sexta-feira, 8 de julho de 2016

BUF118. CAP V

Ao passar pela última casa e iniciar o caminho para o rancho, Ted distinguiu, acocorada num umbral, a figura de um índio enrolado numa manta «navaja» tao suja e rota que mal se distinguia da pele encardida do seu dono.
Devia estar ébrio ou doente, pois murmurava qualquer coisa em voz serena, num tom lamuriento. Ted langou-lhe alguns Mares e o miserável deitou-lhes logo a mão, mas sem mudar de posição nem de lamento.
Ao chegar defronte do edifício do «Sulphur Ranch» os relâmpagos sucediam-se com tanta rapidez, que não tinha dificuldade em ver. De súbito, foi obrigado a fazer parar a montada e a levantar os braços, por ordem de uma voz que vinha do barracão dos trabalhadores.
— Não se mexa ou furo-o! — foi a amável saudação.
— Que tens tu, Dilley? Estarás já tao taranta que nem me reconheces?
Dilley soltou um grito de alegria e surgiu a porta do barracão, seguido de Rudy e de Diboo, o cozinheiro mestiço.
— Raios, rapaz! — exclamou o velho vaqueiro. — Não há dúvida, esta é a noite das grandes surpresas! Quando voltaste?
— Acabo de chegar.
Desmontara e apertava a mão de Dilley, que sacudia a sua com força.
— E os outros? — perguntou Rudy.
— Vêm daqui a bocado, ficaram no «saloon» a molhar a palavra... Mas que aconteceu, Dilley? Para que são todas estas precauções?
— Que o diabo me leve se sei, rapaz! O teu pai mandou-nos vigiar, para vermos se aparecia algum dos teus irmãos. Raios me partam se percebo o que se passa entre eles! O velho é que não quer que o surpreendam. Dentro de casa estão de guarda o encardido do Tagus e o china.
Estava confirmado o que ouvira aos irmãos, na taberna. Afastou-se de Dilley e dos outros e dirigiu-se para casa. A porta estava fechada, assim como as duas janelas que davam para o pátio, e Ted admirou o aspeto tenebroso do lugar a luz de um relâmpago. Era aquele o sepulcro em que seu pai jazia enterrado em vida.
Bateu a porta e esta abriu-se, para dar passagem ao cano de uma espingarda.
— Vamos, Tagus, ou tu, Leng, deixem-me entrar. Sou o Ted e a noite não está boa para ser passada ao relento.
A pesada porta de carvalho abriu-se mais e o cano desapareceu. Ted transpos o limiar escuro e deteve-se, admirado com o silncio total que o envolvia. Não estariam ali os dois vigilantes?
De súbito sentiu que qualquer coisa se lhe apoiava nas costas e um ar fétido lhe soprava junto do pescoço.
— Vamos, Tagus, não sejas parvo — impacientou-se. — Repito que sou Ted Boyce.
Resolveu a situação o facto de a porta do escritório do pai se abrir naquele momento. A luz amarelada iluminou-os e Tagus desviou-se e baixou a espingarda.
— Ted, filho! — exclamou Walter, dirigindo-se a custo para ele.
Abraçaram-se e depois o velho observou o filho com ansiedade.
— Por que voltaste tão depressa? E os rapazes?
— Explico-te já, pai — tranquilizou-o o rapaz. — Dany e os homens ficaram um bocado no «saloon» do povoado. Eu vim a frente... porque quero falar-te, se estas disposto a isso. Ao que parece, não queres receber visitas...
— Entra.
Walter empurrou o filho para o interior do escritório e, antes de fechar a porta, ordenou:
— Vocês continuem de guarda.
Em seguida instalou-se no seu cadeirão, no estrado, e Ted, que o seguiu, verificou que estivera a escrever e que não tinha interesse nenhum em que ele visse de que se tratava, pois atirou um livro empoeirado para cima dos papéis.
— Conta-me como correu a viagem, Ted, e o resultado do negócio. Conseguiste bom comprador para o gado?
— Sim, creio que não terás razões de queixa. Vendi todas as cabeças por um total de cento e trinta mil dólares!
