo tu podes beneficiar com isso. Instala-te, procura manter-te pela força, e se o conseguires será o momento de revalidares os teus direitos registando legalmente as terras.
A porta abriu-se por fim, aparecendo na umbreira um velho índio meio vestido, que erguia ao alto um pesado candelabro.
— Senhor D. Andrés! Meu senhor. Que aconteceu?
— Nada de importante, José. Apenas uma pequena mudança de vestuário. Mas segura no chapéu desse cavalheiro.
O criado apressou-se a cumprir o que lhe ordenavam. —
Queres tomar uma chávena de café e um cálice de conhaque? — perguntou Montalva voltando-se para o seu amigo.
— Homem, francamente aceito!
— Ouviste o que este senhor disse, José. Vamos ver se és capaz de no-lo preparar rapidamente porque o senhor Winter e eu estamos muito cansados.
Seguidos pelo velha índio, atravessaram o vestíbulo até a uma ampla sala de jantar, onde, antes de desparecer, o criado se apressou a acender outro candelabro de prata maciça que ocupava o centro d monumental mesa.
—Esta é na realidade a minha casa de solteiro pois como já te disse os meus pais nunca aqui vêm. Assim, pois, acabas de tomar posse dela.
— Muito obrigado.
O local não era mais do que um antro coberto, sem pavimento sequer, mas estava animadíssimo e a concorrência não parecia importar-se, absolutamente nada, pisar aquela terra nua calcada pelos pés.
Riam, jogavam, gritavam e bebiam, do mesmo modo como se, em lugar de estarem numa barraca suja e desmazelada, se encontrassem no mais confortável e luxuoso dos casinos.
Todavia, Winter, conhecendo a impaciência com que o estava esperando Andrés Montalvão, não perdeu mais tempo do que o indispensável, e sem se atrever a beber o «whisky» que abandonou sobre o balcão, dirigiu-se, cambaleando, para a mesa onde se jogava às cartas e tirou à sorte algumas mantendo dificilmente o equilíbrio numa esplêndida imitação de bebedeira.
— Olhem para o elegante! — chacoteou alguém —. Porque não vais curti-la?
Aquela frase chamou a atenção do assistente sobre, o falso borracho. Não porque tal fauna fosse estranha no lugar, mas por se tratar de um cavalheiro, o que era, sem dúvida bastante descabido.
— Virgem Santíssima! — Berrou um alentado marinheiro que devia ser meio canadiano — Esse chapéu e esse casaco tão lindos era exatamente o que eu precisava. Que lindo que eu havia de ficar! Se os vestisse tenho a certeza de que a minha querida Peggy não se me havia de fazer rogada.
Winter viu chegada a oportunidade e deteve-se entre a troça de quantos o rodeavam, encarando marinheiro, a quem olhou de muito próximo e com os olhos ligeiramente semicerrados, como o deveria fazer qualquer ébrio.
—Jogo-os contra as tuas calças — tartamudeou com voz pastosa.
Aquela estrambólica proposta, totalmente descabida e inesperada, produziu um indescritível pandemónio em toda a taberna.
—Que me conservem em salmoura, se isto não ultrapassa tudo quanto tenho visto —rugiu um gigantesco e louro irlandês, todo músculos. assombrado franco-canadiano—. Vamos lá ver se tem as calças no seu lugar. Vamos lá ver se tens as calças no seu lugar.
— Então, este lindo inglesinho deixou-te mudo. Toda a taberna pareceu gritar em uníssono de forja, entre variadíssimos comentários, a maioria dos quais eram indiscritíveis.
Durante alguns minutos foi totalmente impossível ouvir-se o que quer que fosse, tal era o alvoroço; mas pouco a pouco foi-se apaziguando a gritaria até voltar tudo à normalidade.
—Vamos lá ver, francesinho, jogas as calças ou não? — rugiu o irlandês, impondo silêncio.
—Quem é que falou em medo? —cochichou alguém, provocando novos risos.
Depois dos primeiros instantes de assombro), o marinheiro uniu o seu riso ao dos amigos. Tinha pela frente um borracho «chalado» e julgou que seria fácil enganá-lo. Assim, nem por um instante o preocupou a possibilidade de vir realmente a perder as calças.
