segunda-feira, 10 de setembro de 2018

CLF026.06 Depois do beijo... a espada

Banhada pela prateada luz do amoroso astro, com o seu vestido branco de corte francês e um generoso decote, parecia uma figura etérea, demasiado formosa para ser real.
— Na verdade não sei porque saí consigo — disse Virgínia detendo-se e erguendo a cabeça para o olhar— . Não está certo.
Dan contemplou-a, observando como a lua acariciava com os seus prateados reflexos as negras madeixas, mirando-lhe os olhos dentro dos quais parecia ter-se submergido a luz, da qual somente um leve fulgor irrompia de vez em quando até à superfície.
A jovem californiana tinha a pele alva como a de uma escandinava e com ela contrastavam as sinuosas e negras ondas da sua bela cabeleira. Enquanto o olhava, a sua boca não se movia, e o carmim vivo dos seus lábios era como uma mancha escura maravilhosamente delineada, com a suavidade de uma pétala.
—E porque não? Ambos sabemos que existe entre nós algo que não é casual e não pode explicar-se —afirmou com voz emocionada, convencido do que dizia — . Compreendi-o ao vê-la. E você também.
—Você é um impertinente!
— Talvez — concedeu ele — . Mas na minha impertinência há humildade e adoração.
— Mas isto... tudo... É demasiado estranho e repentino!
—Dez anos de reflexão que fossem nada adianta riam. Você deve compreender.
—É tudo tão confuso! Eu... não sei...
—Para mim é tudo muito simples. Você é formosa, Suficientemente formosa para enlouquecer um homem e levá-lo ao desespero.
Inclinou a cabeça ao mesmo tempo que a enlaçava pela cintura e unia os seus lábios sofregamente contra os dela.
As mãos de Virgínia afastaram imediatamente o peito do rapaz, procurando empurrá-lo, mas os braços dele estreitaram-na cada vez com mais força, até a ponto de ela, se o pudesse ter feito, ter gritado de dor. Mas a sua boca mantinha-se unida à dele, contendo os seus gritos e o seu alento.
A rapariga bateu-lhe então com energia no peito com ambas as mãos, mas ele introduzindo-lhe a mão direita pelas espáduas, apertou contra si o corpo dela cálido e suave, sentindo-a junto do peito. E então subitamente, cessaram as pancadas.
Os lábios dela abriram-se dando passagem a um doce e brando alento juvenil. Sentiu-a mover-se, elevar-se para ele, e os seus braços rodearem-lhe ternamente o pescoço. Tinham suavidade e a macieza do veludo, ao tocá-lo, mas queimavam simultaneamente como um ferro em brasa. Quando a soltou, Virgínia lançou-se para trás, com os seus olhos negros tão insondáveis como a própria noite e bailando neles um diamantino cintilar de lágrimas.
—Dan — murmurou.— Oh, Dan.
Mas passado um instante, antes que o jovem pudesse tomar qualquer decisão, soltou-se e girando velozmente afastou-se a correr, toda ela presa de frémitos e soluços. Dan não a seguiu. Estava demasiado perturbado para isso, e puxando pela cigarreira tirou um cigarro. Tremiam-lhe as mãos e só à segunda vez o conseguiu acender.
* • *
A música continuava a ouvir-se dentro de casa, e dirigiu-se lentamente para lá. Tão absorto ia nos seus pensamentos que não notou a presença de umas sombras furtivas que lhe intercetaram o passo, postando-se diante dele.
—É o senhor Winter?
Dan ergueu a cabeça, vendo que uns jovens de rosto grave o olhavam de modo indubitavelmente agressivo.
— Sim — disse.
—Senhor, se sabe esgrima posso matá-lo agora mesmo.
O inglês olhou perscrutadoramente o espigado e flexível moço que acabava de pronunciar tão truculenta sentença. Como os outros, vestia uma justa jaqueta mexicana, adornada com bordados de prata.
—E porquê? — perguntou serenamente.
—O senhor sabe-o perfeitamente.
— Se assim fosse não lho perguntaria.
—O senhor ofendeu a menina Calvez.
