sábado, 8 de setembro de 2018

CLF026.04 Com a melhor arma se mata

Dan e Andrés caminhavam lentamente por entre a multidão, utilizando os cotovelos para abrir caminho, mas o populacho que havia na praça era tal que avançavam fazendo muito poucos progressos.
Era ali que se realizava o mercado e as padiolas dos vendedores cobriam quase todo o espaço disponível. Mestiças de ancas ondulantes e amplos cestos à cabeça vendiam doces e frutas. Os aguadeiros, com o seu cântaro ao peito e o outro às costas, cruzavam-se com os carvoeiros que seguiam com os seus burros carregados de sacos.
— Escuta, Andrés — disse Dan por fim —. Espero que te não pareça mal, mas hoje o regionalismo é coisa que não me interessa muito. Pelo menos não o suficiente para suportar estes apertos.
— Podíamos muito bem descansar — assentiu o californiano.
Afastaram-se da praça em direção à casa de Andrés. Caminhavam sem falar, um tanto cansados porque o passeio tinha-se prolongado, quando de repente Dan se deteve perante um edifício que, pelo aspeto, era um negócio de prestamista.
— Que é? — perguntou Montalvo.
—É que... Ouve, Andrés. Agora me lembro de que tenho de tratar de um assunto muito importante, e se não vês inconveniente ir-me-ei juntar contigo mais tarde.
O rapaz olhou-o entre desconfiado e Interrogante, mas ao voltar-se deu de cara com o letreiro, e era impossível que este lhe passasse inadvertido.
—Ouve, Dan, se precisas de dinheiro eu posso...
O inglês moveu a cabeça sorridente.
— Muito agradecido — disse.
O esverdeado mas simpático rosto do californiano anuviou-se.
— Creio... — começou a dizer.
— Não crês nada. Tenho de fazer isto é uma asneira aborrecermo-nos.
Andrés inclinou-se rigidamente.
— Encontrar-me-ás em minha casa — disse.
E voltando-se caminhou rua acima sem voltar a cabeça. Winter encolheu os ombros filosoficamente, e depois de seguir um momento com o olhar o seu amigo, entrou na casa de penhores.
Dentro havia um pequeno mostrador com vitrina, na qual se expunham anéis, alfinetes, colares e mil objetos mais. Em cabides, pendurados pelas paredes, pendiam roupas usadas, espadas, pistolas, etc.
O prestamista era um homem alto, magro e curvado, de profundos traços semíticos, encafuado num coçado guarda-pó, debaixo do qual apareciam a partir do calção umas esqueléticas pernas nuas.
—Bons dias — cumprimentou com voz melíflua, olhando para o cliente por cima dos seus grossos óculos.
—Vejo, pelo letreiro, que se dedica à compra e venda de joias, entre outras coisa — disse Dan sem mais preâmbulos.
—O senhor deseja vender alguma coisa?
—Sim.
—O negócio está cada vez pior, meu caro senhor. Esta é que é a verdade. Toda a gente vende e ninguém quer comprar.
— Não vale a pena sangrar-se em vida. Se não lhe interessa vou a outro lado — ripostou o jovem secamente.
—Vejamos, vejamos. Uma pessoa também pode falar.
Winter tirou o alfinete do bolso do casaco, depondo-o sobre o vidro do mostrador. O usurário pestanejou por um instante, mas no mesmo momento ergueu o olhar para o jovem, como se mal tivesse fixado a vista na joia que refulgia sobre o vidro.
—Quando pede por ele? —perguntou.
—Prefiro que seja o senhor a oferecer.
Então o judeu foi buscar uma lupa de relojoeiro, e examinou cuidadosamente a pedra.
— Não é má — concedeu com ar indulgente.
—Quanto?
— Duzentos dólares.
—Já vejo que o senhor não a quer comprar. Passe-ma para cá que eu vou a outro lado.
—Espere, talvez eu possa subir um pouco. Mas afirmo-lhe...
— Não se canse, não perca tempo. Devolva-me a pedra que tenho mais que fazer.