— Está bem — vociferou de modo a fazer-se ouvir por cima de toda aquela vozearia. — Aceito o desafio.
Aquela declaração provocou uma nova revoada de gargalhadas. Muito sério e ligeiramente cambaleante, Dan tirou o chapéu e o casaco, pousando-os cuidadosamente nas costas de uma cadeira. Os seus movimentos calaram a ruidosa assistência, que não queria perder um único pormenor da original aposta.
— Vamos, despe as calças — disse então o rapaz.
A perspetiva de que o mastodôntico semi-canadiano fosse ficar em trajos menores para depositar também a peça de vestuário, era o cúmulo para aquelas gentes alegres e ruidosas. Gargalhadas, assobios e toda a espécie de escandalosas manifestações e de algazarra, pareciam fazer ruir o desmantelado edifício.
— Vamos, marinheirozinho, vamos lá ver essas ceroulas.
— Olhem! Não veem que ele é muito envergonhado.
—É que usa lacinho cor-de-rosa nas cuecas.
Confuso e espicaçado daquele modo, o homem não se deu por achado. Despindo as calças ergueu-as bem alto e deu dois ou três saltos esperneando no ar com as peludas e musculosas pernas nuas.
As pessoas contorciam-se e levavam as mãos à barriga rindo a bandeiras despregadas. Durante um bom bocado foi completamente impossível ouvir-se qualquer coisa no interior do tugúrio que parecia ter-se convertido num verdadeiro manicómio. O próprio Dan tinha de fazer um esforço sobre-humano, para não juntar as suas gargalhadas à hilaridade geral. Todavia, de repente, começou a restabelecer-se novamente a ordem, pois a assistência queria a todo transe conhecer o desenlace.
— Vamos, rapazes, vamos lá a calar — vociferou o gigantesco irlandês, que parecia ter-se arrogado o direito de juiz na questão.
— A que jogamos? — perguntou o franco-canadiano quando o silêncio ficou um tanto restabelecido.
—Ora! A carta mais alta, que achas?
— Como quiseres —chacoteou o marinheiro fazendo uma reverência sumamente ridícula, tendo em conta que se encontrava em trajos menores.
Entre risadas tão estridentes como insolentes comentários, um criado trouxe rapidamente o baralho. O irlandês pegou nele, baralhou-o habilmente antes de o pousar sobre a mesa mais próxima, à volta da qual se agrupou imediatamente quanta gente enchia o recinto, dispondo-se em várias filas, pois não poucos tiveram de se encarrapitar sobre mesas e cadeiras para poderem ver.
— Será a três mãos e ganhará o que conseguir tirar a carta mais alta. De acordo? —propôs o gigantesco irlandês dirigindo-se aos dois adversários.
Ambos se mostraram de acordo.
—Está bem, vamos a isso, francesinho. Tu cortas primeiro.
— Porquê?
— Temos de ser corteses para com os forasteiros.
— Ah, bem. Se é por isso...
O franco-canadiano pegou tranquilamente num monte de cartas, e ao voltá-las mostrou um valete de paus. Todos o felicitaram, porque era de facto uma boa carta. Com efeito, Winter ao cortar, apenas conseguiu um seis de ouros.
— Animo, francesinho, vais transformar-te num elegante cavalheiro.
— O que é pena é que tenhas a cabeça muito grande para esse chapéu.
— Com o chapéu e o casaco vestido até vais parecer o governador lá da minha terra.
O irlandês baralhou outra vez, por entre todos aqueles jocosos comentários, e um momento depois estava novamente o baralho em ordem.
— Vamos, inglesinho, é a tua vez agora.
Dan cortou, e de novo tirou ouros. Um quatro, desta vez.
— Agora és tu! — indicou outro marinheiro.
— Ai que a Peggy vai-se derreter toda quando te vir.
—É vaidosa?
—Se é!
— Pois então podes estar certo de que não te resistirá. Com esse chapéu vais parecer um torrão de açúcar pilé.
Uma gargalhada geral corou aquela graciosa saída. O marinheiro cortou, e à vista de todos apareceu o três de espadas que igualava a partida. Baralhadas de novo as cartas o semi-canadiano voltou a sua carta sem mais demora, e com uma exclamação de alegria ergueu-a bem alto para que toda a gente a visse. Era a dama de copas!