— Eia!
— E olha que perdemos muito gado. Aqui tens o dinheiro.
Tirou uma carteira volumosa e atirou-a para cima da mesa. Walter contemplou-a com uma expressão indefinida. Percebia-se que se travava uma batalha colossal entre o seu espirito de ave de rapina e qualquer decisão que tomara.
Por fim, com um suspiro, desviou os olhos da carteira e fitou-os em Ted.
— Fica com esse dinheiro, rapaz — murmurou.
— Terei ouvido bem? — perguntou o filho, inclinando-se para ele.
— Ouviste. Chegou a hora de seguires o teu caminho, Ted.
— E julgas que sem esse dinheiro não poderei segui-lo?
— Ajudar-te-á, consegue-se tudo mais rapidamente quando se tem uns milhares de dólares.
Ted convenceu-se de que, de facto, o pai não estava bom do juizo.
— Não preciso, velho — afirmou francamente. — Talvez seja parvo, mas a ajuda que me ofereces só pode servir-me como as muletas a um coxo. Tenho algum dinheiro, o suficiente, que poupei do meu salário.
Walter suspirou de novo, mas de maneira diferente. Transformou-se de um homem duro num pobre velho, e Ted acautelou-se.
— Ted, meu filho, pensei sempre que eras o único a compreender-me. Acredita, dou-te o dinheiro de todo o coração, merece-lo. Não és como os imundos coiotes dos teus irmãos.
— Agradeço-te, mas emprega-o em obras pias... se queres penitenciar-te. Que há com os meus irmãos?
— Diabos os levem! Viste-os?
— Estavam no «saloon», e nada contentes contigo, velhote. Roland falou-me de um casamento teu... com Castile. E verdade?
Walter acenou varias vezes com a cabeça, em sinal afirmativo.
— E. Creio que também não aprovarás, mas magoar-me-ias se ficasses contra mim.
Seguiu-se um silêncio, que Ted interrompeu secamente:
— Esse dinheiro era o prego da minha colaboração?
— Não, Ted, não! Palavra que queria dar-te alguma coisa para... Mas sei que tu, mesmo que não gostes, não te oporás...
— Confias demasiado, velhote. Não me oporei se não se tratar de alguma armadilha em que caíste. Tens a certeza de que essa mulher gosta de ti? Não gostará, apenas, do teu dinheiro? Não me digas que, com a tua idade e convertido numa c6pia ma do homem que foste, enlouqueces as moças... mesmo as índias.
Walter ficou calado durante um bom bocado e, por fim, disse com voz cansada:
— Nao, Ted, não gosta de mim. Não é amor o que lhe inspiro, mas compaixão. Queria partir, porque é orgulhosa e não tolera certas situações, e para obrigá-la a ficar e a aceitar-me tive de prometer-lhe que os herdeiros desta propriedade, das terras e do rancho, de toda a minha fortuna, enfim, seriam os homens e mulheres do seu povo... a quem as arrebatei há quarenta anos.
Levantou-se, contemplou o filho com dolorosa ansiedade e acrescentou:
— Não podes opor-te, Ted. E tudo quanto me resta, a companhia para a minha solidão. Tu não, Ted, tu não!
E, arrastando os pés, encaminhou-se para a porta. Hesitou um instante e, por fim, saiu.
Ted ficou cabisbaixo, com a sensação dolorosa de ter roubado a esmola a um mendigo. O assunto era mais sério do que imaginara. Duvidando já de ter o direito de impedir o casamento do pai com Castile, levantou-se e também e foi para o salão. Deixou a porta do escrit6rio aberta e Ode ver os vultos de Tagus e de Leng, que olhavam através da janela com as carabinas aperradas. Contra quem?
Sem pressas, refletindo no que ouvira, dirigiu os seus passos para a porta norte, onde ficava a torre habitada pela India. Tinham-na construído com o objetivo de dominar a vasta extensão que se oferecia daquele lado, nos tempos em que as incursões dos peles-vermelhas eram uma ameaça constante.
Um Bom posto de observação. As antigas bombardeiras, onde se apoiavam as escopetas modelo «Kentucky», tinham agora vidros, e o telhado fora reforçado com chapas de zinco.
