segunda-feira, 1 de maio de 2023

CLF054.07 O beijo do espectro

Quando entraram na rua principal, viram-na cheia de gente. E na altura todos os olhares se fixaram nos dois. Mas foi significativo o facto de as pessoas se irem encostando à parede, no meio de um silêncio sepulcral, que nas suas costas se tomava num murmúrio de conversações.

Nelson caminhava erguido, sorridente, alerta. A seu lado, Dixie, caminhava de rosto erguido e um olhar desafiante. Para ela a situação tinha um sabor diferente...

Chegaram ao hotel sem novidade. Havia vários homens no vestíbulo que deixaram de conversar quando eles entraram. O hoteleiro, nervoso, respondeu ao seu cumprimento com um grunhido. E ao estender-lhe a chave, respondeu, sem olhar de frente para Nelson:

— Oiça, Nelson: não o leve a mal, mas... gostaria que procurassem outro alojamento.

Sem deixar de sorrir, Rich respondeu-lhe suavemente:

— Não creio que haja na cidade outro mais indecente do que este, amigo. Mas além de me agradar, a sua cara também me é simpática. De modo que não faço caso do que me disse. E verá que acabará por agradecer-me. Vamos, Dixie.

Um dos presentes, um velho de barbas descuidadas e roupas quase tão sujas como velhas, adiantou-se e interpelou-o:

— Chamo-me Joe Barnay, senhor Nelson. Você lembra-se de mim?

— Claro que sim, Barnay. Tem uma cara que não se esquece facilmente.

— Hum! Mas o caso é que você já estava morto... se é verdade que era você.

— Por acaso quando pregou a tampa do meu caixão não se fixou na minha cara?

O velho engoliu em seco com esforço e afastou-se para trás, pigarreando:

— Pois... foi o que fiz...

— Alegro-me. Assim poderá ajudar o «sheriff» a sair de dúvidas. Vamos, Dixie.

Já se encontravam em cima quando a jovem perguntou, curiosa:

— Conhecia-o de verdade? Parece-me que o assustou...

— Com certeza. Esperava apanhar-me em falso. Mas notei que cheirava fortemente a cola de carpinteiro e tinha serradura e uma pequena ferramenta entre as roupas. Compreendi por isso que era um carpinteiro. E ao referir-se a que só tinha visto Windy morto, acendeu-se uma luz no meu cérebro.

— Ora! Quase que me tinha feito duvidar de mim...

— Ou se tem de ser rápido, ou se está perdido. Não é só com o revólver, não o esqueças. Há muitas maneiras de dominar uma situação. Anda, vai vestir-te. Quero ver que tal te fica esse vestido antes de o ir pagar.

Ela baixou o olhar e não respondeu, metendo-se seguidamente no seu quarto. Mas agora Nelson não ouviu o ruído da chave na porta. E sorriu...

Estava deitado na cama fumando um cigarro, quando ouviu um tímido bater na porta. A sua dextra caiu sobre o revólver que estava em cima de uma cadeira, à mão.

— Entre.

A porta abriu-se, dando passagem a Dixie, que se deteve ao ver a arma apontada. Por seu lado, Nelson ficou admirado...

— Entra e fecha — disse, pousando novamente o revólver e levantando-se —. C'os diabos! Fiquei sem alento. É possível que sejas tu a mesma Dixie Winters? Aproxima-te.

Ela estava corada até à raiz dos cabelos. O vestido estava ligeiramente curto e também um pouco apertado de busto; mas, no conjunto, muito melhor do que o próprio Nelson imaginara. Tinha-se penteado com imenso bom gosto. E estava francamente bonita. Tão bonita...

— Como uma rosa fresca. És uma verdadeira surpresa, Dixie. Estou maravilhado.

— Aperta-me um pouco. E sinto-me muito embaraçado. Tinha perdido o costume de usar saias...

— Depressa te acostumarás. Bem, este facto tem de ser celebrado. Queres pegar-me no braço? Desceremos e iremos jantar. E toda a gente vai esquecer este espectro e felicitar-me pela minha sorte.

