quinta-feira, 6 de setembro de 2018

CLF026.02 Encontro com um californiano em ceroulas

A noite caiu rapidamente e Dan começou a preocupar-se com a questão do alojamento, pelo que iniciou algumas pesquisas nesse sentido.
Por causa do que se tinha passado, e em vista da má catadura de quantos povoavam «Barbary Coast», tinha ocultado o seu rico alfinete de gravata, a fim de evitar outros percalços.
As suas investigações levaram-no a descobrir uns amplos e desproporcionados barracões, através de cujas frinchas o vento assobiava, mas que recebiam o pomposo nome de hotéis. Ali não existiam móveis, nem sequer havia uma simples tarimba.
Os emigrantes, por uma módica quantia, podiam envolver-se em suas mantas e dormir sobre o chão térreo numa sala enorme e comum que cheirava a suor, a tabaco é a sebo.
O jovem não tinha outro capital além de uma moeda de ouro de vinte dólares, que lhe trocara o imediato do barco pelo seu dinheiro inglês, e tinha decidido poupá-lo o mais possível, mas apesar de os seus bons desejos de economia não estava disposto a passar a noite num desses tais «hotéis». Assim, pois, decidiu experimentar uma taberna e, se não encontrasse nada de mais conveniente, encaminhar-se-ia para o centro da cidade, resignando-se embora, a que o depenassem.
Primeiro, dirigiu-se para um estabelecimento chamado «The Retreat», e como estava cansado, depois do seu longo deambular pela parte baixa da cidade, sentou-se a uma das mesas. O seu elegante aspeto chamara indubitavelmente a atenção, e um criado acudiu pressuroso, farejando talvez um bom negócio.
— Tem quartos? — perguntou-lhe Dan «in continenti».
O homem sacudiu a cabeça.
—Não, «mister» —disse —. Podemos arranjar-lhe uma boa cama, mas não há quartos.
— E quanto custa?...
— Barato, «mister»,
—Muito bem, mas quanto custa? Os bons fatos não enchem uma bolsa.
—Dez centavos.
—Está bem. Depois irei vê-la, mas agora traga-me um «whisky» duplo.
O criado afastou-se e Dan entreteve-se a observar o jogo. Jogava-se à roleta, ao bacará e ao «pocker»: Não havia probabilidade alguma de ganhar. As rodas estavam fixas e no bacará os lugares dos banqueiros pareciam ter qualquer mecanismo que podia mudar à vontade a ordem por que apareciam as cartas. Quanto ao «pocker»...
Enquanto estava a observar, entrou um indivíduo que vestia um casaco muito justo, e que imediatamente interveio numa partida de «pocker».
Wlnter mal pousou nele o olhar e não voltou a prestar-lhe atenção, até que umas vozes altercadas o alarmaram.
— Fez batota! — gritara alguém.
Tão injuriosa afirmação fez com que Dan se voltasse vivamente naquela direção. Estava um homem de pé e o do casaco olhava-o furiosamente, mordendo um longo e negro charuto.
—Você é um mentiroso sujo! — afirmou fria e perentoriamente o jogador.
A seguir os acontecimentos precipitaram-se com uma rapidez impressionante. Com um rugido, o sujeito que estava de pé levou rapidamente a mão ao revólver que pendia do cinto, mas não o fez com a devida prontidão, porque o do casaco puxou do peito por uma pequena «Derringer», e tombou o outro com um tiro.
Dan abriu a boca assombrado perante semelhante selvajaria, mas ainda soava aos seus ouvidos o estrondo da primeira detonação, quando se ouviu uma outra muito mais forte.
O do casaco ergueu-se soltando um gemido, rodou sobre si mesmo embaraçando-se na sua própria cadeira, e foi tombar aparatosamente no solo, onde se estatelou com um baque surdo. Um dos tipos que jogava à mesma mesa ergueu-se. Empunhava na mão direita um comprido revólver azul, ainda fumegante.
—O maldito puxara por uma carta da manga —disse.
E embolsou tranquilamente o dinheiro que se via amontoado no lugar onde estivera sentado o da «Derringer».
