Velozmente, rompendo o silêncio com o golpear dos seus cascos, os sete cavalos atravessavam Silvered Valley (1).
Eram os «Cavaleiros da Noite», negros na escuridão sem lua, sinistros como a própria noite, portadores da ignomínia, quando não da morte.
Desciam dos contrafortes da montanha que fechava como uma cadeia purpúrea, o vale.
Sombras de uma realidade horrenda, demónios à solta, ávidos de sangue e de extermínio.
A sua passagem, nos ranchos e no povoado que atravessaram como centelhas, semeando uma chuva de chispas no sol endurecido, ficava marcada uma senda de terror.
Só quando caia a noite saiam da sua guarida ignorada, mas eles eram a Lei, uma Lei caprichosa e maldita, imposta à força de sangue e de fogo.
Silvered Valiey tinha lutado de início denodadamente contra a onda de crimes perpetrados pelos malfeitores, mas pouco a pouco, caldos os seus melhores homens, aterrados os outros, arruinados e saqueados os rancheiros, teve que dobrar-se à vontade dos misteriosos cavaleiros.
Nunca ninguém os tinha visto senão de noite, com os rostos cobertos por lenços até aos olhos, entre uma cortina de chumbo.
Os corcéis, esporeados sem piedade, deitando espuma pelas bocas, húmidos de sangue os flancos incessantemente feridos pelas esporas de aço, corriam separados, formando um círculo.
O homem que dirigia o grupo olhou para trás, contemplando a louca corrida. E nos seus olhos brilhou unia luz de orgulho, do desejo que naqueles minutos lhe consumia o sangue.
Uma risada rouca saiu-lhe dos lábios, agitando o leve tecido do lenço.
Os seus homens mal se podiam manter nas selas, avivadas as bebedeiras de uísque pelo balançar do galope.
Levantando a mão, deteve a sua montada. Atrás dele pararam seis assassinos da pior espécie, esperando ordens.
Tinham chegado mais além dos trigais, num local onde se acentuava a ruína do campo. O bandido comprovou que nenhum dos seus companheiros estava em condições de intrometer-se na realização dos seus jatos.
Durante alguns minutos conteve o cavalo, que pateava no solo, impaciente.
Junto dele, o resto da quadrilha guardava silêncio, respeitando, apesar das bebedeiras, a atitude do chefe. Desobedecer-lhe era a morte; e isso nunca o esqueciam.
Ouvia como que longínquo, sumido em si mesmo, o resfolegar dos cavalos.
Tinha esperado muito tempo, meses e meses, aquele momento, e antegozava com cruel deleite, revolvendo-se no seu próprio lodo, a proximidade da iminente façanha.
O vale inteiro: ranchos, a povoação, tudo até às bases da montanha, cairia nas suas mãos quando ele o dispusesse.
Ele era o mais forte e o mais astuto; o fruto da sua inteligência demoníaca acabava de alcançá-lo com o reu cavalo.
A ânsia do seu coração estava diante dele, a duas milhas de distância, só na escuridão da noite, sem possibilidade de lhe resistir.
Depois iria para o Este, para as cidades que conhecia.
Iria com ela, à força, fosse como fosse, para gozar o fruto sangrento.
O seu cavalo, obedecendo por instinto a um sinal habitual, saiu disparado, a galope.
Os seis malfeitores seguiram-no como um só.
Pensou neles e amaldiçoou-os em voz baixa, por serem néscios. Que queriam? Porque lutavam? Teriam também a sua parte; a sua parte...
Riu-se, perdendo-se de alegria no ritmado galopar dos cavalos.
Voltou a levantar a mão, cortando em seco a corrida dos cavaleiros.
Momentos depois avançavam a pé, em silêncio, Protegidos pela escuridão.
Atravessaram um bosque e depois prados desertos, onde, de espaço a espaço, encontravam restos de paliçadas e de utensílios de trabalho meio enterrados na terra.
Sobre o fundo de estrelas levantavam ao céu os seus esqueletos, restos de armazém e de barracões, um curral que em tempos guardara os mais velozes cavalos da região. O bandido contemplava tudo aquilo com deleite, adivinhando na escuridão o resultado da sua obra, do seu mais premeditado e criminoso trabalho.