—Não me agrada que se chame espectro. Dá-me não sei o quê...

— Está bem, Dixie. Quando estivermos sós, portar-me-ei como deve ser. Vamos?

Já tinha posto o cinto, guardando o revólver na pistoleira. Ofereceu o braço à jovem num gesto galante e ela tomou aquele braço pela primeira vez como uma senhora, sentindo uma inexperiente emoção que lhe avivou a cor das faces.

A sala de jantar estava praticamente cheia de gente. E o rumor das conversas foi-se apagando pouco a pouco assim que eles chegaram, enquanto trinta pares de olhos se fixavam neles. Eles, por seu lado, avançaram rapidamente, tranquilos, até junto de umas das poucas mesas vagas. Nelson colocou-se de maneira a ficar virado para a porta. O criado aproximou-se, receoso.

— Queiram dizer o que desejam...

— Diz tu o que nos podes servir.

— Pois...

Enumerou uma série de pratos com voz incerta. Nelson escolheu três pratos especiais e pediu uma garrafa de vinho.

— Toda esta gente parece que se juntou para ver como se porta um ressuscitado — comentou a meia voz —. Perdoa se fizer um pouco de teatro. Um momento, criado! Esquecia-me de algo.

O criado deteve-se e voltou a cabeça.

— Que aconteceu?

— Diz ao cozinheiro que não ponha ossos na carne. Desde que esse McCoy me meteu uma bala, não posso digerir muito bem. Isso é outra coisa que tenho de lhe cobrar.

Soaram murmúrios, enquanto o criado engolia em seco. De repente, de uma das mesas levantou-se um tipo alto, espadaúdo, de feições duras, que arrastou a cadeira para trás com força, e dispôs-se a aproximar-se.

— Eu ficaria quieto comendo o meu jantar.

A voz de Nelson soou alta e clara, fazendo com que todos se fixassem no outro homem. E os aguçados ouvidos de Dixie, acostumados a perceber os rumores da selva e da pradaria, captaram um nome: Gaskell. Rápida, transmitiu-o a Nelson em voz baixa, sem quase mover os lábios.

— Chama-se Gaskell...

O que assim se chamava deteve o seu movimento. O outro que jantava com ele estava inclinado para a frente, mas sem levantar-se.

— E porque teria de o fazer? — inquiriu o primeiro, com voz dura.

— Porque te convém, Gaskell. Provocar os mortos, traz morte, não o sabias?

Mais do que outra coisa, o que pareceu afetar Gaskell, para ele incrível, era que Nelson soubesse o seu nome. Engoliu a saliva, molhou os lábios com a língua e pareceu encolher-se.

— Quem te disse o meu nome? — grunhiu, nervoso.

— Sei o teu nome, de quem és amigo e também as tuas intenções. Mas se o que procuras é a morte, podes esperar que eu jante primeiro. Para morrer, sobeja sempre tempo, diz-to quem o sabe.

O ar podia cortar-se com uma faca ali dentro. E mais do que um dos presentes suava, ainda que certamente não estivesse muito calor. O próprio Gaskell passou maquinalmente a mão pelos olhos. A seguir acrescentou:

— Maldito sejas, a mim não me assustas, Nelson! Tu estás tão morto como eu...

— O mesmo disse um outro tipo ao meio-dia. E resultou certo.

Alguém respirou fortemente. Outros dois homens se levantaram. E um deles disse, com voz nervosa:

— Para mim é suficiente, homens. Estou certo de que é o mesmo que McCoy matou diante dos meus olhos. E necessito tomar ar fresco...

— O mesmo digo eu. Até se me revolta o estômago.

Ambos se encaminharam para a porta. Outros três fizeram o mesmo. O companheiro de Gaskell insistiu, roucamente:

— Senta-te, Jeb. Uma coisa é lutar com vivos e outra com mortos.

— É um homem de carne e osso.

