terça-feira, 30 de maio de 2023

ARZ077.15 A chegada ao destino

Os quatro carroções pareciam outros tantos enormes cadáveres, quietos, imóveis, acariciados pelo sol. Era um espetáculo cheio de morte o que se apresentava aos quatro homens que se aproximavam a cavalo.

Paul ergueu a mão e todos se detiveram.

— Um trabalho limpo e sossegado. E com certeza de que os lucros serão bons...

Louis sabia que o comentário lhe era exclusivamente destinado. Porém, ficou indiferente. Os outros limpavam o suor do rosto. Um deles pegou num cantil, dos dois que levava presos à sela, e empapou o lenço, para refrescar melhor. Louis pensou no valor que teria aquela água nos lábios dos que morriam de sede.

— Ainda estarão vivos? — murmurou.

Foi um dos outros que lhe respondeu:

— Sim — disse Laghton. — A morte ainda demora muito tempo a chegar. O corpo humano é capaz de aguentar quatro dias ou cinco mais do que o limite que parece intransponível.

— Mas isso é o menos — acrescentou Newman. — Agora estão incapacitados de mexer-se e nem sequer têm forças para pegar num «Colt». Parecem coelhos mortos, verás...

Louis Bardon engoliu em seco. Aquelas palavras ditas com frieza provocaram-lhe uma indignação que a custo conseguia conter.

— Não se vê nada mexer. Nem os cavalos. Chegámos no momento oportuno — disse Paul.

— Sim.

— Para a frente!

Recomeçaram o caminho. À medida que se aproximavam, melhor distinguiam o que se passava.

Louis via tudo com perfeição quase absoluta. E as recordações enchiam-lhe a cabeça. Via as lonas ressequidas, as galeras imóveis, os animais convertidos em massas de carne derrubadas pela sede, as rodas meio afundadas na areia...

Recordava-se o ataque dos índios, o estratagema que empregaram para enganá-los, a brutal corrida que sustentaram durante milhas, até alcançarem o deserto...

Recordava o salto que dera, para salvar Mary... Aquela palavra esbofeteou-o. Procurou afastá-la do cérebro, mas não conseguiu.

Mary! Mary! Mary!

Fez um esforço e pensou nos demais. Um a um desfilaram diante da sua memória. O primeiro deles foi Patrick, o escocês barbudo e forte como um touro... Claudine, a francesa do Este, que fugia do seu obscuro passado... O seu amigo, o juiz Benton, «Cospe-Chumbo» Benton, conhecido pelo seu peculiar sentido da Lei e da Justiça... Susi Ilivitch, filha do homem que com as navalhas na mão não temia ninguém. Os desgraçados irmãos Huston, prisioneiros do seu terrível segredo...

Notou que as recordações o devolviam de novo a Mary, mas não pôde fugir-lhes. E a verdade é que nem sequer o tentou.

Lembrou-se da primeira vez que ela o ajudara, quando se encontrara ferido nas suas mãos... Lembrou-se do primeiro beijo... das muitas vezes que ela lhe servira uma chávena de café...

A figura da rapariga foi crescendo cada vez mais, até ocupar-lhe por completo o cérebro. A luta que sustentara consigo mesmo durante as últimas horas tornou-se mais intensa, à medida que se aproximava dos restos da caravana.

Sentia que qualquer coisa dentro de si o impelia a ajudar Mary e o resto dos colonos...

Porém o seu passado, o seu tenebroso passado, mantinha-o amarrado, impossibilitado de fazer fosse o que fosse, convertido em joguete nas mãos de seu irmão Paul. Distinguiram alguns corpos estendidos no solo, sobre os quais o sol caía sem piedade. Nada parecia já ter vida, pensou.

Paul, como se lhe adivinhasse os pensamentos, disse--lhe:

— Estou certo de que ainda não morreu nenhum deles. Demorarão um ou dois dias.

— Teria sido melhor chegar quando já ninguém restasse com vida — murmurou Louis.

— Para quê? Agora já não podem defender-se, estão convertidos em massas de carne. Além disso não podemos perder tempo. Quanto mais depressa acabarmos, melhor. Meteremos tudo o que nos interessa nos carros e partiremos.

— E eles?

— Ficarão aqui, até que o sol lhes seque as carnes e os ossos. É o preço da sua aventura... — disse Newman.

— Mas...

— Mas o quê?... Podes acabar a frase — interveio Laghton.

— Nada — murmurou Louis. — Não me interessa o que lhes aconteça.

— Assim já me agrada mais, irmãozinho. Doutro modo, receio que te arrependesses...

Estavam a menos de trinta jardas da caravana. Dois minutos depois, chegaram. Paul foi o primeiro a desmontar e a prender o cavalo à roda de um dos carros. Os outros três fizeram imediatamente o mesmo.

Louis suava, com uma intensidade que nunca julgara possível. Bem sabia que não suava por causa do calor, embora este fosse asfixiante. Qualquer coisa dentro de si lhe provocava aquele estado.

Os seus primeiros passos foram para o carro do velho Stefan. Sabia que Mary se encontrava ali.

— Louis — disse-lhe simplesmente Paul.