Dan tirou então a carta que ficara em cima do monte, atirando-a sobre a mesa. Voltou a ser ouros. O rei!
No mesmo instante se acabaram as jocosas exclamações que tinha produzido a sorte do marinheiro, e um silêncio de espectativa se seguiu ao bulício do momento anterior. A ninguém restava dúvidas que tinha acabado a brincadeira. Winter ergueu a vista da carta, olhando fixamente o seu antagonista.
— Agora — disse este—, passa-me as suas calças.
— As minhas calças! Havia de ter graça, tente apanhá-las e racho-o em dois!
— Muito bem, irei eu buscá-las — afirmou o jovem resolutamente —. E nenhum malnascido como tu me impedirá disso.
— Malnascido eu! — rugiu o franco-canadiano enfurecido —. Ora, eu sou mas é filho de um barracuda e quando mordo arranco logo um pedaço!
—Pois aproxima-te e verás com que facilidade te parto os dente.
—Vou derrubar-te como quem derruba um cepo e ainda por cima te arrancarei orelhas!
Excessivamente confiado na sua própria força e corpulência, e julgando presa fácil aquele jovem elegante que parecia estar bêbedo como um casco, atirou-se sobre ele disposto a cumprir a sua ameaça sem mais demora. O homem não sabia que aquele esbelto rapaz, totalmente sóbrio, tinha sido durante vários anos o melhor peso médio da Universidade de Oxford.
Dan aproveitou bem o descuido do alentado marinheiro, detendo-o com um curto e tremendo direta na base do externo, para lhe dar seguidamente um seco murro atrás das orelhas, que o derrubou fulminantemente caindo no solo como um boi acutilado.
Winter cambaleou então um pouco como se tivesse perdido o equilíbrio, e como o movimento o levasse até muito próximo donde se encontrava a roupa, apanho-a de caminho e, erguendo em triunfo as calças, saiu antes que o assombroso permitisse à assistência reagir.
— Corre, Dan — ciciou ao californiano — que ao vê-lo tinha assomado de dentro do umbral da porta, desatando a correr em direção à esquina próxima. — Conseguiste? — perguntou Montalvo correndo a seu lado.
Dan passou-lhe as calças em silêncio.
Velozmente meteram pela primeira rua que encontraram, e não se detiveram até terem a certeza de que qualquer perseguidor tinha forçosamente de tê-los perdido naquele intrincado dédalo de torturas vielas por entre as quais se tinham internado com tal fim.
Uma vez a salvo, Andrés vestiu as calças, com um suspiro de alívio, embora estas lhe estivessem imensamente grandes.
— Caramba! Não podias ter escolhido um tipo menos avantajado?
— Puxa-as para cima.
— Mesmo assim estão-me grandes!
Como pôde, lá ajeitou aquela peça de vestuário que o excedia por estar demasiado comprida.
—Como foi que as arranjaste?
Winter deu um jeito ao chapéu para o deixar bem-posto e ajustou o casaco.
—Ganhei-o a jogar à carta mais alta.
—Mas então porque saíste correndo?
— Bom — disse Dan alegremente ao lembrar-se do transe—. Era um tipo grande que nem uma torre não levou muito a bem a brincadeira. Além disso, tinha uns amigos da mesma envergadura.
—E pelos vistos não se mostraram muito complacentes em deixar-te partir com as calças? — riu também o californiano.
—O interessado não, quanto aos outros não me detive a averiguá-lo,
—E como conseguiste convencer o brutamontes
—Deixei-o estendido com um valente murro no ventre, e sai correndo. Já deves ter constatado que tenho boas pernas.
—Na verdade! Embora viesse atrapalhado com toda aquela roupa, mesmo assim era-me difícil acompanhar-te.
— Oxford, percebes? Li menos os compêndios e aprendi lá muitas outras coisas.
— Estou a ver, estou a ver.
—Mas vamo-nos embora daqui, não achas? Na melhor das hipóteses devem andar à nossa procura para recuperar as calças, e se derem connosco o mais provável e que fiquemos os dois sem elas.
Afastaram-se de braço dado, deixando que as suas claras gargalhadas se elevassem na escuridão.
—Vais para minha casa — disse o californiano—. Ainda temos tempo de dormir algumas horas, e depois do pequeno almoço poderei então mostrar-te a cidade, se assim quiseres.