Eram milhares de acres de terreno abrasados pelas chamas, uma vintena de edifícios tão arruinados que qualquer dia acabariam por cair por si mesmos, definitivamente. Na casa, que ficava a vinte metros deles, o velho Travers, Jed Travers, e a filha, ela, Nelly, a mulher cuja imagem não conseguia afastar da sua imaginação a mulher que tinha encurralado, criando para isso um inferno, onde antigamente a vida cantava urna canção de prosperidade e trabalho.
Os bandidos aproximaram-se lentamente da única casa habitada naquele panorama de desolação.
Lentamente, os passos dos bêbedos, cujos tropeções a erva abafava, seguiram os do homem que queria escrever o penúltimo capítulo do pavoroso drama.
Quando chegaram tão perto que podiam distinguir as decrépitas paredes de madeira, o chefe avançou sozinho.
O homem parou.
Era gordo, mas ágil e forte.
Tirando o lenço do rosto, deixou a descoberto a boca aberta por uma expressão de orgulho, rematada por um bigode escuro, que lhe dava uma aparência de crueldade.
Já não precisava de ocultar a sua verdadeira personalidade, já não era preciso esconder que era ao mesmo tempo o «Cavaleiro Negro» e Searles, capataz do rancho de Dan Mack.
Dentro de algumas horas, no máximo dois ou três dias, desapareceria para sempre. Todas as pessoas que poderiam identificá-lo: os seus homens e o velho Jed, de cuja casa se aproximava agora silenciosamente, todos menos ela só o poderiam contar aos abutres.
Na casa, aparentemente abandonada, não vinha luz nenhuma, o menor sinal de vida humana.
Nas suas costas, Searles ouviu o ruído de conversas abafadas, misturadas com risos, o que o fez voltar a cabeça.
Os seus homens tinham trazido garrafas e bebiam, sem se preocuparem com coisa alguma que não fosse disputarem-se a bebida.
Aquilo estava de acordo com os seus planos, mas não lhe convinha que na casa o ouvissem, pondo alerta os seus moradores, o velho teimoso e a filha, que, se soubessem o que se aproximava, tentariam desesperadamente a fuga.
Com um gesto imperioso tentou fazer calar aqueles estúpidos. Conseguiu apenas que terminassem as conversas, mas não as suas gargalhadas roucas e abafadas.
Compreendendo que, se queria ser obedecido, teria que voltar para trás, continuou a avançar, com os olhos brilhantes, o peito cheio de maldade.
Cada um dos poros do seu corpo gozava o silêncio, daquele silêncio que, minutos mais tarde, se rasgaria através da noite num grito de mulher, cheio de surpresa e terror. Um passo mais, outro. Saltou uma vedação de madeira e encontrou em frente da casa. O portal estava muito escuro, ensombrado pela mole do delapidado casarão.
Sorriu. Havia uma janela em melhor estado do que as outras. Atrás dela estava Nelly; no andar de cima, Jed Travers. Uma escada subia da entrada até ao quarto do rancheiro. Searles apanhou uma pedra e lançou-a com força na direção onde o aguardavam os seus homens. No mesmo instante, todos eles se puseram em movimento, fazendo barulho por cada passo que davam. Traziam um longo madeiro.
Searles falou em voz baixa, cortando em seco o apagado murmúrio dos embriagados criminosos, com a sua voz fria, imperiosa.
— Tu, Wah, quando forçarmos a porta, corres para cima, com os outros. Entendido?
Os bandidos assentiram com a cabeça, sabendo que qualquer objeção poderia custar-lhes a vida.
Ergueram o tronco e esperaram o sinal do «Cavaleiro Negro».
Nely e o pai, como em muitas outras noites anteriores, não dormiam.
Já bastante tarde, o velho Jed retirara-se para o seu quarto, continuando a falar com a filha de piso para piso, através das vigas carcomidas.
— Que acontecerá, pai? — tinha perguntado Nelly.