— Que é?

— Não faças asneiras... Previno-te. E sentiria ter de dizer-to de outra maneira.

Louis negou com a cabeça e continuou a avançar. Deu a volta a um veículo e encontrou o de Mary. Dois corpos encontravam-se estendidos no chão. Reconheceu-os imediatamente. Um deles era o de Mary. O coração saltou-lhe no peito. Havia menos de cinquenta horas que não a via. E ao tê-la outra vez perto, compreendeu o muito que lhe queria.

Aproximou-se devagar. Um cavalo relinchou.

Louis cravou os olhos nos lábios da rapariga, ressequidos, quase negros. E na sua pele escura e dura, gretada. Mary mudara de modo terrível. Adivinhavam-se os sofrimentos a que fora submetido o seu organismo durante os últimos dias.

O cavalo tornou a relinchar. E, de repente, Louis julgou ver as pálpebras da rapariga entreabrirem-se. Foi uma sensação fugaz, rápida. Temeu ser vítima de um sonho e de um desejo. Mas em breve se convenceu de que não se enganara. Mary fitava-o.

Os seus olhos brilhavam por entre as pálpebras queimadas. Louis percebeu que a rapariga queria falar. E que fazia um esforço doloroso para isso. Por fim, aos seus ouvidos chegaram duas palavras entrecortadas:

— Louis... amo-te...

Aquela frase produziu-lhe o efeito de um murro em pleno rosto, de um projétil que lhe fosse dirigido ao coração e que lhe atravessasse a carne, ou de um cavalo enlouquecido a arrastá-lo pelo deserto. Talvez, ainda, como se uma das afiadas navalhas de Ivan Ilivitch lhe rasgasse a garganta...

O mundo pareceu-lhe dar uma volta sobre si mesmo e os carros girarem vertiginosamente. Teve a sensação de que os corpos daqueles mártires subiam ao céu, e o céu baixou à terra. Louis Bardon sentiu que tudo mudava, que tudo se transformava. Ajoelhou-se junto da rapariga e pegou-lhe numa das mãos.

— Mary... — murmurou.

O cavalo voltou a relinchar.

— Mary... querida...

— Amo... amo...

Via-se-lhe a língua ressequida, convertida numa massa compacta e escura, que se movia com dificuldade. Louis ergueu-se. Recordara-se de súbito dos cantis que trazia presos à sela. Correu a buscá-los. Passou rente a um dos carroções, a correr, sem notar que dentro dele se encontrava o juiz Benton, de mãos enclavinhadas nos «Colts».

O juiz não o reconheceu. O seu cérebro estava de tal modo embrutecido pelos raios solares que não era capaz de pensar em nada. Apenas viu um homem passar por diante carro. Esperaria que regressasse para matá-lo. Fez um esforço e apoiou a mão na borda do veículo, empunhando o «Colt». Sabia que aquele seria o último acto da sua vida, porém estava disposto a praticá-lo, custasse o que custasse. Entretanto, Louis desapertava a correia que prendia um dos cantis.

— Que fazes? — perguntou-lhe o irmão.

Não respondeu. Os seus dedos nervosos não conseguiam mover-se com a rapidez que desejava.

— Que fazes, Louis?... Deixa a água!

Bardon virou-se bruscamente e enfrentou o irmão.

— Julgas que posso deixá-la morrer?... Não! Compreendi-o agora, de repente... Não posso... Amo-a, Paul, amo-a...

— Apenas conseguirás prolongar a sua tortura, se lhe deres água. Não sejas idiota e começa a descarregar os carros!

— Não!

— Obedece!

Recusou com a cabeça. Naquele momento, conseguiu desprender o cantil. Pegou-lhe e dirigiu-se para o sítio onde Mary se, encontrava estendida. Ao fazê-lo, viu Newman e Laghton, que se aproximavam de Paul.

— Não faças asneiras rapaz — disse-lhe o primeiro.

— Esquece-a — acrescentou o segundo. — Dentro de uma semana terás quantas quiseres.

Louis não lhes ligou importância e continuou a caminhar para junto de Mary. Foi então que Paul correu a colocar-se diante dele.

— Não faças isso, Louis, senão... matam-te! Não compreendes? Matam-te, se avanças mais um passo...

— Afasta-te, Paul... Ou serei obrigado a disparar contra ti.

— Esquece-a, Louis!

— Afasta-te, Paul!

Estavam frente a frente. Louis avançava devagar e Paul retrocedia. Lia-se nos seus olhos que não ousava deitar mão aos «Colts», pois conhecia a terrível velocidade do irmão e não queria expor-se a receber um pedaço de chumbo que lhe tirasse a vida.

— Afasta-te, Paul — repetiu-lhe Louis, friamente.

Sabia que atrás de si se encontravam Laghton e Newman, e que estes não hesitariam em disparar. Paul retrocedeu um passo mais. E ao fazê-lo, o seu corpo entrou, dentro do ponto de mira do «Colt» empunhado pelo juiz Benton.