—Está bem. Mas não me leves para «Barbary Coast», entendes-me?
Andrés riu divertido.
—Não, não te levarei para «Barbary Coast».
—Estamos pois de acordo.
—A verdade é que não sinto vontade alguma de me despedir de ti. Antes do que se passou esta noite andava imensamente aborrecido.
—Terás tempo de sobra para te enfastiares —riu Dan—. Vim para ficar.
As ruas tornaram-se mais amplas, embora enlameadas, e os edifícios mais altos. Mas isto, e o facto de aparecerem alguns falsos passeios constituídos por tábuas, foi o único indício que fez notar ao jovem inglês que tinha deixado a parte costeira da cidade.
— Chegámos — disse Andrés detendo - se perante uma pequena casa, mas bem construída.
—Receio que os teus pais não te façam uma cordial receção — comentou Winter enquanto o seu amigo batia à porta. — Eles nunca vêm à cidade.
— Ah! Vocês vivem no campo?
— Sim. Na fazenda.
—Quer dizer que és fazendeiro!
—Infelizmente. Um fidalgo californiano nunca pôde ser outra coisa. Até agora.
— E isso desagrada-te?
— Acho-o muito aborrecido.
—E, no entanto, sempre foi esse o meu sonho dourado.
—Tencionas fazer-te fazendeiro?
—É essa a minha ideia.
—Posso ajudar-te.
— Pego-te na palavra. Creio que a terra não deve estar muito cara por aqui, não é verdade?
—Não é preciso mais do que apanhá-la.
—Homem, não penso levar um saco!
Andrés riu divertido.
— Falo a sério — acrescentou a seguir —. Posso indicar-te um lugar esplêndido do outro lado das montanhas junto ao São Joaquim.
—É um rio, não?
—Sim.
—Desculpa, mas não sou muito forte na geografia nesta parte do mundo.
—É natural.
— Mas tinhas dito que não era preciso mais do que «apanhar» a terra...
—Sim, foi o que disse.
—Queres fazer o favor de te explicares?
—Basta-te assentar por ali, firmemente, arraiais, e não deixar que ta tirem.
— Não é possível!
— Assim estão as coisas por cá.
— Então...
—Mas não julgues que é muito fácil. Precisas de comprar um bom revólver e contratar vaqueiros que estejam dispostos a lutar contra as hordas dos mineiros rebeldes e indomáveis, que nos caíram em cima. Esses malditos chacais arrasam tudo quanto encontram na sua passagem, como uma praga de gafanhotos.
—Então sempre é verdade!
—É verdade o quê?
—Que está em vigor a lei de «Squatter» (1).
— De facto assim é, embora se trate da maior imoralidade do mundo.
—Mas tal estado de coisas não pode durar muito.
—Assim o espero. E também o esperam todas as pessoas decentes. Mas de qualquer modo tu podes beneficiar com isso. Instala-te, procura manter-te pela força, e se o conseguires será o momento de revalidares os teus direitos registando legalmente as terras.
A porta abriu-se por fim, aparecendo na umbreira um velho índio meio vestido, que erguia ao alto um pesado candelabro.
— Senhor D. Andrés! Meu senhor. Que aconteceu?
— Nada de importante, José. Apenas uma pequena mudança de vestuário. Mas segura no chapéu desse cavalheiro.
O criado apressou-se a cumprir o que lhe ordenavam. —
Queres tomar uma chávena de café e um cálice de conhaque? — perguntou Montalva voltando-se para o seu amigo.
— Homem, francamente aceito!
— Ouviste o que este senhor disse, José. Vamos ver se és capaz de no-lo preparar rapidamente porque o senhor Winter e eu estamos muito cansados.
Seguidos pelo velha índio, atravessaram o vestíbulo até a uma ampla sala de jantar, onde, antes de desparecer, o criado se apressou a acender outro candelabro de prata maciça que ocupava o centro d monumental mesa.
—Esta é na realidade a minha casa de solteiro pois como já te disse os meus pais nunca aqui vêm. Assim, pois, acabas de tomar posse dela.
— Muito obrigado.
(') Nos países de língua inglesa denomina-se «Squatter» ao homem que se apodera de terras sem direito algum, baseando-se no facto de acampar nelas. (N. do E.).
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