—O senhor é um jovem muito impetuoso, e não quero de maneira nenhuma que se vá embora aborrecido comigo — disse o magro usurário sem largar a joia, acto que não parecia, de maneira nenhuma, disposto a fazer—. Dou-lhe quatrocentos.
Dan arrebatou-lhe o alfinete com um repelão, e dando meia volta dirigiu-se para a porta.
— Oitocentos! — gritou o prestamista estirando-se sobre o balcão com as mãos apoiadas nele.
O jovem voltou-se no limiar da porta,
—Mil e seiscentos ou nada —disse perentoriamente.
— Por Jeová, é muito!
—É pegar ou largar.
—O senhor quer arruinar-me. A pedra é boa, mas quem sabe quando conseguirei vendê-la e...
—Dar-lhe-ão com facilidade dez mil ele, e vale mais.
— Mil e duzentos.
— Já disse é a minha última palavra.
—Está bem. Dou-lhe mil e quinhentos. E é puxar já pelo dinheiro.
Dan não esperava obter tanto, e achou por bem que por cem dólares não valia a pena correr o risco de malograr a transação.
—É seu — assentiu voltando a entrar e depositando o alfinete nas mãos que o outro lhe estendia tremendo de cobiça.
O prestamista voltou-se, desaparecendo por uma porta ao fundo, mas não tardou a voltar com as mãos cheias de notas do Banco. Winter verificou, contando rapidamente, que, de facto estavam ali mil e quinhentos dólares, e saiu da casa de penhores.
A princípio pensou dirigir-se imediatamente em cata de Andrés Montalvo, mas depois decidiu que era mais conveniente esperar algum tempo ainda para que se lhe dissipasse por completo a má disposição.
Durante o seu passeio daquela manhã pela cidade, em companhia do californiano, este tinha-lhe mostrado alguns dos armazéns onde podia adquirir-se de tudo, e como tinha de fazer algumas compras, encaminhou-se para lá diretamente;
Eram grandes barracões, em alguns dos quais nem sequer estavam postas as prateleiras, de modo que as mercadorias apareciam encostadas às paredes em descuidada desordem.
Havia arreios, ferramentas, viveres, mochilas, roupas e armas, lanternas e inclusivamente este ou aquele móvel tosco. O elegante aspeto do jovem atraiu imediatamente a atenção do dono do primeiro armazém onde entrou. Era um indivíduo gordo e calvo, todo sorrisos, de corpo rechonchudo e cara magra que se mantinha continuamente suarenta.
— Bons-dias, senhor. Em que posso servi-lo?
—Bons dias. Preciso de três camisolas de lã e alguns pares de peúgas, umas calças de tecido forte, botas «cow-boy», esporas, chapéu «Stetson» e um bom revólver com o respetivo cinturão. Pode arranjar-me tudo isto?
— Creio que sim! Aqui encontrará tudo quanto necessite.
— Pois então vamos lá ver isso.
Dan não tinha grandes pretensões e levou-lhe pouco tempo a escolher todas as coisas que precisava para as suas futuras atividades como fazendeiro. Por detrás de um tabique provou a roupa, ficando tão satisfeito que decidiu sair dali já com ela vestida. No dia anterior tinha tido alguns aborrecimentos por causa das suas vestes europeias, e resolveu portanto guardá-las para alguma ocasião mais apropriada.
— Faça-me um embrulho com tudo isto — disse ao comerciante quando este acudiu ao seu chamamento.
— Fica-lhe mesmo bem — disse o homem ao vê-lo.
Na verdade, a atlética figura do jovem realçava garbosamente com o seu flamante trajo vaqueiro.
—Muito obrigado. Vamos agora ver o revólver.
— Creio que tenho precisamente o que ao senhor lhe convém.
— Não deve ser difícil. Apenas quero uma boa arma.
—É que acabo de receber o último modelo da fábrica. Quer vê-lo? É uma arma soberba de seis tiros e de extraordinária precisão.
—Vejamo-la então.
Tratava-se de excelente pistola «Colt» de grande calibre, cano comprido decorado e cabo nacarado com incrustações de prata. Uma arma maravilhosa e de tiro de grande alcance. Escolheu depois um cinturão mexicano, de couro decorado, e adquiriu, além disso, duas caixas de balas.
