quarta-feira, 5 de setembro de 2018

CLF026.01 San Francisco, terra de muitos criminosos

Encostado à amurada, Dan contemplava, pensativo, a fantástica floresta de mastros que se estendia, a perder de vista, por toda a enseada, e da qual se elevava o lúgubre clamor do cordame agitado pelo vento.
O barco não tinha conseguido chegar até ao molhe, intercetado no seu caminho pela silenciosa frota que se ia amontoando na baía, abandonada ali pelas tripulações que tinham desertado, fugindo para as montanhas em busca do ouro,
Ao ancorar a escuna, o seu conteúdo humano forcejou por ganhar os barcos, lutando cada um por ser o primeiro a pisar terra, como se o aurifúlgido metal os estivesse esperando na margem, e os que primeiro chegassem fossem os que iriam ficar com a melhor parte.
Todavia, o jovem Daniel Winter não mostrou pressa alguma. Era um rapaz de muito bom aspeto e impecavelmente vestido. Uma gravata de seda ocupava com o seu nó todo o espaço livre entre o colete castanho e o alto colarinho branco da camisa. No grande laço da gravata, um rico alfinete refulgia discretamente.
O casaco novo, cor de café com leite, contrastava notavelmente com as calças escuras e sobre a cabeça uma alta cartola aparecia garbosamente posta à banda. O viajante não aparentava ter mais do que cinco lustros e parecia ser um perfeito «gentleman». Bem-parecido, de cabelos castanhos e olhos cinzentos, alto, atleticamente constituído e simpático. As feições tinham um ar enérgico, possuía a cara afilada e o perfil aquilino.
— Pois bem, Mister Winter. Cá estamos nesta linda Califórnia — disse mal-humorado o barbudo comandante do barco, acomodando-se a seu lado. — Aí tem São Francisco.
— Depois de tanto tempo era como se a viagem não chegasse nunca ao seu termo, e, não obstante, acabamos por cá chegar — assentiu Dan, pensativamente.
— E agora o que pensa fazer?
O jovem voltou-se apoiando-se contra a amurada, mas de costas para a cidade.
— É o que terei de decidir — replicou sorrindo. — Esta maldita cidade cresceu como por artes mágicas. Ainda na minha viagem anterior não era mais do que um punhado de casebres erigidos à volta da missão dos franciscanos e sob a proteção do «presídio» (1). —A fascinação do ouro, comandante, é um íman muito poderoso. Não resta dúvida. Dizem que os emigrantes acorrem por aqui aos milhares vindo das sete partidas do mundo (2).
(') Fortaleza militar. (N do E.). (2) Mais de 80.000 no ano 1849. (N. do E.).
—O senhor tenciona fazer-se garimpeiro também?
— Não. De modo algum.
—Faz muito bem. Repare nessas casas de madeira, apinhadas desordenadamente. Está a ver? A cidade cresceu muito depressa, mas mesmo assim não é o suficiente. Aí é que está o fulcro do negócio.
— Hotéis, pensões?
— Isso mesmo; a indústria hoteleira, Oiça-me, senhor. Monte um hotel, uma boa pensão ou um bar, e fará dinheiro rápida e garantidamente.
— Tenho outros projetos — disse Dan, movendo lentamente a cabeça.
O comandante olhou-o admirado.
— Que tenciona fazer então?
— Há alguma coisa neste país de muito mais valor do que o ouro, mas como não brilha, como esse metal, as gentes esqueceram-na ou não a querem ver.
—O que é?
—A terra.
— Tenciona adquirir uma propriedade?
— Assim é, de facto.
— Não sei o que dizer-lhe. A ideia é boa, mas o momento talvez não seja azado.
— Porquê?
— Todo o país anda num alvoroço, numa autêntica revolução, há muitos bandoleiros e os índios começam a mostrar-se inquietos.
— Não tenho pressa. Além disso, terei de primeiro escolher o sítio e também de estudar os métodos locais. Gostava de criar gado e possuir algumas árvores de fruto. Essa sempre foi a grande ilusão de toda a minha vida.
— É uma nobre aspiração a sua. Sem dúvida alguma que Sir Lawrence Winter há-de sentir-se satisfeito quando souber.
Dan arqueou as sobrancelhas, olhando perplexo para o comandante.
— Conhece o meu pai? — perguntou.
— Não tenho esse prazer, e lamento-o. Mas sempre gostei de saber alguma coisa acerca das pessoas que viajam comigo. Principalmente sobre as da primeira classe.
— Ah!
— O senhor é o seu quinto filho, não é verdade?
— Com efeito —sorriu o jovem levemente divertido—. E como pouco restava para mim, decidiram fazer-me padre. É essa razão por que meti pés ao caminho.
O comandante ergueu a cabeça e todo o seu corpanzil foi sacudido por uma estrondosa gargalhada.
