domingo, 9 de setembro de 2018

CLF026.05 Rodopiando ao som cadenciado de uma valsa

Andrés estava já à espera quando Dan chegou a sua casa, e o seu esverdeado rosto mostrava-se hermético, não sorria.
O inglês olhou-o e procurou forçar um sorriso, muito embora o seu ânimo estivesse ainda conturbado pelo sangue derramado, mas não teve bom êxito.
—Lamento muito, Andrés. Não quis ofender-te.
— Mas conseguiste-lo.
— Tinha de ser.
—Já sei. E empenhastes até a própria roupa?
— Não. Essa trago-a aqui.
— Ainda bem. Um dos criados de meu pai trouxera-me um recado. Estará à minha espera depois de amanhã. Um rico fazendeiro vizinho vai dar uma festa e eu tenho de assistir. Tu irás comigo, claro.
— Obrigado, mas não tenho disposição nenhuma para festas.
— Mas convém-te. Assistirão todas as pessoas importantes da região, e para realizares os teus fins deves estar nas boas graças desses senhores.
— Achas que é necessário?
— De outro modo, além de teres de lutar contra a praga dos indesejáveis que assolam o vale, é possível que tenhas ainda algum aborrecimento com aqueles cavalheiros.
— Ora!
— Mas queres dizer-me o que te aconteceu? Estás pálido como a cera.
— Matei um homem, Andrés.
—O quê?
Dan encolheu os ombros, deixando-se cair pesadamente numa cadeira.
— Foi exatamente o que ouviste.
—  Mas, com mil demónios, o que é que se passou?
— Tive uma querela com ele na tarde de ontem. Um indivíduo brutal que se riu de mim e procurou sovar-me, mas que eu mantive em respeito com a minha pequena pistola. Ameaçou-me depois de morte, mas eu não lhe prestei grande atenção, porque realmente não lhe tinha dado motivo algum para isso, pois simplesmente evitara que ele me incomodasse. No entanto, mal me viu esta manhã veio direito a mim empunhando um revólver e deu-me um tiro. Foi nessa altura que eu ripostei, matando-o.
—Mas... Não estás ferido, pois não?
— Não. Foi o embrulho que aparou a bala.
—Do mal o menos!
Andrés soltou um suspiro de alívio, mas ficou a olhar para o volumoso embrulho co ma testa franzida.
—E... Não é aí que trazes o teu fato?
— Céus! É verdade!
Endireitando-se de um pulo, Dan desembrulho apressadamente o embrulho que tinha deixado sobre mesa. Retirou o casaco, e ao desdobrá-lo, alguma coisa caiu no chão. Era a bala!
Os dois ficaram-se a olhar tristemente para os formosos buracos que apareciam nas bandas e na manga esquerda.
— Inutilizado! — resmungou irritado Dan.
— Pior seria se tu o tivesses vestido — ponderou acertadamente o seu amigo.
—Sem dúvida.
—Enfim, veremos como nos havemos de arranjar com o meu guarda-roupa. O pior é que tu és pelo menos, cinco centímetros mais alto do que eu.
—Não há-de ser preciso. Vejo que o teu alfaiate é bastante bom. Achas que em tão pouco tempo será capaz de me fazer um fato?
—Descobriste alguma mina de ouro?
—Não. Ainda não—riu Dan, pensando no velho Wart.
Não tencionava falar ao seu amigo acerca daquele tipo, pois estava certo de que o tacharia de ingénuo.
—Está bem. Vamos ao meu alfaiate.
Andrés abriu a porta com um empurrão, e os dois saíram para a rua.
* * *
O ruído produzido pela porta do quarto ao abrir-se, foi o que acordou Dan. Descerrou lentamente um olho, pestanejando perante a erupção do deslumbrante sol ao abrir-se a janela, e estirou preguiçosamente as longas pernas, bocejando.
—Vamos, mandrião. De pé!
— Tão cedo? — resmungou olhando para o seu amigo, que então se aproximara da cama.
