sexta-feira, 23 de agosto de 2019

ARZ014.06 De confederado a bandido

— A Humanidade não é assim tão má, Cliff. Não é justo que despreze desta maneira os seus semelhantes.
Era Nancy quem pronunciava estas palavras. Encontrava-se com o jovem no seu gabinete da escola, enquanto os alunos brincavam ruidosamente no pátio.
— Que sabe você da Humanidade? — perguntou ele com certo sarcasmo. — Imagina que por ser professora me pode ensinar como são os homens?
Ela corou.
— Não pretendo dar-lhe lições de nenhuma espécie. O que quero é convencê-lo de que está equivocado, de que à sua volta nem tudo é maldade. Existem pessoas más, sem dúvida alguma, mas também as há boas.
— Deveras? Aponte-me uma. Olhe, Nancy, a vida ensinou-me uma coisa que não falha: quando alguém te faz um favor, é porque procura alguma coisa em troca.
A rapariga fitou-o nos olhos.
— Pensa que eu também procurava alguma coisa em troca quando me calei sobre a sua identidade?
Ele suportou o olhar e os seus olhos eram duros e frios.
— Não sei. Mas não me surpreenderia se assim fosse.
Nancy fez um gesto de desagrado.
— Você é um homem odioso, Cliff, um homem que desconfia de todos. E penso que a sua desconfiança é porque imagina que todos são como você.