Winter fechou a boca e verificou que necessitava urgentemente de um bom trago, pelo que ergueu e levou à boca o copo do «whisky» que, entretanto, lhe tinha trazido o criado, mas quando o tinha quase junto aos lábios recordou-se da advertência que lhe tinham feito. Então, provou o líquido com precaução, achando-lhe um sabor estranhamente amargo. Como ninguém lhe prestava a menor atenção, voltou a pousar o copo sobre a mesa suja, deixou a conta por pagar e saiu para a rua.
Já conhecia bastante acerca de «Barbary Coast», e afastou-se diretamente rua acima, decidido a abandonar de uma vez para sempre a zona costeira, onde por tão pouco matavam um homem, sem a menor advertência nem discussão prévia.
Não havia uma única luz, e depois de se meter por algumas ruas todas elas igualmente estreitas e tortuosas, além de escuras, deteve-se indeciso ao chegar a uma esquina.
Aqueles lugares encontravam-se desertos e sem qualquer outra iluminação além das cintilantes estrelas, pelo que Dan meteu a mão no bolsa acariciando penosamente a nacarada culatra da sua pistola. Até então não tinha tido muita confiança naquele pequeno brinquedo prateado, mas depois de ver matar um homem com uma arma similar, sentiu-se muito mais tranquilo para o caso de um encontro desagradável.
— Diabos me levem se voltar a meter-me nesse antro de bandidos — responsou para consigo.
Mal acabara de fazer aquela categórica, afirmação, quando respondeu uma voz aflita o chamou em espanhol.
—Pst! Oh!
Dan estremeceu alarmado, olhando para o lugar de onde lhe chegara o som.
— Socorro! — insistiu a voz.
—Que há! Que aconteceu? —perguntou surpreendido.
—Por favor...
—Onde é que o senhor está?
— Aqui, neste portão.
Winter esforçou - se por apresentar as trevas olhando para o esforço negro de onde lhe chegava o pedido de socorro, e viu destacar-se debilmente uma mancha clara, a meia altura, que o fez compreender a situação, desvanecendo as suas suspeitas e arrancando-lhe uma alegre e forte gargalhada.
— Fui roubado — exclamou a voz, agora desnecessariamente.
Dan conteve o riso conforme pôde.
— Quanto a isso não resta a menor dúvida — disse —. Creio que não terá saído distraidamente para a rua sem as calças.
— Evidentemente que não — protestou o outro de modo irritado.
—É uma peça de vestuário muito… necessária —concordou o jovem.
E não podendo conter o riso por mais tempo, voltou a rir até que o rosto se lhe humedeceu de lágrimas.
—O senhor poderá achar isto muito divertido, mas afirmo-lhe que a minha situação não é nada cómoda. Se o chamei foi para lhe pedir que me ajudasse.
—Não se irrite, homem. Reconheço que não me portei corretamente, mas é que a coisa tem a sua graça, muito embora a si lhe seja difícil encontrar o lado cómico. Mas enfim, pode muito bem sair de onde se encontra sem grandes preocupações, porque a estas horas e neste lugar não é fácil encontrar nenhuma dama que se possa escandalizar.
O desconhecido pareceu mostrar-se um tanto obstinado em seguir tal conselho, mas por fim acabou por sair, e embora não houvesse mais luz do que a que proporcionavam as estrelas, Dan pôde apreciar de que se tratava de um homem jovem, e que além disso estava tremendo de frio sem qualquer outro resguardo que não fosse a roupa interior de seda.
—E agora será melhor que nos ocupemos das suas calças.
— Sem dúvida — aprovou, instantaneamente o outro.
—Todavia, a dificuldade está em saber como conseguiremos arranjar tal peça de vestuário que são duma importância capital, pois muito receio que não será voluntariamente.
Winter procurava manter uma aparência o mais séria possível, mas na realidade tinha de fazer grandes esforços para não desatar de novo a rir.
— Talvez pudesse ir ou mandar recado a minha casa — propôs o californiano.
— Isso seria indubitavelmente o mais simples e rápido, mas acontece a que não tenho a quem lá mandar e nem saberia como encontrar a sua morada.