—Tão cedo! Repara. O sol já está prestes a ocultar-se por detrás das montanhas da costa. Temos de nos arranjar depressa porque depois há um bom pedaço a percorrer até à fazenda de Don António Penalva.
— Vamos a isso!
Afastou a roupa da cama saltando agilmente para o chão no momento em que entrava o velho criado trazendo-lhe cuidadosamente a roupa que o alfaiate lhe entregara naquela mesma manhã.
Dan lavou-se e barbeou-se cuidadosamente, embora o tivesse feito às primeiras horas daquele mesmo dia e a seguir começou a vestir-se sem aceitar a ajuda que lhe oferecia o silencioso José. O fato ficava-lhe bem apesar da rapidez com que tinha sido confecionado.
O casaco, de tecido escuro sedoso, caia para trás deixando a descoberto o colete de duplo peito, de cor creme, através do qual brilhava a maciça corrente de ouro do relógio.
O jovem viu-se ao espelho e sentiu-se satisfeito acariciando com ar ausente o forro do colete que caia precisamente até à altura onde começavam as amplas calças de cor cinzento-pérola.
A enorme gravata tinha exatamente o estudado desalinho tão admirado pelos cavalheiros de cinquenta. O aspeto do rapaz era extremamente elegante como o dissera Andrés,
— Com esses teus cabelos alourados vais causar sensação entre as minhas belas «camponesas».
—E elas? Haverá alguma que me possa causar sensação?
—Sem dúvida! — riu Montalvo, alegremente—. Há autênticas beldades. Mas espera um pouco até conheceres Virgínia Gálvez. Tenho a certeza que até desmaias!
—É assim tão formosa?
—Já vais ver. E desde já te aconselho a que não procures cortejá-la.
— Porquê?
— Em primeiro lugar porque está sempre rodeada de ciumentos admiradores, alguns dos quais são extremamente belicosos. Mas, sobretudo, porque os Gálvez não sentem nenhuma simpatia pelos ingleses.
—E que lhe fizemos nós?
— Quase todos os seus antepassados guerrearam denodadamente contra a Inglaterra. Durante o século passado bateram-nos nas Honduras, Nicarágua, Flórida, Jamaica e nas Bahamas.
— Ena! Já sinto grande ansiedade por conhecer tão encantador inimigo. E sabes uma coisa? Parece-me que vou tentar conquistar a fortaleza, para ver quem conseguirá a vitória nesta escaramuça.
— Sabes esgrimir?
— Não me digas que para a conquistar terá de ser à estocada!
— Afirmo-te que sim. Entre nós é ainda muito frequente decidir essas questões pela espada.
— Pois bem. Frequentei assiduamente as melhores salas de esgrima de Londres e Madrid, e mais de uma vez mereci os encómios dos meus professores. Creio que saberei defender-me.
—Pois então vê bem o que fazes. Já ficas avisado. E vamo-nos embora, porque o coche está à nossa espera.
* * *
Depois da interminável série de apresentações, Dan pôde gozar uns momentos de liberdade para admirar tudo quanto o rodeava.
Era verdadeiramente surpreendente o luxo que imperava na fazenda dos Penalva, considerando o preço elevado que devia ter custado levar até ali, desde a distante Europa, os régios móveis trabalhados em mogno, teca e acaju — polidos até brilharem como espelhos — e ainda os grandes lustres, os cristais e as pratas.
— Que achas? — perguntou-lhe o sorridente Andrés, que se mantinha a seu lado.
—É incrível! — afirmou Dan, realmente admirado. No interior do salão de baile uma orquestra tocava uma alegre melodia, enquanto no vestíbulo o mordomo anunciava de vez em quando um ou outro convidado mais atrasado.
— Olha, Dan. Ela aí está!
O inglês olhou para o seu amigo, mas este tinha a cabeça voltada para a majestosa entrada, e então Dan volveu os olhos naquela direção.