— Muito bem, Mister Winter—disse depois de lhe ter passado aquele acesso de hilaridade. —  Vai a terra?
—Vou, mas não tenho pressa nenhuma, nem desejo misturar-me com essa gentalha. O senhor disse-me há pouco: «Ai está essa linda Califórnia», e não se vai aborrecer se eu esperar um pouco mais.
—Nesse caso dê-me a honra da sua companhia. Estão a arriar um dos botes e posso deixá-lo no porto, sem apertos.
— Ficar-lhe-ei muito agradecido, tanto mais que o senhor pode orientar-me no meu caminho.
— Fá-lo-ei com muito prazer.
— Conhece algum sítio onde possa conseguir alojamento por um preço módico?
—Meu jovem e bom amigo, não é a primeira vez que chego a este porto, de arribada, mas ao que parece as coisas mudaram tanto que para o efeito é como se nunca tivesse cá vindo. De qualquer modo, pelo que me têm contado, aconselho-o a que tenha a máxima cautela. Nesta cidade matam um homem por dá cá aquela palha.
—E as coisas ficam assim?
Tinham descido para o pequeno bote e os dois marinheiros remavam vigorosamente levando-os na direção do molhe.
—A franja costeira chamada «Barbary Coast», tem a pior reputação possível. E no centro e na parte alta da cidade tudo aí custa um dinheirão. É preciso ter a bolsa bem recheada para se poder ir viver para lá.
— Não é esse o meu caso. Na realidade apenas tenciono passar a noite na cidade, e isso porque já está a escurecer. Não é aqui onde poderei encontrar o meu rancho.
— Ah, pois não — riu o comandante —. Em todo o caso, é aqui onde pode ficar sem ele.
O barco tinha atracado ao cais e os dois homens subiram por umas escadas toscas cravadas a um dos postes que sustinham o tabuado.
— Eis-nos chegados, Mister Winter. Desejo-lhe muito boa sorte — despediu-se o marinheiro estendendo-lhe a mão.
— Obrigado, comandante, que os ventos lhe sejam propícios.
— O mesmo lhe desejo eu — sorriu cordialmente o velho lobo-do-mar apertando a mão do inglês, que por instantes julgou que lhe iam estalar os ossos dos dedos —. Apenas uma advertência mais. Se cometer a loucura de se introduzir num desses tugúrios que pululam por aí aos milhares, na «Barbary Coast», não beba coisa alguma. Não se esqueça,
— Como?!
—É mais do que certo que lhe darão um narcótico.
— Com mil diabos! Isso é verdade?
— São Francisco é um inferno, meu jovem amigo. Tenha isto bem presente e tome cuidado.
— Está assim tão espalhada a criminalidade?
—É pura verdade de que se não passa um dia sem apunhalarem ou abaterem alguém, mas se o narcotizarem não será para o matar.
—Então para me roubarem?
— Sem dúvida nenhuma que o deixarão em trajos menores, mas além disso, quando acordar, encontrar-se-á no porão de algum barco navegando no alto mar. — O comandante achou graça à descrição e riu estrepitosamente. — Na melhor das hipóteses poder-se-á encontrar na minha formosa escuna, em viagem de regresso!
Dan franziu o sobrolho, como lhe era peculiar quando alguma coisa o preocupava.
— Como é isso?
— Está a ver todos esses barcos abandonados? Estão aí porque as suas tripulações fugiram. Percebe?
— Sim. Mas não compreendo...
— Contratamos a nossa equipagem para a viagem de ida e volta, mas não obstante todo o cuidado, não conseguiremos evitar que um ou outro fuja atraídos pela febre do ouro. Compreende? Necessitamos de tripulações completas e os donos desses tugúrios encarregam-se de nos proporcionar os homens de que precisamos, sempre que nos seja possível pagar de contado e em dólares bem-sonantes o que eles nos pedirem.
Dan sabia alguma coisa acerca do modo como se fazia o recrutamento das tripulações e a maneira de tratar os marinheiros em tais casos, e prometeu de si para consigo tomar o máximo cuidado. Depois de renovar os agradecimentos, o rapaz afastou-se por entre os barcos, caminhando sem pressa até chegar a terra, e uns momentos depois encontrou-se no meio do tráfego da monstruosa cidade.
Construções de madeira apinhavam-se desordenadamente formando vielas sujas, estreitas e tortuosas. O sol, que já não tardaria a desaparecer por detrás da linha do horizonte, mais além do mar, revelava desapiedadamente a sujidade das fachadas, negras de fumo e manchadas de lama e porcaria, e uma amalgama de lixo de toda a espécie que se amontoava pelas valetas.
A água estagnada tornava-se putrefacta nos lodaçais, e toda a espécie de imundícies, onde farejavam cães esquálidos amontoavam-se por todo o lado com absoluto e desprezível desrespeito por qualquer elementar norma de higiene.