—Foi ela quem lho disse?
—Não tenho que responder a uma pergunta tão estúpida.
—E porque há-de meter-se no que não lhe diz respeito?
— Não respondeu à minha pergunta.
—Nem o senhor à minha.
—Será preciso que o esbofeteie?
Dan sorriu ironicamente.
—Não o aconselho —disse—. Mas se tantos desejos tem de cruzar o aço comigo, arranje um par de espadas, pois não tenho o costume de as trazer no bolso do casaco.
Um dos californianos avançou então apresentando-lhe duas espadas, seguras pelos copos, sobre o antebraço esquerdo.
—Ena! Ao que parece já estavam prevenidos.
—Retirámo-las na panóplia do nosso anfitrião. Não se importará com isso.
—E se eu não souber esgrimir?
— Então teremos de esperar para amanhã, pois não queremos estragar a festa e as pistolas fazem muito barulho.
— Ah! Mas suponho que não será aqui que resolveremos esta questão, pois como veem não há espaço suficiente.
—Junto ao tanque há, e a luz do luar é suficiente
— Pois então vamos até lá.
Chegados ao local escolhido, ambos os antagonistas empunharam as espadas colocando-se frente a frente. Havia verdadeiramente algo de irreal e novelesco na cena que iluminava de modo fantasmagórico os prateados raios do luar.
No centro, um formoso lago redondo com peixes e plantas aquáticas, rodeado por floridos roseirais que perfumavam a noite serena, enquanto flutuavam no ar suavemente as doces notas de uma valsa. O cenário era ideal para os arrulhos de um parzinho de namorados e, no entanto, sobre a verde relva dois jovens hirtos, em mangas de camisa, empunhavam as espadas, prontos para destroçar tão idílica paz com o sinistro entrechocar dos ferros.
— Está pronto, cavalheiro? — perguntou o californiano.
Por um instante Dan pensou tentar evitar aquele duelo absurdo, mas ao concentrar a sua atenção na esbelta figura do adversário, e ao cruzar o seu olhar com o dele, frio e determinado, compreendeu perfeitamente que seria perder o seu tempo. Era simplesmente ridículo tudo aquilo. Mas decidido no entanto a terminar quanto antes e a fim de experimentar a lâmina deu algumas espadeiradas no ar, fazendo com que rápidos reflexos de luz percorressem a folha flexível e de boa têmpera.
— Quando quiser — disse por fim pondo em guarda o adversário.
Cruzaram-se então os aços com um tilintar harmonioso e característico. O californiano demonstrou imediatamente que tomara as coisas a sério e tinha grandes desejos de acabar o mais depressa possível, porque sem qualquer ensaio preliminar atacou tão venenosa e rapidamente como uma víbora, com um veloz golpe de quarta baixa.
Aquele jovem era um exímio espadachim, e Dan apenas teve tempo de aparar, em apuros, a vigorosa estocada, em quarta também, replicando acto contínuo, de modo que o seu adversário teve de ceder terreno. Winter recuou por sua vez, baixando o aço.
—Na verdade, é necessário que nos matemos? — perguntou — . Pela minha parte não tenho desejo algum de o atravessar.
—Pois será o único modo de evitar que eu o faça a si.
 — A nossa rivalidade podia resolver-se de outro modo — propôs.
— Quero casar-me com a menina Galvez —respondeu secamente o agressivo moço — ; como também desejam esses senhores, mas não é este o motivo que me leva a suprimi-lo. Vimo-la sair consigo, e depois regressar precipitadamente, para se ocultar nos quartos do andar superior. Dois de nós pudemos notar que tinha os olhos rasos de lágrimas. O senhor ofendeu-a por isso vou matá-lo.
— Talvez a tivesse ofendido — respondeu Dan —mas a minha intenção não foi essa. No entanto, compreendo os seus motivos e lamento que não possamos ser amigos.
—Não, não podemos sê-lo.
Lentamente, quase com indiferença, avançou novamente o californiano e uma vez mais se entrechocara as espadas, e fizeram uns passes preliminares em te ceara, medindo-se mutuamente, procurando o ponto fraco da guarda do adversário para iniciar o verdadeiro assalto.