Ao pôr o cinturão, sentiu-se um autêntico corredor das pradarias. Muito satisfeito pagou a conta, pegou no pacote que lhe tinham, entretanto, arranjado, e abandonou o local caminhando numa postura rígida e forçada pois estranhava os altos tacões das botas e o inusitado peso do grande revólver que lhe pendia da cintura.
A poucos passos andados já se tinha dissipado bastante a sua euforia. O facto de não estar habituado àquele trajo fazia-o sentir a incómoda sensação de que toda a gente olhava para ele.
—E esta! — resmungou detendo-se um momento para colocar mais airosamente o largo «Stetson» e ajeitar para trás o revólver que parecia bailar pesadamente, pendente da cintura —. Não tenho outro remédio se não acostumar-me.
Após aquela reflexão dispunha-se a retomar o seu caminho, quando um grito e o precipitado som de uns passos que se aproximavam a correr, o fizeram olhar para o outro lado da rua, vendo então um homem corpulento que corria pela alto passeio empunhando um pesado revólver.
Com um estremecimento reconheceu no indivíduo que corria, o louro mineiro irlandês, com que já tivera um querela na tarde anterior. Ao voltar - se, o homem deteve - se erguendo o revólver. Ia disparar!
Dan observou toda a cena no cúmulo do assombro ao mesmo tempo que se encolhia instintivamente abrigando-se atrás do pacote que sustinha com o braço esquerdo, e levava a mão direita à culatra do seu belo revólver. Uma fumarada branca brotou da arma que o outro empunhava ao mesmo tempo que estalava uma detonação e simultaneamente se ouvia um ruído seco.
Sem saber o que fazia, guiado unicamente por um, movimento puramente defensivo, Winter apontou revólver e fez fogo. O homem do outro lado da rua teve um estremeci mento no momento em que ia disparar novamente rodou de modo estranho e dando uns passos foi estatelar-se pesadamente no solo, onde ainda se contorce por instantes antes de ficar para sempre imóvel.
Com a arma erguida, fumegante, Dan ficou com que petrificado, olhando incrédulo para o corpanzil que jazia estirado e quedo no outro lado da rua. Com um gesto brusco reagiu de repente, e sentindo uma intensa angústia atravessou a rua a correr par se ajoelhou junto do ferido abandonando o embrulho o revólver no passeio.
—Oiça, que tem? Está ferido? — perguntou a mesmo tempo que se aproximava do mineiro com a mãos trementes.
Mas o homem nada respondeu. Não podia fazê-lo. Estava morto! Sem vida, o corpo rodou até ficar de face para cima olhando o céu, os olhos fixos, vítreos, revelaram a Winter a nua e crua realidade. Tinha morto um homem! O jovem endireitou-se com os braços flácidos pendentes ao longo do corpo, assaltando-o uma vertigem que esteve prestes a fazê-lo vomitar.
Um velho mineiro aproximou-se então, e depois de lançar um rápido olhar ao cadáver, soltou uma cuspidela para a rua por entre dentes.
—Está mais morto do que o meu avô —disse calmamente.
Dan olhou-o, mais branco do que a cal da parede.
— Ele... —começou. E deteve-se sem saber como continuar.
—Sim, rapaz, não te rales. Teve o destino que merecia, mas, seja como for, nesta porca cidade ninguém te pedirá contas por isto. É o pão nosso de cada dia.
— Eu não queria matá-lo.
—Pois não. Mas bem frio e teso está ele.
O jovem deixou cair a cabeça abatido.
— Vamos. O que tu precisas é de um bom trago, e creio que me podes também pagar um a mim.
Como um sonâmbulo, Winter começou a caminhar sem saber para onde ia nem porquê.
—Um momento, rapazinho, que deixas aí as tuas coisas.
O velho teve de lhe meter o revólver na funda e o embrulho debaixo do braço. E quando quis levá-lo pela rua abaixo, Dan reagiu voltando-se para onde jazia o cadáver.
—Mas não podemos deixá-lo aqui! — protestou.
—Tencionas levá-lo às costas para tua casa?
—Mas é preciso tomar conta dele para lhe dar sepultura. Dizer à família. Eu sei lá!