A partir daquele momento, tudo sucedeu com uma rapidez terrível e incrível. O juiz não hesitou. A mão, que lhe tremia, ficou quieta um décimo de segundo, apoiada ao bordo do carroção, e o cano do «Colt» assomou por entre os rasgões da lona ressequida. Aquele décimo de segundo foi o tempo que aproveitou para disparar.

A cabeça de Paul pareceu explodir, como se a' tivesse cheia de pólvora a que de súbito alguém tivesse, deitado fogo. E ao mesmo tempo que o tiro soava e a cabeça explodia, Louis pulou para a direita e procurou refúgio num carroção, dando uma volta sobre si mesmo.

Assim que ficou de frente para Newman e Laghton, os «Colts» apareceram-lhe nas mãos e cantaram a canção; do chumbo e da morte...

Os «desestacadores» não esperavam que aquele homem virado de costas para si se convertesse num par de bocas que vomitavam fogo. A surpresa teve consequências desagradáveis para eles.

Newman conseguiu tirar do coldre um dos revólveres, mas não teve força nem vida suficientes para chegar a disparar. O corpo encolheu-se de modo grotesco e oi «Colt» caiu-lhe das mãos. Durante instantes permaneceu em equilíbrio, mas em• breve caiu e ficou estendido no solo.

Laghton nem sequer teve tempo de puxar da arma. Um projétil cravou-se-lhe no peito e atirou-o para trás, como se tivesse recebido um soco. Já morto, ainda retrocedeu um passo mais.

Mas, não encontrando nada que o mantivesse de pé, tombou, rodando sobre si mesmo. Assim que os disparos terminaram, voltou a reinar o terrível silêncio do deserto. Todavia, o ruído dos «Colts» servira para despertar dg seu torpor mortal muitos dos sobreviventes.

Até Louis chegou uma palavra que era o símbolo de todos os sonhos:

— Á... Água...

Reconheceu a voz. Era a de Graham, o filho do juiz.

— Á... Água...

Era a voz de Catalina Ilivitch. Depois ouviu a de Claudine. E a do velho Stefan. E a de Susi Ilivitch. E a de Patrick...

Reconheceu-os a todos. E sentiu uma alegria imensa, ao verificar que ainda viviam. Como louco, dirigiu-se aos cavalos e pegou nos cantis dos «desestacadores». Depois, a correr, dirigiu-se para Mary.

— Bebe, querida -- disse-lhe, simplesmente.

A seguir distribuiu o resto dos recipientes. Foram minutos angustiosos, aqueles em que os colonos sentiram a carícia da água na garganta, uma carícia de que sentiam a falta havia muito tempo.

O líquido deu-lhes forças. Patrick, arrastando-se, chegou até ao carro do juiz.

— Que... aconteceu? — perguntou.

— O inferno... acabou-se... — replicou-lhe «Cospe--Chumbo» Benton.

Assim era. Louis aproximou-se de ambos.

— A trinta milhas daqui encontra-se o Enclave Jack. A única coisa que fez a caravana foi desviar-se para o sul e dar uma grande volta... Há água e gente suficiente. Amanhã estarei de volta. Agora vou buscar socorros.

— Amanhã? — repetiu Patrick, como um eco.

— Sim. São trinta milhas. Deixo-lhes toda a água que tínhamos connosco. É suficiente para um dia... Voltarei.

— A nossa vida... fica nas tuas... mãos...

— Tudo correrá bem.

Louis dirigiu-se de novo ao carro do velho Stefan, à sombra do qual se encontrava deitada Mary. A rapariga, com grande esforço, endireitara-se e apoiara-se a uma das rodas.

— Louis... — murmurou, ao vê-lo.

— Estás melhor?

— Estou. Sabes? Nunca julguei que fosses capaz de deixar-me morrer... Estava certa de que chegarias a tempo de salvar-me... Dizia-mo o coração... Amo-te, Louis, amo-te muito...

Ele passou-lhe a mão pelo rosto ressequido, e depois acariciou-lhe a cabeça.

— Bem sei, querida, bem sei. Amas-me muito... E se não fosse o teu amor teria voltado a ser um ente desprezível, como era há meses. Tu, sem querer, modificaste--me. Diante de mim, está o futuro... O nosso rancho...

— Sim, Louis... E o nosso filho.

Ele fitou-a, surpreendido. E sentiu terrível vontade de chorar.

— Mary!... O nosso filho... — repetiu.

— Sim — respondeu ela, simplesmente.

Louis abraçou-a, sem poder conter-se. E pousou os seus lábios nos dela, secos e gretados.

— Obrigada... obrigada... — foi tudo o que pôde dizer.

No dia seguinte, um carroção carregado de pipas de água e de provisões frescas partiu do Enclave Jack.

À frente, a guiá-lo, ia um homem alto e magro, de «Colts» pendurados à cintura. Era Louis Bardon. Cumprira a sua promessa e estava disposto a cumprir todas as demais que fizera a Mary. E cumpriu-as.

Disso estava certo quando, quarenta e dois anos mais tarde, morreu no seu rancho, rodeado pelos filhos e pelos netos. Junto de si, até ao último momento, encontrava-se ela, Mary. A grande mulher da sua vida.




F I M

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