Winter não queria matar o seu rival, e por isso pré-féria manter-se na defensiva, mas em vista de que aquele não se decidia a lançar-se no ataque, atirou-se para diante, subitamente, como um relâmpago, deslizou a sua espada ao longo da do contrário, cedendo terreno momentaneamente perante a cerrada guarda do adversário, lançou duas fintas rápidas que, bem detidas, arrancaram faíscas das lâminas, e aproveitando uma aberta, estendeu o braço a todo o comprimento, procurando o ombro esquerdo do outro, mas suficientemente alta para que a estocada não fosse mortal.
O ataque foi de uma rapidez diabólica, e embora um passe de mestre do californiano tivesse desviado a espada no último momento, toda a sua indubitável destreza não conseguiu evitar que a aguda ponta rasgasse a camisa e lhe fizesse uma ferida, se não importante, pelo menos suficientemente profunda para que sangrasse.
Winter recuou outra vez, baixando o braço armado.
— Gostaria que se desse por satisfeito — disse com voz ligeiramente entrecortada pelo esforço. Naquele momento uns passos rápidos que se aproximavam fizeram com que todos voltassem a cabeça, encarando-se com Andrés Montalvo, que chegava a correr.
— Assim que dei pela tua falta, Juan, logo calculei o que estavas a fazer — explodiu o rapaz, enfrentando-se com o adversário de Dan. — Estás muito envaidecido com a destreza da teu aço, e pelos vistos quiseste mostrá-lo a toda a gente. Está bem, experimenta comigo.
—Enganas-te, Andrés — disse o outro, serenamente—. Ia precisamente dizer a este senhor que se não trata de um duelo a brincar. Quero matá-lo!
Um hálito de tragédia flutuou no ar tranquilo e perfumado da noite.
— Mas... Porquê? — balbuciou Montalvo, aturdido.
—O teu amigo já o sabe, e não quero fazer disso motivo de discussão.
Andrés voltou-se para o inglês, Interrogando-o com o olhar.
—Lamento, meu velho, mas quanto menos se falar disto melhor, pois o errado procedimento do teu compatriota pode dar origem a erróneas interpretações. De, qualquer modo não lhe vai ser fácil espetar-me com a sua espada.
— Vamos verificá-lo, senhor? — perguntou Juan com um cintilar perigoso nos seus olhos escuros, fazendo um airoso floreado com a espada.
—As suas ordens.
Fora agora o californiano que lançara um ataque impetuoso, iniciando uma série de passes apertados que precederam um golpe decisivo de terceira alta e molinete vertiginoso, durante o qual a folha contrária relampejou perante os olhos de Winter, para terminar novamente em guarda, vibrante e como que fatigada. O aço não o estava, naturalmente, mas sim o seu esgrimista que arquejava de forma penosa, e como Dan não queria matá-lo, decidiu aproveitar a sua superioridade física para o cansar, e lançou-se ao assalto' disposto a não lhe conceder a menor trégua. Alternou velozmente golpes a fundo e cortantes; quartas ao peito, parada em segunda, terceira ao ventre, quarta alta, terceira de novo... Tudo com vertiginosa rapidez, e vendo uma aberta lançou-se a fundo cravando sobre um osso do ombro direito.
O californiano largou a espada e cambaleou um momento, mas refazendo-se com admirável inteireza, olhou de modo franco e nobre para o vencedor.
— Tinha razão, senhor. Não é tão fácil matá-lo. Tentarei ser mais afortunado na próxima vez.
—Encontrar-me-á sempre à sua disposição—disse Dan saudando-o com o ferro, verdadeiramente admirado com a coragem do seu adversário, pois a ferida era importante e devia doer-lhe intensamente.
Os demais rapazes agruparam-se imediatamente à volta do ferido falando excitadamente, e após breve pugna levaram-no dali para o curar.
—Podias tê-lo morto — disse Andrés quando o levaram.
—Não tinha desejo algum de o fazer. Parece ser um bom rapaz, nobre e valoroso.