— Nada, Nelly. Que queres que aconteça? — respondera o velho, sentindo que uma onda de amargura lhe subia à garganta.
— Sempre à espera; à espera de quê, pai?
— Eu não espero nada, Nelly. Vivi aqui, trabalhei, construí com as minhas mãos a melhor fazenda de Silvered Valley. Lutei pela tua mãe, e quando ela morreu, tinha-te a ti. Depois vieram eles, e já vês, não resta nada, nem sequer...
— Algum dia partirão de novo, pai, e voltaremos a levantar o rancho -- replicou a jovem, tentando afastar do pai aqueles sombrios pensamentos.
— Talvez, tu, um dia... — respondeu o velho, sorrindo com tristeza, continuando depois, corno que falando consigo própria: — Sinto-me acabado; tanta desgraça pôde mais do que as minhas forças. Se ainda tenho energia para sustentar uma arma nos braços, é porque sei que ainda precisarás de mim.
--- Que pensamentos, pai...!
-- Sim, filha; diz-me o coração. Porque levaram a nossa ruína até este extremo? Porque não nos deixaram nem uma cabeça de gado, nem um acre de terra, nem um refúgio? Parece que contra nós se assanhou toda a ferocidade desses bandidos. Oxalá não seja pelo que eu imagino...
E a sua voz cansada calou-se, por ter descoberto demasiado os seus mais ocultos temores.
Mas Nelly não ouviu as suas últimas palavras. Tinha saltado do leito, vestida como estava, e colando os ouvidos à janela, escutava atentamente.
Um ruído leve, quase impercetível, tinha-a sobressaltado. Parecia o ruído de risos, o murmúrio de uma conversa acerca da casa, que voltou a ouvir, saltando-lhe o coração dentro do peito.
Não podia enganar-se, não se enganava.
— Pai, pai, há alguém lá fora! — exclamou, com voz onde vibrava um imenso terror.
Ouviu os passos do seu velho pai, que se aproximava da porta do seu quarto, enquanto a avisava:
— Cala-te; não faças barulho.
Contendo a respiração, sentindo o corpo percorrido por calafrios, Nelly apertou-se contra a janela.
Batiam-lhe os dentes e um súbito tremor percorreu-lhe a espinha.
Deixou de ouvir vozes, voltando a ouvi-las depois ainda mais perto. Aproximavam-se. Foram minutos de sobressalto, angustiosos, cheios de uma surda ameaça.
Do outro lado da janela, desconhecidos falavam em voz baixa.
Nelly ouviu claramente os seus passos na madeira apodrecida do portal, pés que se arrastavam, que pararam junto da sua janela.
Sem o notar, a jovem tinha pegado na espingarda, apertando-a com ambas as mãos.
O velho Jed dizia qualquer coisa. Ela não o escutava, a respiração suspensa, atenta ao contínuo ruído do exterior.
— Ouves, Nelly? Ainda aí estás? — ouviu finalmente.
— Sim, pai; são vários. Oiço-os moverem-se.
O velho rancheiro falou lentamente, com uma voz que ela só lhe tinha ouvido em raras ocasiões:
— Vão entrar em casa, Nelly. Já o temia, mas não te quis dizer-te nada. São os «Cavaleiros da Noite». Ouve-me bem: debaixo da tua cama está escondido um bidão de gasolina. Derrama-o pelo quarto e espera na porta de trás. Agora compreenderás porque a construí; suspeitava o pior e não me equivoquei. Procurar-te a ti, Nelly; só a ti. Quando forem a entrar, incendeia a gasolina e foge. Eles não sabem que existe essa porta e levarão um bocado a compreendê-lo. Até lá, mantê-los-ei à distância. Corre sem parar. No arroio seco está um cavalo à tua espera. Foge de Silvered Valley, porque aqui, se te apanham, espera-te um destino mil vezes pior do que a morte.
— Pai, Pai! — balbuciou Nelly, esmagada pela revelação, pela voz do pai, dura, inflexível, e ao mesmo tempo abrandada por uma profunda emoção.