Winter viu Virgínia Gálvez no momento em que a donzela entregava o casaco ao criado, e inclinou-se subitamente para a frente ao mesmo tempo que do seus lábios escapava qualquer coisa como um profundo suspiro de incredulidade e êxtase.
Era como se a luz de todas as velas descesse sobre a jovem enquanto se encontrava parada no vestíbulo junto de seus pais. De estatura mediana, o seu andar, ao dirigir-se para os donos da casa, era semelhante ao ondular de um tranquilo lago agitado pelo vento da primavera. O cabelo, de um negro intenso, caía em caprichosos caracóis escuros por sobre os ombros, e o vestido, qual noite que descesse do mesmo céu de Deus, iluminado por uma estrela. O rosto, de uma formosura invulgar, era capaz de fazer vibrar o coração mais frio.
— Parece que ficaste mudo? — perguntou-lhe o seu amigo trocistamente.
Winter teve de humedecer os lábios, que se lhe tinham secado.
—É um sonho! — foi tudo quanto pôde dizer.
—Pelo que vejo causou-te profunda impressão. Mas permite-me que te diga que o olhar tão fixamente para uma senhora é extremamente grosseiro.
—Guarda as tuas repreensões para ti e apresenta-ma já!
—Não serei eu quem o farei, se me não prometeres portar-te como deve ser — disse Andrés, aborrecido.
—Está bem. Nesse caso apresentar-me-ei eu próprio.
— Dan! Lamento ter de o fazer, mas obrigas-me a lembrar-te de que fui eu quem te trouxe aqui.
—Está bem! Está bem! Queres deixar de grasnar como uma gralha e apresentares-me a essa maravilha? Queres ou não?
—E portas-te decentemente?
--Portar-me-ei tão tímida e respeitosamente como uma donzela.
Andrés riu suavemente, com certa ironia e indubitável alívio.
—Vou apresentar-ta então, mas não julgues que, vai ser fácil.
Com efeito, um cerrado círculo de jovens californianos tinha rodeado a rapariga, monopolizando-a completamente.
— Andrés, se é essa toda a ajuda que me vais dispensar, parece-me que posso passar sem ela perfeitamente. Quando chegares a apresentar-me já terá todas as danças concedidas, ainda que a festa dure uma semana.
—Está bem, meu troglodita. Vamos lá!
Andrés lançou-se, com efeito, denodadamente contra a barreira dos rapazes que rodeavam a pequena, abrindo caminho com os cotovelos. Dan ficou atrás dele. O acolhimento que Virgínia Galvez dispensou a Andrés foi calidamente afetuoso.
— Boas-noites, Andrés. A verdade é que eu devia estar magoada consigo, pois se esqueceu de mim durante muito tempo. Já não somos, por acaso, os mesmos bons amigos? — gracejou ela estendendo-lhe a mão.
—A admoestação é injusta, pois como vê para chegar até si é preciso travar uma autêntica batalha — respondeu o jovem sorridente, inclinando-se sobre a fina mão que a rapariga lhe estendia.
Mas quando se ergueu novamente, viu que ela já não o olhava. — Permita-me que lhe apresente o meu amigo Dan Winter. A menina Galvez — disse.
Dan inclinou-se profundamente.
—Até hoje — disse clara e pausadamente — não tinha compreendido exatamente qual era o verdadeiro sentido da minha existência.
—Intriga-me, senhor — sorriu ela, sustendo o ardente olhar do jovem, enquanto um carmim ia tingindo as suas acetinadas faces —. E qual é ele?
— Adorá-la até ao fim dos meus dias.
—Não será tempo demais?
—Cem vidas que eu tivesse não me pareceriam suficientes.
—O senhor é muito eloquente — riu ela, nervosamente.
— Só o receio de a incomodar me impede de sê-lo muito mais. No entanto, atrever-me-ei a pedir-lhe humildemente que me conceda esta dança.
—A ousadia deve ser uma qualidade inerente ao homem. Não quero desiludi-lo.