—Demasiado impetuoso, nada mais. Mas neste caso é bastante justificado. Toda a gente julgava que ele acabaria por se casar com Virgínia, e não lhe deve ter agradado nada ver como ela te olhava no vestíbulo.
—Lamento ser o terceiro na discórdia, mas ela há-de casar-se comigo.
— Devagar, amigo. Não posso negar que lhe causaste uma profunda impressão, mas a rapariga pertence à melhor família californiana, e não irás encontrar muitas facilidades.
—Nisso acredito eu.
— Que podes oferecer-lhe?
—Nada.
— Gosto da tua sinceridade.
—Para que havia de te enganar.
— Mas...
— Quanto ao seu nome, o meu é também de tão boa linhagem como o dela, pois meu pai é Par em Inglaterra, embora toda a minha herança se reduza de momento a mil e trezentos dólares.
—E é com isso que tencionas levantar a tua fazenda?
— Com isso precisamente.
— Estás louco!
— Mas, não dizes que a terra não me custará nada?
—Não, a terra não.
— Então?
—Com a descoberta do ouro tudo subiu até às nuvens. E necessitarás de construir a casa, contratar pessoal, comprar reses e trabalhar a terra. Tudo isso requer tempo para começar a dar algum rendimento, e o teu capitalzinho esfumar-se-á muito antes.
Dan, que esgravatava pensativamente o solo com a ponta da espada, franziu o sobrolho mergulhado em profundas reflexões.
—Escuta, Andrés. Nestes dois dias falámos muito dos meus projetos, de modo que quase sabes tanto deles como eu.
— Nunca te perguntei pelos meios com que contavas.
—Não, não mo perguntaste. Mas agora já o sabes.
— Por isso digo que estás louco.
—É possível. No entanto, vou realizar os meus projetos, e tu ajudar-me-ás.
Andrés olhou-o diretamente nos olhos, e lentamente assentiu.
—Está bem — disse — Eu ajudar-te-ei. Meu pai sempre disse que eu era um tanto inútil.
Dan ergueu a cabeça e deixou escapar uma alegre gargalhada.
— Faremos uma boa sociedade disse . E depois, só os tontos e os loucos conseguem fazer dinheiro.
—Está bem. O que é que eu devo fazer?
— Conheces melhor do que eu o local onde quero Instalar o meu rancho, pois que tu próprio mo indicaste. Quero que mandes construir ali um barracão e currais amplos. Fá-lo-ás?
—Só isto?
— Só isto.
— Mas tu...!
—De momento farei vida comum com os meus homens. Mas com a certeza de que não será por muito tempo. Para o ano mandarei construir uma casa pelo menos tão formosa como esta.
—E como pensas construí-la?
—Irei para o Sul. Para San Diego; no mesmo barco que me trouxe, e depois ao Vale Imperial. Dali trarei homens e reses, depois venderei aos acampamentos dos mineiros.
— Nesse caso não será necessário que eu me incomode a construir esse barracão.
— Que é que te leva a dizer isso?
—Nunca conseguirás chegar até aqui.
— Hei-de conseguir, Andrés. E não uma, mas várias vezes.
— Não resta dúvida que és um autêntico louco.
— Até conseguir o dinheiro suficiente para levanta a fazenda mais formosa de toda a região de São Joaquim — terminou Dan, sem prestar atenção à interrupção do seu amigo.
Montalvo olhou-o com um olhar penetrante.
—E tudo isso por causa de Virgínia? —perguntou
— Sim, Andrés. Já te disse que me vou casar com ela. E não quero que ninguém me considere um «caça-dotes».
— Terás o teu barracão, meu rapaz. E a tua adorada saberá o que fazes e porque o fazes.
Os dois jovens apertaram fortemente as mãos selando um silencioso pacto de ajuda mútua e amizade
— Agora toma —prosseguiu Dan—. Queres fazer favor de repor a espada no seu lugar?
—Não entras?
—Não. Espero-te cá fora. Mas não tenhas pressa porque tenho muitas coisas em que pensar.

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