— Ouve-me, filha, e não me interrompas; é urna questão de segundos — continuou o velho rancheiro, tremendo-lhe lágrimas nas palavras: — O «Cavaleiro Negro» é o Searles. Acabo de vê-lo.
— Não! — pôde apenas exclamar ela, soluçando, e reagindo à brutal realidade, levantou-se na escuridão.
Urna onda de repugnância para com o vil capataz encheu-lhe o coração, dando-lhe coragem. Dos seus olhos brotaram lágrimas ardentes, de ódio e de impotência.
Depois, recordando a amarga verdade implícita mi voz do pai, disse:
— Fugiremos juntos, pai.
— Estou a vê-los lá em baixo, junto da tua janela. De um momento para o outro assaltarão o teu quarto. Faz o que eu te digo; fá-lo, se não queres...
— Não há outra solução, pai?
— Prefiro que seja assim, Nelly. É melhor assim: morrer agora, sabendo que ainda servi para qualquer coisa, que com o meu último alento te ajudei a escapar. Faz o que eu te digo, depressa. Vão entrar, Nelly...
A jovem não ouviu mais.
Sacudida por uma violenta emoção, cega pelas lágrimas, correu para a cama e puxou o bidão de gasolina.
Instantes depois abriu urna porta que dava para outra sala da casa, de onde podia fugir-se para o exterior.
O coração golpeava-lhe o peito, impedindo-a quase de respirar, as têmporas batiam-lhe febrilmente, como num pesadelo, as palavras do pai soavam-lhe na cabeça, agitando-se, crescendo continuamente, como fantasmas.
Obedecia à, sua última vontade, acostumada desde criança a seguir as suas ordens; mas a sua consciência revoltava-se à ideia de o deixar encurralado por seres que eram piores que• os animais.
A gasolina espalhou-se pelo chão, enchendo o quarto.
Nelly não sabia o que fazia. Esperava, com um desejo irresistível de gritar, de quebrar o horror daqueles minutos.
De súbito, um golpe violento caiu sobre a janela, fazendo-a voar em mil pedaços.
Um tiro seco, de espingarda, partiu de cima, da arma que o pai empunhava, misturando-se com o grito de um dos bandidos, ao ser ferido.
Com dedos que não lhe obedeciam, Nelly acendeu um fósforo. Apagou-se.
Ouviu maldições, blasfémias e um tiroteio crescente, no qual ressaltava o estampido da espingarda do pai.
Depois um corpo caindo lá em cima. O pai, o pai ferido... corridas pela escada.
Gritou ela também, gritou para não ouvir o som do corpo amado, arrastando-se pelo solo, lutando ainda, disparando no último estertor de vida.
Um vulto tapou a janela, saltando para dentro. Os olhos enlouquecidos de Nelly distinguiram a silhueta do homem que a procurava a ela, os olhos brilhando na escuridão.
Retrocedeu passo a passo, horrorizada.
Os seus dedos riscaram outro fósforo, que ardeu, revelando onde ela estava.
O miserável saltou para trás, compreendendo pelo forte odor a gasolina, a armadilha em que se tinha metido.
Urna labareda súbita, deslumbrante, encheu o quarto, ao mesmo tempo que Nelly atravessava a porta, salvando-se por milagre.
A jovem correu, empunhando convulsivamente a espingarda.
Correu sem sentir outra coisa que não fosse o prar4o ardente que lhe vinha da alma. Ouvindo através do incêndio que bramia atrás dela o arrastar pelo solo, lá em cima, do seu pai, que disparava ainda.
Sem ver a direção que seguia atravessou o campo, trigais incultos, onde se enterravam as suas pernas metidas em botas altas.
De súbito encontrou-se no bosque de abetos, rasgando as roupas nos ramos, ao correr. Encontrou um cavalo e subiu para ele, como um autómato.
Umas palavras assaltaram o seu cérebro partindo de dentro dela, da sua própria carne, onde se tinham incrustado: «Mil vezes pior do que à morte, mil vezes pior do que a morte.» Tentando calar a voz que a horrorizava, cravou os tacões nos flancos do cavalo e embrenhou-se na noite.