— Então a primeira, não é verdade?
A jovem tinha um riso alegre e harmonioso que dava prazer ouvir.
—Estou a ver que não terei outro remédio senão aceder, mau grado estes cavalheiros que se mostraram mais diligentes em vir-mo solicitar.
— Não foi minha a culpa, pode crer. Ter-me-ia lançado a seus pés logo que a vi, se não mo tivesse impedido o receio de atropelar todos os convencionalismos.
— Deveras? — perguntou com malícia, pondo de lado ligeira e graciosamente a sua linda cabecita, como se quisesse vê-lo melhor —. Na verdade tinha-o julgado muito capaz de saltar por cima de todos os preconceitos.
Fora agora Dan quem erguera a cabeça, deixando escapar uma atrevida gargalhada.
—Realmente foi Andrés quem teve a culpa de que eu não o fizesse—afirmou olhando-a atrevidamente — E isso unicamente porque se apressou a lembrar-se que tinha sido ele quem me tinha convidado.
Ela deixou ouvir de novo o seu riso cristalino.
—Perdoam-me por uns minutos, não é verdade, senhores? — continuou, voltando-se para a corte do seus admiradores —. O senhor Winter é um forasteiro e temos o dever de nos mostrarmos hospitaleiros para com ele.
Os jovens inclinaram-se com caras de enterro, a maioria deles, e Dan devolveu-lhes a reverência cerimoniosamente trocista, após o que levou a rapariga. Em breve se encontravam no meio dos pares que dançavam. Rodopiando impavidamente, ao som cadenciado da valsa, perdido já para sempre, sabendo-o e deleitando-se com isso, Winter mirava-se nos olhos negros de Virgínia, mergulhados em longínquas eras onde a luz não existia ainda.
—Estive à sua espera toda a minha vida —murmurou ternamente —. Estive esperando-a sem o saber. Mas o Destino trouxe-me de tão longe para me encontrar consigo.
As incrivelmente longas pestanas da californiana ergueram-se para mostrar uns olhos negros, grande profundos, que olhavam de modo sereno o juvenil semblante daquele rapaz insolitamente simpático, com audácia e o atrevimento estampados no rosto delicadamente delineado. Não havia afetação neles; apenas candura, confiança e aceitação.
— Alegro-me — disse claramente— . Alegro-me por saber que esperou.
O agitado movimento da dança, as luzes e o bulício, mas sobretudo a excitante proximidade da rapariga e o ténue e embriagador perfume que se desprendia do seu corpo maravilhoso estavam perturbando o rapaz, que pela primeira vez na sua vida, sem ter nunca provado uma única gota desse incrível licor, sentia que lhe subia à cabeça.
— Ficou muito silencioso — murmurou Virgínia ao fim de uma longa pausa.
— Se você escutasse o meu coração, ouviria como ele não cessa de a louvar.
— Pois olhe que nada oiço — gracejou ela, travessa.
— É porque há muito barulho aqui— replicou Dan no mesmo tom—. Se você quisesse...
— O quê?
A pergunta foi apenas um suspiro, e encorajado por ele, o jovem foi levando o seu par para as portas abertas de par em par que davam para o terraço e para o jardim.
—Saímos um pouco? —propôs com o coração pulsando aceleradamente e excitado por um tremor que sentia percorrer todo o seu corpo.
Não esperou pelo consentimento da encantadora californiana, e girando sempre levou-a até ao pé da ampla escadaria que descia do terraço para o jardim. A música chegava agora tenuemente até eles. Sobre as suas cabeças, miríades de estrelas cintilavam com maravilhosa limpidez que ia esmorecendo até desaparecer no alvo luminoso da lua, debruçada do céu por cima dos obscuros píncaros da Serra Nevada. A noite estava maravilhosamente tranquila e formosa, evolando-se no meio daquela quietude um suave perfume a rosas e cravos.
Em silêncio aceitou a mão que ela lhe estendia e desceram até ao jardim.

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