quarta-feira, 21 de agosto de 2019

ARZ014.04 A identidade descoberta

A caravana dos fugitivos chegou a Tonopah, uma típica cidade do Oeste, onde a vida estava concentrada na rua principal.
O xerife Wickes ocupou-se em seguida do alojamento daquele punhado de gente sem lar. A maioria foi instalada em armazéns vazios que, nos vários compartimentos, foram ocupados por diferentes famílias.
Aos pequenos foi destinada toda a ala da escola, onde ficaram aos cuidados de Nancy.
Cliff Sheridan, a quem o pequeno Bobby tomara uma louca amizade desde o dia em que ele viera em sua defesa, ajudou o xerife a instalar os refugiados.
Uma vez tudo pronto, Wickes coçou na cabeça.
— Bom, Werfel, parece que nos armazéns não há lugar para si.
— Não se preocupe com isso. Eu me arranjarei de qualquer maneira.
— Não é preciso. Em minha casa há lugar. Virá viver comigo.
— Não desejaria incomodar.
— Pelo contrário, faz-me companhia. Vivo só e muitas vezes não sei como distrair-me. Até que encontre um emprego onde ganhe algum dinheiro, pode ficar em minha casa.


Cliff assim fez. Estava completamente restabelecido dos ferimentos e o seu corpo recuperara todas as forças. Então começou a estudar a maneira de arranjar um cavalo que lhe permitisse afastar-se daquela região. Era preciso ir para o mais longe possível de Tonopah, e mesmo do Estado de Nevada. Talvez o Texas fosse o mais indicado para ele. Todavia, precisava de dinheiro e os cavalos tinham preços muito elevados. Claro que o podia roubar, mas sem saber exatamente porquê, resistia a empregar semelhante processo, embora até pouco antes fosse para ele um hábito.
A pedido de Wickes, acedeu a ir todas as manhãs à escola para rachar lenha. Bobby recebia-o alegremente e, quando não tinha aula ou conseguia escapar-se dela, vinha conversar com o jovem.
— Que socos deste em Douglas! Primeiro foi a direita, depois a esquerda que o atingiu no queixo. Derrubaste-o como um fardo.
— Mas como sabes tu isso? Se naquele momento estavas fora de combate!
— Sim, mas a menina Nancy explicou-me tudo. Quando eu for maior, também combaterei como tu, e ninguém me porá fora de combate.
—Desculpa, rapaz; não quis ofender-te.
Bobby, dando-se ares de homem, aproximou-se de Cliff e deu-lhe umas afetuosas palmadas no músculo do braço, que era o sítio onde chegava, e mesmo assim, pondo-se nas pontas dos pés.
— Já sei. Tu és um bom amigo. Algum dia poderei retribuir o favor.
— Obrigado, homem — agradeceu Cliff com um sorriso.
Uma manhã, quando Cliff estava sozinho no pátio da escola a rachar lenha, Nancy aproximou-se.
Ao princípio, ele não notou a sua presença, permitindo que a rapariga o contemplasse à vontade. Sob a coçada camisa de couro, podiam ver-se os seus músculos em pleno rendimento. Vestia umas calças texanas, sob as quais se viam as botas providas de grandes esporas, a em volta da cintura uma cartucheira repleta de balas e com um revólver, oferta do xerife Wickes.
— Bons dias — cumprimentou a rapariga.
Cliff, que tirara o chapéu de abas largas para deixar correr o suor livremente pela fronte, voltou-se para ela.
— Olá!
Nancy contemplou o montão de lenha.
— Não sei o que faríamos se não fosse você. Cada vez que acendemos uma estufa ou a cozinha, penso que, o devemos ao seu esforço.
— Também me salvaram a vida. De alguma maneira tenho de vos agradecer.
A rapariga desviou o olhar.
—Julguei que o lamentava. Disse-me que preferia que o deixássemos morrer.
Cliff enrugou a fronte, contemplando-a com os seus olhos firmes e penetrantes.
— Nancy, porque não me trata nunca pelo meu nome? Porquê, ao dirigir-se a mim, nunca diz Nick ou Werfel?
Ela encolheu os ombros.
— Não sei... Talvez seja a falta de hábito.
Cliff num arranque brusco, agarrou-a pelos ombros.
—Diga-me a verdade. Não é essa a razão. Porque não me trata nunca pelo meu nome? Responda-me.
Nancy sustentou o olhar dele.
— Porque sei que o seu nome não é Nick Werfel.
Ficaram um momento a contemplar-se em silêncio. Depois ele soltou-a.