Eram os «Cavaleiros da Noite», negros na escuridão sem lua, sinistros como a própria noite, portadores da ignomínia, quando não da morte.
Desciam dos contrafortes da montanha que fechava como uma cadeia purpúrea, o vale.
Sombras de uma realidade horrenda, demónios à solta, ávidos de sangue e de extermínio.
A sua passagem, nos ranchos e no povoado que atravessaram como centelhas, semeando uma chuva de chispas no sol endurecido, ficava marcada uma senda de terror.
Só quando caia a noite saiam da sua guarida ignorada, mas eles eram a Lei, uma Lei caprichosa e maldita, imposta à força de sangue e de fogo.
Silvered Valiey tinha lutado de início denodadamente contra a onda de crimes perpetrados pelos malfeitores, mas pouco a pouco, caldos os seus melhores homens, aterrados os outros, arruinados e saqueados os rancheiros, teve que dobrar-se à vontade dos misteriosos cavaleiros.
Nunca ninguém os tinha visto senão de noite, com os rostos cobertos por lenços até aos olhos, entre uma cortina de chumbo.
Os corcéis, esporeados sem piedade, deitando espuma pelas bocas, húmidos de sangue os flancos incessantemente feridos pelas esporas de aço, corriam separados, formando um círculo.
O homem que dirigia o grupo olhou para trás, contemplando a louca corrida. E nos seus olhos brilhou unia luz de orgulho, do desejo que naqueles minutos lhe consumia o sangue.
Uma risada rouca saiu-lhe dos lábios, agitando o leve tecido do lenço.
Os seus homens mal se podiam manter nas selas, avivadas as bebedeiras de uísque pelo balançar do galope.
Levantando a mão, deteve a sua montada. Atrás dele pararam seis assassinos da pior espécie, esperando ordens.
Tinham chegado mais além dos trigais, num local onde se acentuava a ruína do campo. O bandido comprovou que nenhum dos seus companheiros estava em condições de intrometer-se na realização dos seus jatos.
Durante alguns minutos conteve o cavalo, que pateava no solo, impaciente.
Junto dele, o resto da quadrilha guardava silêncio, respeitando, apesar das bebedeiras, a atitude do chefe. Desobedecer-lhe era a morte; e isso nunca o esqueciam.
Ouvia como que longínquo, sumido em si mesmo, o resfolegar dos cavalos.
Tinha esperado muito tempo, meses e meses, aquele momento, e antegozava com cruel deleite, revolvendo-se no seu próprio lodo, a proximidade da iminente façanha.
O vale inteiro: ranchos, a povoação, tudo até às bases da montanha, cairia nas suas mãos quando ele o dispusesse.
Ele era o mais forte e o mais astuto; o fruto da sua inteligência demoníaca acabava de alcançá-lo com o reu cavalo.
A ânsia do seu coração estava diante dele, a duas milhas de distância, só na escuridão da noite, sem possibilidade de lhe resistir.
Depois iria para o Este, para as cidades que conhecia.
Iria com ela, à força, fosse como fosse, para gozar o fruto sangrento.
O seu cavalo, obedecendo por instinto a um sinal habitual, saiu disparado, a galope.
Os seis malfeitores seguiram-no como um só.
Pensou neles e amaldiçoou-os em voz baixa, por serem néscios. Que queriam? Porque lutavam? Teriam também a sua parte; a sua parte...
Riu-se, perdendo-se de alegria no ritmado galopar dos cavalos.
Voltou a levantar a mão, cortando em seco a corrida dos cavaleiros.
Momentos depois avançavam a pé, em silêncio, Protegidos pela escuridão.
Atravessaram um bosque e depois prados desertos, onde, de espaço a espaço, encontravam restos de paliçadas e de utensílios de trabalho meio enterrados na terra.
Sobre o fundo de estrelas levantavam ao céu os seus esqueletos, restos de armazém e de barracões, um curral que em tempos guardara os mais velozes cavalos da região. O bandido contemplava tudo aquilo com deleite, adivinhando na escuridão o resultado da sua obra, do seu mais premeditado e criminoso trabalho.