As casas eram, na sua maioria, bares improvisados ou tugúrios sujos e desmazelados, sem que ninguém se ocupasse do seu aspeto e do seu asseio. Algumas mesas e cadeiras desconjuntadas constituíam todo o mobiliário, um longo mostrador de madeira, na maioria das vezes sem ser polida, espelhos, prateleiras com garrafas e em alguns casos uma roleta. Um saloon era aproximadamente a mesma coisa, ou talvez um recinto um pouco maior, onde costumavam acrescentar música e algumas mulheres ao conjunto.
Deambulando por aquelas vielas estreitas onde se notava a ausência absoluta do asfalto, mais carreiros propriamente ditos do que outra coisa, Dan cruzou-se com homens que pareciam pertencer a todas as nacionalidades. Vestiam camisolas de lã, amplos chapéus, calças de veludo, botas grosseiras e traziam pendurado do cinturão o revólver.
— Olhem que lindo casaco cor de café com leite! Mas que elegante!
Aquela voz rude e chocarreira arrancou o jovem do seu distraído e plácido deambular, fixando o olhar nos três homens que vestiam como a maioria e que poderia chamar-se, talvez, o vestuário de mineiro. Tinham-se detido no outro lado da rua e observavam-no rindo.
Winter olhou para eles por sua vez, verificando que estavam sujos e tinham o vestuário em desalinho, o que talvez fosse o normal neles, e também pareciam ter bebido mais do que a conta.
—E se lhe sujássemos um pouco a farpela? — perguntou um deles interrompendo as risadas. — Talvez depois se não sentisse tão fino e tão á moda!
— Já repararam no pedregulho que ele traz na gravata? Parece uma avelã.
O mais alto dos três resmungou qualquer coisa e mexeu a pesada cabeça. Era um indivíduo de constituição, com quase sete pés de estatura e que devia orçar pelas duzentas libras de peso, todo músculo e ossos. Um gigantesco irlandês de encrespada cabeleira loira que se escapava por debaixo do chapéu e lhe cobria quase toda a cara. Aquele homem adiantou-se aos seus companheiros postou-se de mãos nas ilhargas no meio da rua, e deitando a cabeça para trás saltou uma gargalhada.
Dan olhou para os três mineiros com ar carrancudo, mas como não tinha nenhum desejo de zaragatear procurou prosseguir no seu caminho, embora naquele instante o irlandês lhe intercetasse a passagem com uma agilidade inacreditável para um corpanzil daqueles.
—Mas de onde tinha saído este lindo cavalheiro-zinho tão aperaltado!
Winter tinha um génio irascível, mas procurou conter-se porque não tinha outra roupa além da que trazia vestida e, portanto, devia evitar o mais possível que lhe estragassem o fato.
—E depois? —perguntou calmamente.
— Então não querem lá ver o franganote a crescer para mim, hem?
Era evidente que aqueles homens tinham vontade de fazer arruaça, pelo que Winter introduziu a mão no bolso como se fosse tirar o lenço ou a tabaqueira, devagar e com toda a calma, mas quando mostrou de novo a mão direita, empunhava firmemente uma pequena e prateada «Derringer» de dois canos, que apontava diretamente ao corpanzil da cabeleira loira.
— Querem fazer o favor de me deixarem seguir tranquilamente o meu caminho? —sugeriu.
O irlandês deu um passo em frente abrindo e fechando as manápulas, mas não passou dali.
— Matá-lo-ei, se me ameaça — grunhiu torvamente.
Os outros dois mineiros mexeram-se inquietos, mas Dan não os perdia de vista e também nada tentaram.
—É possível — acrescentou o jovem sem se impressionar com a rancorosa ameaça e tão calmamente como se estivesse a fazer um trivial comentário sobre o tempo—, mas aconselho-o a que tente fazê-lo noutra ocasião, pois se eu ficar nervoso poderei disparar este brinquedo e, na pior das hipóteses, furar-lhe a pele.
O gigante resmungou qualquer coisa ininteligível, embora evidentemente pouco amistosa, mas achou melhor ir juntar-se aos outros dois, que seguiram o seu caminho rua abaixo.
Dan retrocedeu então rapidamente em procura da primeira esquina felizmente muito próxima. Não tinha ilusões de que a sua situação era muito melindrosa. A prateada pistolazinha que possuía pouco mais era do que um brinquedo de pequena eficácia e de curto alcance, além de não dispor senão de dois disparos, pelo que enquanto os mineiros se afastavam um pouco poderiam voltar, impunemente, e causar-lhe complicações com aquelas pistolas enormes de cinco tiros e de grande calibre que traziam penduradas à cintura.
Sentiu-se muito mais tranquilo ao dobrar a primeira esquina, e não hesitou em acelerar o passo a fim de se confundir com os transeuntes e perder-se seguidamente no labirinto das vielas tortuosas.

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