— Chamo-me Andrés Montalvo e vivo na rua capitão Portolá, no número sete — disse o californiano confundindo o sentido das suas palavras.
—O meu nome é Winter. Daniel Winter. Mas creio que você não percebeu.
—Winter? Mas então...! Você não é espanhol!
— Sou inglês.
—Mas fala a nossa língua como se tivesse sido criado em Madrid.
— Aprendi-a lá.
— Na verdade não podia haver outra explicação.
—Meu pai combateu contra Napoleão quando os espanhóis lutaram pela independência, e embora fosse um dos oficiais mais jovens às ordens de Wellington, manteve-se ao seu serviço durante toda a campanha e fez muito boas amizades que ainda hoje conserva. Tal é a razão de termos passado tão grandes temporadas na maravilhosa Espanha.
—Invejo-o.
— Pois sim, depois teremos tempo de sobra de voltar a falar nisso. O mais importante agora é a questão das calças.
—Então não conhece a cidade?
— Não, é esse o problema.
—De qualquer modo, sempre há-de haver alguém que lhe possa indicar a minha morada...
—Sim, de facto. Mas, haverá ainda alguém levantado a estas horas? Entre andar de um lado para o outro, procurar alojamento e o tempo transcorrido no abara, passava já, da meia-noite.
— Na verdade, a estas horas... — reconheceu Montalvo.
—E abrirão, às tantas da madrugada, a porta a um desconhecido? E se o fizerem, prestarão crédito à «história» de que você ficou sem as calças?
—Vistas as coisas assim...
— Porque não vem você comigo?
— Nesta figura! — exclamou o rapaz horrorizado.
—E por que não? Deve ser muito difícil encontrar alguém que o veja.
—Valha-me Deus! Isso não pode ser.
— No entanto, parece-me o mais simples e acertado.
— Teria de passar pelo centro da cidade, e há locais a esta hora bastante frequentados. Não pode ser. Se, alguém me visse neste estado amanhã toda a cidade, riria de mim.
Dan gargalhou de boa vontade.
— Na verdade as suas brancas ceroulas causariam sensação.
—Está bem. Ria-se, ria-se. Isso dar-lhe-á, pelo menos, uma ideia do que aconteceria entre os meus amigos.
— Bom, só temos dois caminhos a seguir.
— Quais são eles?
—Primeiro, roubar as calças.
—Pelo amor de Deus!...
— Nesse caso... conhece por aqui próxima algum, tugúrio onde as pessoas se embriaguem e joguem?
— Conheço!
—Estará aberto a estas horas?
— Está. —Pois então venha dai.
—Mas... o que é que tenciona fazer?
— Espero encontrar algum tipo suficiente embriagado e que esteja na disposição de jogar as calças.
— Não pode ser...
— Temos de a tentar.
—De qualquer modo há-de permitir que o indemnize por qualquer dano que possa ocasionar-lhe este assunto.
— De acordo.
—Então ser-lhe-á fácil encontrar...
— Escuta, Andrés — interrompeu Dan, já cansado de tanto circunlóquio—. Sem dúvida que me deste a entender que seria fácil encontrar uma taberna sem grande dificuldade, pois abundam como a peste nesta maldita cidade, mas às escuras e neste maldito labirinto de ruelas, parece-me que nunca mais voltaria a encontrar-te, se não ficares à minha espera em frente da mesma porta. E agora depois do que te disse faz o que quiseres. Todo aquele discurso pareceu acabar com as indecisões do jovem californiano, que se pôs a andar, avançando nas pontas dos pés e cautelosamente cosido com o muro.
Dan foi atrás dele esforçando-se por conter o riso, pois a figura e o modo de se comportar do seu guia eram verdadeiramente cómicos, mas, não obstante todos os seus esforços, não conseguiu conter de vez em quando uns rápidos estremecimentos. Andrés dirigiu o inglês em procura da taberna mais próxima, e ao dobrar a primeira esquina descobriram uma luz amarela que se projetava das janelas baixas de um edifício de dois andares.
— Aqui está uma — disse o californiano procurando proteção no vão escuro de uma porta.
 

Sem comentários:

Enviar um comentário