sábado, 31 de agosto de 2019

ARZ014.14 De bandoleiro a ajudante de xerife

Wickes meteu a cabeça pela porta entreaberta e sorriu.
— Como vai isso, rapaz?
Cliff, da cama, voltou o rosto para ele.
— Bastante bem.
O xerife entrou no quarto.
— Incomoda-o que conversemos um bocado? Suponho que não se fatigará.
— Aproxime uma cadeira e sente-se. Faz-me bem um pouco de companhia.
Wickes instalou-se junto da cama, examinando o aspeto do jovem. Estava mais magro e o seu semblante apresentava sinais de ter sofrido elevadas temperaturas; mas nos seus olhos, todavia, continuava a brilhar o fogo da vitalidade. Umas ligaduras cobriam-lhe o ombro direito e tinha ao peito o braço do mesmo lado.
— Bem, Werfel, quase se pode dizer que você é um homem ressuscitado duas vezes. A morte não se cansa de lhe estender a sua rede, mas você lá arranja maneira de se esgueirar sempre.
— São os outros que arranjam, não sou eu. Primeiro foram o senhor e Nancy; agora, Nancy e o Dr. Graham.
O xerife assentiu.
—É verdade; ambos lutaram sem repouso. O Dr. Graham fez mais do que humanamente possível, esforçando-se a todas as horas por devolver-lhe a vida, e Nancy permaneceu dia e noite junto de si, tratando-o e cuidando-o com uma abnegação incrível. Só consentiu em separar-se de si, quando o médico lhe garantiu que estava livre de perigo.