— Olha, rapaz. Se este defunto tinha família, deve ser alguma «benche» (') da velha Irlanda. Quanto ao resto a carcaça pertence aos abutres, e também entre os seres humanos há passarões dessa espécie.
O acontecimento não podia ter causado grande perturbação na rua. Ao rebentarem as detonações, as pessoas apressaram-se a procurar refúgio nos recantos e nas portas que estavam mais próximos, mas uma vez cessado o tiroteio estabeleceu-se rapidamente a normalidade. Apenas uns poucos e mórbidos curiosos se aproximaram para deitar uma olhadela ao morto. O velho pesquisador de ouro levou Winter sem que' ninguém procurasse impedi-lo.
Guiado pelo seu decidido protetor, o jovem encontrou-se perante o reluzente balcão de um bar, e assim que o serviram engoliu de um trago o «whisky», de que sentia verdadeira falta. Depois, sentiu-se melhor e mais reconfortado, embora perdurasse a sensação de náusea.
— Boa pinga! — ponderou o velho dando estalidos com a língua de satisfação —. És capaz de me pagares outro copo?
Winter disse que sim com a cabeça.
— És um excelente rapaz, embora demasiado terno. Como te chamas?
— Dan Winter.
—Recém-chegado da loura Albion, não é isso?
— Sim.
— A mim chamam-me Wart. Por causa disto, vês? — disse apontando para uma enorme «batata» que lhe deformava o adunco nariz —. E há tanto tempo que até já esqueci o meu verdadeiro nome — riu sardonicamente e com malícia.
Entretanto tinham chamado o criado, que voltou a encher os copos, e Dan puxou pelo maço de notas para pagar. O olhar agudo do velho descobriu o que ele tencionava fazer mal tinha ainda tirado a mão do bolso, e estendendo velozmente a ossuda manápula obrigou-o a esconder novamente o dinheiro.
— Ouve, Dan. És um autêntico ingénuo. Pouco menos de metade da população de São Francisco seria capaz de matar a sua própria mãe por esse dinheiro. Compenetra-te disto e mostra-o o menos possível. Pelo rabo sardento de um coiote! Tens aí uma autêntica fortuna.
Olhou à sua volta apreensivo e sentiu-se mais tranquilo porque ao que parecia ninguém tinha dado pela manobra.
— Não tens ai um dólar trocado?
— Sim — disse Dan. Pois ao fazer as suas compras tinha trocado uma nota grande.
— Então deita-o para cima do balcão e vamo-nos embora daqui.
Winter agiu de acordo com as instruções que o velho lhe dava, e seguiu atrás do veterano para a rua.
— Onde moras? Vou levar-te a tua casa porque pelos vistos não se te pode deixar só.
O jovem deu a direção de Andrés Montalvo.
— Escuta, Dan—principiou a dizer o velho à medida que começavam a andar —. Creio que te fiz um favor, mas não se trata de mo pagares. Proponho-te o melhor negócio de toda a tua vida.
O jovem começara a recompor-se a pouco e pouco da comoção, e olhou para o velho Wart com alguma suspicácia.
— De que se trata? — perguntou.
— Sou um excelente pesquisador, sabes? Não um desses loucos que se lançam para a montanha sem nunca terem visto na sua vida uma peneira.
— E depois?
— Eu sei onde há ouro.
— Mas precisa de dinheiro?
— Não tenho um único centavo, rapaz, e estou aqui enterrado enquanto os mais novos se fazem ricos.
— De quanto precisa?
—Se me deres cem dólares, o negócio será a meias
— Está bem, Wart. Se encontrar ouro terá sido uma excelente inversão de capital, mas se você não for mais do que um intrujão, ficaria muito aborrecido por lhe ficar a dever um favor. Portanto aqui os tem.
O velho embolsou tranquilamente as notas.
— Quando nos voltarmos a ver será para te dizer que és rico — afirmou convencido— . Olha, é ali onde moras.
Winter olhou para o ponto que o velho lhe indicava reconhecendo a casa de Andrés, mas o som de uns passos rápidos que se afastavam fê-lo voltar a cabeça vendo então como o velho Wart se afastava rua abaixo.
 

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