— Talvez. Mas já ouviste o que esses disseram. E Molly jura e perjura que é o próprio Nelson...

Contrariado, Gaskell sentou-se. Com isso, aliviou-se um pouco mais a tensão que pairava no ambiente. No entanto, não desaparecera completamente. Ninguém falava, quase ninguém comia. Todos olhavam o par formado por Nelson e Dixie.

A rapariga murmurou, após lhes terem servido o primeiro prato:

— Sinto-me como se estivesse em cima dum barril de pólvora prestes a explodir...

— E eu. Mas estão todos com medo ou então desconcertados. Anda, come. E não demonstres qualquer preocupação.

— Não vou poder...

— Faz por isso. Fá-lo de maneira como se estivesses também amedrontada e quase dominada por mim.

— Não sei...

— Fá-lo.

Tirando partido da sua própria apreensão, Dixie comportou-se de maneira bastante convincente. Acabaram de jantar sem mais incidentes. A seguir abandonaram a sala de jantar, deixando atrás uma série de comentários. Já em cima, ela perguntou:

— Que pensa fazer agora?

— Meter-me na boca do lobo. Vou ao «Francy Sáloon» para conhecer a rapariga por quem Windy e McCoy lutaram. Preciso reforçar o que se fez. McCoy tem de saber da minha chegada e vir procurar-me pela madrugada. Não é possível manter uma cidade em suspenso. E há muitos no estilo desse Gaskell, que só têm um temor supersticioso. Não quero lutar com um montão de «pistoleiros» e ser morto por acaso por qualquer deles, antes de ter cumprido a minha tarefa.

— Então não vá ao «Francy». Todas as pessoas já sabem da sua presença em Dodge. É desnecessário que o ressalte mais. Fique tranquilamente no seu quarto...

— Não, pequena. Eu sei como devo actuar. E não posso ficar quieto. Vai tu descansar e não te preocupes. Vou tranquilo e com as costas guardadas por um poderoso aliado: o medo...

A seguir, inesperadamente e antes de que ela pudesse imaginar as suas intenções, baixou-se e beijou-a nos lábios. Dixie ficou um momento aturdida, vacilando entre o impulso de responder agressivamente a uma estranha emoção que lhe prendeu os membros. Gaguejou, respirou profundamente...

— Porque... porque me beijou?

— Porque és bonita. Porque tens uns lábios maravilhosos. Se por acaso me demorar, pega nas minhas coisas e afasta-te quanto antes de Dodge. Vai para o Texas, ao condado de Prairie, e procura o rancho «Double Bar N». Aí encontrarás a minha mãe. Conta-lhe a minha história e a de Windy e diz-lhe que eu te mandei.

Ficaram uns instantes olhando-se nos olhos. A seguir...

— Espere que eu mude de roupa rapidamente. Vou consigo.

— Não, Dixie. Isso não. Tu ficas aqui. Se tudo correr bem, virás comigo para o Texas. E cantaremos em dueto pelo caminho, hem?

Deu-lhe um piparote no nariz, voltou-se e meteu-se no seu quarto. Um minuto depois voltava a sair. Levava consigo a guitarra. Olhou para a rapariga, mostrando-lhe um largo sorriso.

— Esta noite vou continuar a assustar os rudes habitantes de Dodge. Não me tomes por um homem sem escrúpulos. Sei que matei um ao meio-dia. Mas também me podem matar em qualquer momento. Por isso preciso de cantar.

Depois afastou-se. E quando a sua cabeça acabava de desparecer ao fundo da escada, chegaram aos ouvidos de Dixie os primeiros acordes que os seus dedos arrancavam da guitarra. Então, a rapariga murmurou com voz trémula:

— Deus do Céu, que não lhe aconteça nada! Eu já lhe quero muito... e sentir-me-ia muito só se ele morresse...

Toda a frieza, toda a tristeza acumulada durante longos anos de miséria e dura vida errante, tinham desaparecido num instante do coração de Dixie Winters. E com um só beijo...

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