Eram milhares de acres de terreno abrasados pelas chamas, uma vintena de edifícios tão arruinados que qualquer dia acabariam por cair por si mesmos, definitivamente. Na casa, que ficava a vinte metros deles, o velho Travers, Jed Travers, e a filha, ela, Nelly, a mulher cuja imagem não conseguia afastar da sua imaginação a mulher que tinha encurralado, criando para isso um inferno, onde antigamente a vida cantava urna canção de prosperidade e trabalho.
Os bandidos aproximaram-se lentamente da única casa habitada naquele panorama de desolação.
Lentamente, os passos dos bêbedos, cujos tropeções a erva abafava, seguiram os do homem que queria escrever o penúltimo capítulo do pavoroso drama.
Quando chegaram tão perto que podiam distinguir as decrépitas paredes de madeira, o chefe avançou sozinho.
O homem parou.
Era gordo, mas ágil e forte.
Tirando o lenço do rosto, deixou a descoberto a boca aberta por uma expressão de orgulho, rematada por um bigode escuro, que lhe dava uma aparência de crueldade.
Já não precisava de ocultar a sua verdadeira personalidade, já não era preciso esconder que era ao mesmo tempo o «Cavaleiro Negro» e Searles, capataz do rancho de Dan Mack.
Dentro de algumas horas, no máximo dois ou três dias, desapareceria para sempre. Todas as pessoas que poderiam identificá-lo: os seus homens e o velho Jed, de cuja casa se aproximava agora silenciosamente, todos menos ela só o poderiam contar aos abutres.
Na casa, aparentemente abandonada, não vinha luz nenhuma, o menor sinal de vida humana.
Nas suas costas, Searles ouviu o ruído de conversas abafadas, misturadas com risos, o que o fez voltar a cabeça.
Os seus homens tinham trazido garrafas e bebiam, sem se preocuparem com coisa alguma que não fosse disputarem-se a bebida.
Aquilo estava de acordo com os seus planos, mas não lhe convinha que na casa o ouvissem, pondo alerta os seus moradores, o velho teimoso e a filha, que, se soubessem o que se aproximava, tentariam desesperadamente a fuga.
Com um gesto imperioso tentou fazer calar aqueles estúpidos. Conseguiu apenas que terminassem as conversas, mas não as suas gargalhadas roucas e abafadas.
Compreendendo que, se queria ser obedecido, teria que voltar para trás, continuou a avançar, com os olhos brilhantes, o peito cheio de maldade.
Cada um dos poros do seu corpo gozava o silêncio, daquele silêncio que, minutos mais tarde, se rasgaria através da noite num grito de mulher, cheio de surpresa e terror. Um passo mais, outro. Saltou uma vedação de madeira e encontrou em frente da casa. O portal estava muito escuro, ensombrado pela mole do delapidado casarão.
Sorriu. Havia uma janela em melhor estado do que as outras. Atrás dela estava Nelly; no andar de cima, Jed Travers. Uma escada subia da entrada até ao quarto do rancheiro. Searles apanhou uma pedra e lançou-a com força na direção onde o aguardavam os seus homens. No mesmo instante, todos eles se puseram em movimento, fazendo barulho por cada passo que davam. Traziam um longo madeiro.
Searles falou em voz baixa, cortando em seco o apagado murmúrio dos embriagados criminosos, com a sua voz fria, imperiosa.
— Tu, Wah, quando forçarmos a porta, corres para cima, com os outros. Entendido?
Os bandidos assentiram com a cabeça, sabendo que qualquer objeção poderia custar-lhes a vida.
Ergueram o tronco e esperaram o sinal do «Cavaleiro Negro».
Nely e o pai, como em muitas outras noites anteriores, não dormiam.
Já bastante tarde, o velho Jed retirara-se para o seu quarto, continuando a falar com a filha de piso para piso, através das vigas carcomidas.
— Que acontecerá, pai? — tinha perguntado Nelly.
— Nada, Nelly. Que queres que aconteça? — respondera o velho, sentindo que uma onda de amargura lhe subia à garganta.