— É possível — respondeu ele, com a maior indiferença. — Não imagine que me julgo uma vítima, não; sei que sou tão desprezível como o resto dos homens. Talvez que noutra época houvesse em mim algo de bom, mas isso já passou. Só os primitivos e os ingénuos continuam crendo que há pessoas de coração nobre. Olhe para Hudson, olhe para mim mesmo, olhe para Douglas, que tive de o matar para que não me liquidasse pelas costas. E o mostruário não termina em nós; na maioria os tipos que você conhece não hesitariam em converter-se em assassinos, se tivessem a suficiente coragem para arriscar a própria pele. Só os refreia o medo à morte, mas debaixo da sua pele de cordeiro são capazes de assestar uma punhalada à traição. Com o tempo, você mesma irá aprendendo a não confiar em ninguém, a não crer em nada nem em ninguém.
Nancy contemplou-o com um misto de espanto e de pena.
— A vida deve ter sido muito cruel consigo, Cliff. Você está amargurado. Que foi o que lhe aconteceu? Você sabe muito bem. Sou um proscrito, um fora da Lei, um inimigo da sociedade. É lógico que o meu modo de pensar e de sentir a surpreenda.
Ela abanou a cabeça.
— Não é só isso, Cliff. Há mais alguma coisa em si, alguma razão que o lançou no mau caminho. Talvez que se não revelei a ninguém a sua identidade, quando o encontramos moribundo, fosse porque nas suas feições li que não era um criminoso vulgar, porque pressenti
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que sofrera profundamente. Por isso volto a perguntar: que foi o que lhe aconteceu e o levou a odiar os seus semelhantes?
Cliff franziu os lábios.
— Já lhe disse que era uma história muito vulgar, uma história que para ninguém tem interesse.
Nancy pôs-se de pé e foi colocar-se em frente do jovem.
— Interessa-me a mim.
Ele fitou-a com dureza. — Porquê?
A rapariga, com um gesto de estranha suavidade, abanou a cabeça.
— Você sofre, Cliff, você é um atormentado, e isso é motivo bastante para desejar conhecer a sua história. Além disso, estou convencida de que lhe fará bem compartilhar os seus desgostos com uma pessoa que o compreenda. Tentou-o alguma vez?
Ele ficou um momento indeciso.
— Não, nunca.
— Experimente fazê-lo comigo. Tenho a certeza de que não se arrependerá. Sabe o alívio que se sente quando confessamos a alguém um peso de consciência?
Cliff, cabisbaixo, foi até à janela, ficando de costas para Nancy. No pátio, via os pequenos a brindar. O mais buliçoso de todos era Bobby, que corria com uma pistola de madeira, simulando que mantinha renhidos combates com imaginários inimigos. Surpreendeu-o ouvir o som da sua própria voz, que ia dizendo em tom confidencial, quase como num murmúrio, como se fosse seguindo o fio dos seus pensamentos:
— Nasci em Alabama, filho mais novo duma rica família de plantadores. Tínhamos uma grande casa e as nossas propriedades abrangiam quilómetros e quilómetros de terreno fértil e produtivo. A minha vida foi a de um cavalheiro rural, até que rebentou a guerra entre o Norte e o Sul.
Calou-se um momento e prosseguiu:
— O meu irmão mais velho partiu para a guerra e eu, que cria firmemente na causa dos confederados, alistei-me também como voluntário, contando apenas dezasseis anos. Enviaram-me para a frente e tomei parte nas batalhas mais sangrentas. Fui ferido duas vezes, mas pouco me importei porque estava convencido de lutar por uma causa justa e um nobre ideal pelo qual valia a pena sacrificar a vida.
Voltou-se para a rapariga, mas os seus olhos tinham um olhar ausente, vago, como se não notasse a presença de Nancy.
— Em Gettysburg — continuou dizendo — meu irmão e eu fomos parar à mesma unidade. Juntos suportámos todos os incidentes daquela horrorosa e sangrenta batalha, e meu irmão... meu irmão morreu nos meus braços ao receber uma bala no ventre. Nem tive tempo de o enterrar, porque os ianques nos venceram. Aquilo foi o princípio do fim. A Confederação estava condenada e nós iniciámos uma retirada que não havia de terminar.
E num tom de voz mais cava, continuou:
— Como feras perseguidas, continuámos a defender-nos palmo a palmo, gota a gota do nosso sangue. Eu votava um ódio profundo aos unionistas por matarem o meu irmão e, no dia em que, já vencido o nosso exército e prestes a render-se, soube que a minha casa em Alabama fora arrasada e incendiada pelo inimigo, morrendo no desastre os meus pais e a minha irmã, não sei como não enlouqueci, mas desde aquele momento considerei inimigo mortal todos que lutaram pelos nortistas.
Passou a mão pela fronte e acrescentou:
— Encerraram-me num campo de prisioneiros, e ali soube o que era o inferno. Recebi maus tratos e humilhações, que mais aumentaram o meu ódio. Quando me libertaram eu já não era um homem normal, mas um ser sedento de vingança, que só sentia desprezo pelos seus semelhantes.
Apertou os dentes e respirou fundo para seguir o relato:
— Emigrei para o Oeste e um dia encontrei-me com Lloyd Hudson, um antigo companheiro de armas. Disse-me que organizara uma guerrilha confederada para continuar a lutar contra os unionistas para vingar, no possível, todo o mal feito aos nossos. Respondi-lhe que queria ingressar no agrupamento e ele aceitou-me.
Olhando para um ponto indefinido, esclareceu:
— Toda a gente sabe como pusemos em xeque as autoridades de Nevada. Durante muito tempo, julguei que realmente continuávamos em guerra, uma guerra contra os nossos inimigos, mas pouco a pouco fui verificando que Lloyd a única coisa que procurava era um lucro pessoal, que não era um guerrilheiro confederado, mas um vulgar criminoso. É possível que de princípio o movesse o ideal político, mas depois só lhe interessava ganhar dinheiro, amontoar uma fortuna assaltando Bancos e diligências. Foi então que me separei da sua quadrilha, enojado de tudo e de todos, desprezando-me a mim mesmo por ter contribuído para um negócio tão sujo e repugnante.
Com um brilho de amargura nos olhos voltou-se para a rapariga.
— Em que posso eu crer agora? Até os que fizeram a guerra comigo provaram ser uns canalhas, uns vulgares bandidos e assassinos. E a bandeira da Confederação, a bandeira pela qual morreram os meus pais e irmãos e eu daria a vida de bom grado, só servia para encobrir toda essa porcaria, toda essa imoralidade, para em seu nome se cometerem os piores crimes.
Nancy escutara-o emocionada. Com profunda pena pôs-lhe a mão no ombro.
— Pobre Cliff! A desgraça bem saciou em si a sua ira. Mas tenho a certeza de que, se tiver confiança, descobrirá que os homens não tão todos maus, que existem seres bons e generosos.
Ele deitou a cabeça para trás dando uma risada sardónica.
— Não, Nancy, não quero receber mais desgostos. Não compreende que somos piores que as feras? Estou farto de tantas mortes, de tanto derramamento de sangue. E, todavia, você própria viu que é impossível libertarmo-nos. Douglas quis matar-me e só escapei por ser melhor atirador do que ele. Assim somos todos: rancorosos, vingativos, cheios de ódio. Só estamos satisfeitos quando podemos fazer mal, quando temos possibilidade de prejudicar o vizinho. Essa é a verdade.
A rapariga ficou pensativa, com uma expressão de profunda dor.
— Daria qualquer coisa para o fazer mudar de opinião, para lhe provar que está equivocado.

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