— Conhece o meu verdadeiro nome?
A rapariga abanou a cabeça num sinal afirmativo.
— Conheço... Cliff Sheridan.
O jovem passou uma mão pelos revoltos cabelos e, com um gesto de fadiga, foi sentar-se num tronco. Depois ergueu o rosto para ela, no qual havia uma estranha expressão.
— Que mais sabe de mim?
— Que é um dos homens de Lloyd Hudson.
Cliff tirou da algibeira uma bolsa de tabaco e papel de fumar e começou a fazer um cigarro.
— Como o soube?
— Esquece que eu estava em Clarenceville quando atacaram?
 — Os outros também ali estavam e não se lembram de mim. Éramos muitos.
Nancy estava nervosa.
— Mas eu pude vê-lo claramente. Quando tentava fugir da escola com as crianças, para nos escondermos no bosque, um grupo de bandidos dirigiu-se para nós a galope. Ignoro o que eles pretendiam. Mas, de repente, apareceu um cavaleiro, não sei donde, dirigindo-se aos companheiros como uma flecha. Passou junto de mim e pude ver-lhe bem o rosto. Era você. Então, alguém do grupo, ao vê-lo chegar, perguntou com voz potente: «Que vais tu fazer, Cliff Sheridan?». Não quis ouvir mais nada e apressei-me a sair da cidade com as crianças. Por toda a parte se ouviam tiros e os gritos dos moribundos. Enquanto estivemos escondidos, o seu nome o seu semblante não se me apagaram da memória, e, pelo contrário, mais e mais se gravaram, como a personificação de toda aquela cena.
Cliff, enquanto ela falava, não a interrompeu uma só vez. Depois, decorreram uns segundos antes de perguntar:
— Porque não contou isso ao xerife, quando me encontraram na pradaria?
Nancy passou a mão pela fronte.
— Não o sei. Ainda não consegui perceber a razão por que o não fiz. Seria o lógico, o natural. E, todavia, quando o vi ferido, moribundo, indefeso, senti que nunca poderia denunciá-lo. Era um sentimento mais forte que eu mesma. Não me pergunte porquê, pois nem eu mesma o sei, e creio que nunca poderei explicar.
Cliff deu umas fumaças no cigarro.
—Fez mal, Nancy. Teria sido melhor dizer quem eu sou e acabar duma vez.
Ela aproximou-se dele.
—Não o compreendo, Cliff. Conseguiu passar despercebido e, todavia, lamenta-o. Que tem? Remorsos?
Ele baixou a cabeça.
— Talvez seja esse o nome; eu não sei. A única coisa que sei é que Cliff Sheridan está a mais neste mundo.
— Porque não parte para muito longe daqui? Talvez dessa maneira consiga esquecer.
Ele fez um trejeito de sarcasmo.
— Duvido. Mas, de qualquer maneira, partirei logo que consiga um cavalo.
— Para aonde pensa ir?
O gesto de indiferença de Cliff foi por demais eloquente.
— Ignoro. Mas suponho que o melhor será dirigir-me para o Texas. Dizem que é um bom lugar para tipos como eu.
Durante um breve espaço de tempo nenhum dos dois pronunciou uma palavra. Cliff continuava a fumar o cigarro. Por fim, Nancy rompeu o silêncio:
— Como foi que dispararam contra si? Coisa de Lloyd Hudson?
— Tivemos umas questões e decidiram matar-me. Eu defendia-me, mas não pude contra todo o bando. Deixaram-me, supondo-me morto.
Nancy pôs-lhe a mão no ombro.
— Outro teria ficado contente por escapar com vida. Em você, a reação foi ao contrário. Isto não é natural. O homem tem sempre uma oportunidade para refazer a sua vida.
—Mas não quando se chama Cliff Sheridan.
A rapariga fez um gesto de impaciência.
— Não seja tão pessimista.
Ele voltou a cabeça para a fitar com os seus olhos duros, trágicos, cheios de sombras.
— Teria muito otimismo, se se desprezasse a si mesma, e não acreditasse em nada, absolutamente em nada, nem na vida, nem nos homens, nem nos amigos, se um dia descobrisse que tudo é falso, que não existe um só ideal que valha a pena, que todos os sofrimentos foram inúteis e que os seus próprios semelhantes, sem exceção, são uma pandilha de vermes imundos, mentirosos e cruéis? Pois esta é a minha opinião do mundo e dos homens.
Nancy olhava para ele estupefacta, desconcertada, incrédula. Tudo quanto conseguiu balbuciar foi um débil:
— Cliff...

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