— Sempre à espera; à espera de quê, pai?
— Eu não espero nada, Nelly. Vivi aqui, trabalhei, construí com as minhas mãos a melhor fazenda de Silvered Valley. Lutei pela tua mãe, e quando ela morreu, tinha-te a ti. Depois vieram eles, e já vês, não resta nada, nem sequer...
— Algum dia partirão de novo, pai, e voltaremos a levantar o rancho -- replicou a jovem, tentando afastar do pai aqueles sombrios pensamentos.
— Talvez, tu, um dia... — respondeu o velho, sorrindo com tristeza, continuando depois, corno que falando consigo própria: — Sinto-me acabado; tanta desgraça pôde mais do que as minhas forças. Se ainda tenho energia para sustentar uma arma nos braços, é porque sei que ainda precisarás de mim.
--- Que pensamentos, pai...!
-- Sim, filha; diz-me o coração. Porque levaram a nossa ruína até este extremo? Porque não nos deixaram nem uma cabeça de gado, nem um acre de terra, nem um refúgio? Parece que contra nós se assanhou toda a ferocidade desses bandidos. Oxalá não seja pelo que eu imagino...
E a sua voz cansada calou-se, por ter descoberto demasiado os seus mais ocultos temores.
Mas Nelly não ouviu as suas últimas palavras. Tinha saltado do leito, vestida como estava, e colando os ouvidos à janela, escutava atentamente.
Um ruído leve, quase impercetível, tinha-a sobressaltado. Parecia o ruído de risos, o murmúrio de uma conversa acerca da casa, que voltou a ouvir, saltando-lhe o coração dentro do peito.
Não podia enganar-se, não se enganava.
— Pai, pai, há alguém lá fora! — exclamou, com voz onde vibrava um imenso terror.
Ouviu os passos do seu velho pai, que se aproximava da porta do seu quarto, enquanto a avisava:
— Cala-te; não faças barulho.
Contendo a respiração, sentindo o corpo percorrido por calafrios, Nelly apertou-se contra a janela.
Batiam-lhe os dentes e um súbito tremor percorreu-lhe a espinha.
Deixou de ouvir vozes, voltando a ouvi-las depois ainda mais perto. Aproximavam-se. Foram minutos de sobressalto, angustiosos, cheios de uma surda ameaça.
Do outro lado da janela, desconhecidos falavam em voz baixa.
Nelly ouviu claramente os seus passos na madeira apodrecida do portal, pés que se arrastavam, que pararam junto da sua janela.
Sem o notar, a jovem tinha pegado na espingarda, apertando-a com ambas as mãos.
O velho Jed dizia qualquer coisa. Ela não o escutava, a respiração suspensa, atenta ao contínuo ruído do exterior.
— Ouves, Nelly? Ainda aí estás? — ouviu finalmente.
— Sim, pai; são vários. Oiço-os moverem-se.
O velho rancheiro falou lentamente, com uma voz que ela só lhe tinha ouvido em raras ocasiões:
— Vão entrar em casa, Nelly. Já o temia, mas não te quis dizer-te nada. São os «Cavaleiros da Noite». Ouve-me bem: debaixo da tua cama está escondido um bidão de gasolina. Derrama-o pelo quarto e espera na porta de trás. Agora compreenderás porque a construí; suspeitava o pior e não me equivoquei. Procurar-te a ti, Nelly; só a ti. Quando forem a entrar, incendeia a gasolina e foge. Eles não sabem que existe essa porta e levarão um bocado a compreendê-lo. Até lá, mantê-los-ei à distância. Corre sem parar. No arroio seco está um cavalo à tua espera. Foge de Silvered Valley, porque aqui, se te apanham, espera-te um destino mil vezes pior do que a morte.
— Pai, Pai! — balbuciou Nelly, esmagada pela revelação, pela voz do pai, dura, inflexível, e ao mesmo tempo abrandada por uma profunda emoção.