Cliff fez um trejeito.
— Estou em dívida com eles. Talvez algum dia lhes possa pagar.
Wickes pôs-se a rir.
— Pelo que respeita a Nancy, segundo me parece, não precisa de lhe pagar nada. Pelo menos ela garante que durante estes dias você expôs continuamente a pele para lhe salvar a vida a ela e ao Bobby...
Cliff franziu o nariz como se o incomodasse falar daquilo. Wickes tirou do bolso do colete um longo charuto e, acendendo-o, começou a fumar.
— Escute, Werfel. Nancy contou-me tudo o que lhes aconteceu com Hudson e a sua gente.
O jovem voltou a cabeça.
— E depois?
Wickes atirou ao ar uma grossa fumaça.
— Nada, mas o que me faz confusão é o que Hudson tem contra si. Já são duas vezes que o encurrala e tenta liquidá-lo. Você disse-me que não o conhecia. Então porque tem ele tanto interesse em matá-lo?
Cliff ficou calado um momento. Compreendia que o momento era de grande perigo para ele. Se o xerife chegasse a descobrir o seu nome e identidade verdadeiros, metia-o com certeza na cadeia para depois o submeter a julgamento. E o menos que podia esperar era a forca ou urna condenação a prisão perpétua.
— Não sei — respondeu, sem perder o aprumo. —Mas o senhor imagina que Hudson precisa de motivos para liquidar um homem? Porque matou ele tanta gente em Clarenceville, porque assassinou tantos proprietários de ranchos e condutores de diligências?
— Sempre o fez por dinheiro ou por ódio. Ora você mesmo confessou-me que não tinha um cêntimo. Portanto, tenho de compreender que Hudson o odeia?
— Ignoro-o, mas não teria nada de especial. No fim de contas não deve ser agradável ver ressuscitado alguém a quem se deu a morte.
Wickes ficou um momento pensativo.
— Sim, isso é verdade. Com certeza aborreceu-o tropeçar novamente com alguém que julgava já morto.
Sorriu ligeiramente, acrescentando:
— Pelo que Nancy me contou, agora sim que Hudson tem fartos motivos para o odiar. Refiro-me à sova que você lhe deu. Felicito-o, Werfel; é uma proeza que poucos homens serão capazes de realizar.
— Foram as circunstâncias.
O xerife tirou o charuto da boca e olhou para ele muito sério.
— Deve ter muito cuidado com o que faz, rapaz. Hudson não lhe perdoará, e posso apostar o que quiser que a partir de agora não descansará até encontrá-lo e vingar-se dos socos que recebeu. Isto significa lançar toda a quadrilha contra si.
Cliff reclinou a cabeça na almofada.
— Já o fez por duas vezes.
— Mas talvez na próxima você não consiga sair com vida. Para Hudson é já uma questão de orgulho, matar o único homem que o fez cair no ridículo, que fez oscilar o seu prestígio, e esse homem é você.
— Bom, e que quer que eu faça?
— Evitar que isso aconteça. Seria uma loucura tentar partir novamente de Tonopah. Os homens de Hudson devem vigiar a pradaria para o caçar. Você não pode lutar sozinho contra toda a quadrilha. Todo o território que nos rodeia converteu-se num inferno, e só existe uma relativa segurança permanecendo aqui.
—É possível, mas ficar aqui é como estar encerrado numa fortaleza sitiada.
Wickes enrugou a fronte.
— Evidentemente. As autoridades militares continuam sem poder intervir na perseguição dos bandidos. Têm demasiado trabalho com a sua reorganização depois da guerra. Todavia está-se aqui mais seguro do que em pleno campo.
Tirou umas fumaças do charuto e, inclinando-se para o jovem, acrescentou em tom confidencial:
— Escute, Werfel, eu quero pedir-lhe o seu auxílio. Verifiquei que você é um homem dum valor extraordinário, que pode fazer maravilhas com um revólver. Nancy contou-me como procedeu em frente aos bandidos, tombando-os com tiros terrivelmente certeiros. Preciso de si, Werfel; com a sua ajuda talvez possa defender a cidade contra Hudson. Você já viu que aqui há muita gente indefesa, mulheres e crianças que precisam de proteção. Tendo-o a meu lado, tenho a certeza de que poderíamos consegui-lo.
Cliff fechou os olhos um momento.
— Aqui também há homens, xerife, homens jovens e fortes. Não estão indefesos.
— É muito diferente. Eles estão dispostos a lutar, mas falta-lhes prática, espírito duro e firme. Eu sozinho tenho de suportar todo o peso da responsabilidade e não sei se chegarei para manter aceso o espírito de luta. Se você me ajudasse, tudo mudaria, seríamos dois e o nosso exemplo poderia alentar os demais. Por outro lado, toda a gente sabe já como você enfrentou Hudson e confiam em si, crêem-no um ser quase infalível. Tendo a seu lado o homem que bateu em Hudson e o troçou desfazendo-se dos seus sequazes, teriam ânimo para fazer-lhes frente. É um problema de ordem psicológica. Diga-me que aceita e eu nomeio-o imediatamente meu ajudante.
Cliff ficou calado, sentindo intimamente um estranho remorso. Estava a enganar aquele homem que procedia de boa fé, e isto desassossegava-o, produzia--lhe um mau sabor de boca.
— Deixe-me pensar, xerife. Agora não posso responder-lhe.
— De acordo, Werfel, pense, mas não demore muito tempo. Lembre-se de que...
Interrompeu-o a entrada do Dr. Graham, que o olhou com certa severidade.
— Xerife, é possível que seja a máxima autoridade nesta cidade, mas não se esqueça de que quando se trata dum doente, quem manda sou eu.
Wickes pôs-se a rir.
— Porque diz isso, doutor?
— Porque me lembro de lhe ter recomendado que Werfel não está ainda bastante forte para suportar uma conversa consigo. Eu, que estou completamente são, tenho vertigens quando você dá largas ao seu palavreado.
O xerife continuou a rir-se.
— Está bem, doutor, está bem. Procurava, apenas, entretê-lo um pouco. Ao fim e ao cabo, um pouco de conversa sempre ajuda a matar o aborrecimento.
— Sim, e às vezes também a matar o paciente.
Graham aproximou-se da cama e inclinou-se sobre Cliff.
— Como se encontra, Werfel?
— Melhor. Já estou cansado da cama.
— É um bom sintoma. Teve temperaturas?
— Não. Há já uns dois dias que não tenho.
O médico coçou o queixo, perplexo.
— Não compreendo. Segundo a ciência, você deveria estar morto, Werfel. Pelo contrário, já não tem febre, encontra-se melhor e começa a cansar-se da cama. Ouça lá, do que é feito?
— De aço, doutor. Você é do Leste não pode compreender isto — murmurou o xerife em tom irónico.
Graham, sem fazer caso do comentário de Wickes, tirou as ligaduras do ombro de Cliff, pondo-o a descoberto. Examinou minuciosamente a ferida, que estava limpa e prestes a cicatrizar, e comentou enquanto o ligava de novo:
— Isto vai a caminho duma rápida cura. Pode comer alimentos mais sólidos, mas, por agora, não se levante ainda. Amanhã voltarei para o ver.
Voltou-se para o xerife apontando com um dedo acusador:
— E você não lhe dê trela. Se tem coisas importantes a dizer-lhe, espere que eu o autorize.
Wickes acompanhou-o até à porta, rindo para dentro.
— Bom, doutor, serei obediente. Você é quem manda.

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