— Ouve-me, filha, e não me interrompas; é urna questão de segundos — continuou o velho rancheiro, tremendo-lhe lágrimas nas palavras: — O «Cavaleiro Negro» é o Searles. Acabo de vê-lo.
— Não! — pôde apenas exclamar ela, soluçando, e reagindo à brutal realidade, levantou-se na escuridão.
Urna onda de repugnância para com o vil capataz encheu-lhe o coração, dando-lhe coragem. Dos seus olhos brotaram lágrimas ardentes, de ódio e de impotência.
Depois, recordando a amarga verdade implícita mi voz do pai, disse:
— Fugiremos juntos, pai.
— Estou a vê-los lá em baixo, junto da tua janela. De um momento para o outro assaltarão o teu quarto. Faz o que eu te digo; fá-lo, se não queres...
— Não há outra solução, pai?
— Prefiro que seja assim, Nelly. É melhor assim: morrer agora, sabendo que ainda servi para qualquer coisa, que com o meu último alento te ajudei a escapar. Faz o que eu te digo, depressa. Vão entrar, Nelly...
A jovem não ouviu mais.
Sacudida por uma violenta emoção, cega pelas lágrimas, correu para a cama e puxou o bidão de gasolina.
Instantes depois abriu urna porta que dava para outra sala da casa, de onde podia fugir-se para o exterior.
O coração golpeava-lhe o peito, impedindo-a quase de respirar, as têmporas batiam-lhe febrilmente, como num pesadelo, as palavras do pai soavam-lhe na cabeça, agitando-se, crescendo continuamente, como fantasmas.
Obedecia à, sua última vontade, acostumada desde criança a seguir as suas ordens; mas a sua consciência revoltava-se à ideia de o deixar encurralado por seres que eram piores que• os animais.
A gasolina espalhou-se pelo chão, enchendo o quarto.
Nelly não sabia o que fazia. Esperava, com um desejo irresistível de gritar, de quebrar o horror daqueles minutos.
De súbito, um golpe violento caiu sobre a janela, fazendo-a voar em mil pedaços.
Um tiro seco, de espingarda, partiu de cima, da arma que o pai empunhava, misturando-se com o grito de um dos bandidos, ao ser ferido.
Com dedos que não lhe obedeciam, Nelly acendeu um fósforo. Apagou-se.
Ouviu maldições, blasfémias e um tiroteio crescente, no qual ressaltava o estampido da espingarda do pai.
Depois um corpo caindo lá em cima. O pai, o pai ferido... corridas pela escada.
Gritou ela também, gritou para não ouvir o som do corpo amado, arrastando-se pelo solo, lutando ainda, disparando no último estertor de vida.
Um vulto tapou a janela, saltando para dentro. Os olhos enlouquecidos de Nelly distinguiram a silhueta do homem que a procurava a ela, os olhos brilhando na escuridão.
Retrocedeu passo a passo, horrorizada.
Os seus dedos riscaram outro fósforo, que ardeu, revelando onde ela estava.
O miserável saltou para trás, compreendendo pelo forte odor a gasolina, a armadilha em que se tinha metido.
Urna labareda súbita, deslumbrante, encheu o quarto, ao mesmo tempo que Nelly atravessava a porta, salvando-se por milagre.
A jovem correu, empunhando convulsivamente a espingarda.
Correu sem sentir outra coisa que não fosse o prar4o ardente que lhe vinha da alma. Ouvindo através do incêndio que bramia atrás dela o arrastar pelo solo, lá em cima, do seu pai, que disparava ainda.
Sem ver a direção que seguia atravessou o campo, trigais incultos, onde se enterravam as suas pernas metidas em botas altas.
De súbito encontrou-se no bosque de abetos, rasgando as roupas nos ramos, ao correr. Encontrou um cavalo e subiu para ele, como um autómato.
Umas palavras assaltaram o seu cérebro partindo de dentro dela, da sua própria carne, onde se tinham incrustado: «Mil vezes pior do que à morte, mil vezes pior do que a morte.» Tentando calar a voz que a horrorizava, cravou os tacões nos flancos do cavalo e embrenhou-se na noite.
(1) Nota do tradutor: Vale prateado
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