Subiu a escada com lentidão e, ao chegar a porta, parou a ver se ouvia alguma coisa. Ia a bater quando a porta se abriu e a sua frente surgiu Castile, que o observava com os grandes olhos brilhantes. Do interior escapava-se um fio de luz.
— Ola, Ted.
Ted fitou-a com ansiedade. Cada vez o caso lhe parecia mais complicado e incompreensível. As intrigas não eram o seu forte. Acercou-se de Castile e prendeu-a pelos ombros. Era um pouco mais baixa do que ele, mas tao direita que parecia dominá-lo. O seu corpo era forte e bem proporcionado, tornando-a um exemplar perfeito da espécie humana.
De seguida atraiu-a ao peito e apertou-a com força, levando-a assim para o interior da torre, onde a beijou com paixão, com fúria. Quando a largou os seus olhos percorreram-lhe o rosto, enquanto as suas mãos lhe acariciavam os ombros.
— Maldita sejas! — exclamou. — Que fizeste durante a minha ausência? Por que endoideceste o velho?
— Ted, tu não sabes...
— Só sei que o encontrei completamente transtornado, que lhe meteste o inferno no peito. Esta noite ouvi Um comentário acerca das mulheres «zunhis», segundo o qual parece que vocês são capazes de endoidecer ate o mais frio dos homens... Que pretendes? Apoderar-te da fortuna do velhote para reabilitares os teus... esses borrachões degenerados, essa vara de porcos famélicos?
— Ted, estas a magoar-me!
O rapaz largou-a. Castile respirou fundo. Apesar da aparente impassibilidade, tinha as faces rubras, Um brilho estranho no olhar e o peito parecia querer rebentar-lhe a pele de gamo da blusa, tao acelerada era a sua respiração.
O interior da torre tinha duas dependências e uma pequena arrecadação. Na primeira, que era onde se encontravam, havia um banco largo coberto de almofadões tecidos no estilo «hopi» e algumas das horríveis mascaras «katcinas», fabricadas pelos indios daquela tribo, assim como esteiras e mantas e uma mesa encostada a parede, cheia de chávenas e garrafas.
Uma porta coberta com uma cortina velha conduzia ao quarto de dormir, cuja cama consistia numa pele de urso estendida num canto.
— Por que não me explicas a situação — perguntou Ted, com dureza. — Qual é o teu propósito?
— Ted, os velhos são como as crianças... Talvez fosse um erro teres partido e de ficar ao meu cuidado... Encaprichou por mim, mas juro-te que não soprei nas suas cinzas para atiçá-las.
— Não? Mas tamBem não sopraste para as apagar. Podias ter-lhe dito o que havia entre nós.
— Odiar-te-ia e não renunciaria a sua ideia. Por outro lado, Ted, custa muito tentar tirar a um homem como o teu pai aquilo que deseja. Repito que é como uma criança... com a diferença de que as crianças têm ainda a juventude e a idade adulta para tentarem realizar os seus desejos e o teu pai sabe que consome as últimas energias. Tenho a certeza de que se partisse aceleraria a morte do teu pai... Tenho tanto a certeza disso como de que esta tempestade passará e o sol voltara a brilhar.
— Mas os meus irmãos não tolerarão semelhante união! E eu? Julgas que tolerarei ver-te transformada em minha madrasta?
Aproximou-se de novo dela e estudou-a com atenção. Compreendia o que o pai sentia, embora estivesse certo de que não poderia comparar-se a intensidade da sua paixão. Era diabolicamente formosa aquela India! Formosa e inteligente, sensata.
Voltou a segurá-la e sentiu-a vibrar sob as mãos.
— Manda ao diabo o velho e os da tua raça — disse com voz rouca. — Se quiser alguém para lhe alegrar os últimos dias, que alugue uma bailarina em Dallas ou Abilene. E esquece-te do teu povo, desses preguiçosos que dariam cabo de tudo quanto lhes dessem em uísque barato e em missangas.
Castile abanou negativamente a cabeça.
— Iris comigo para o Alasca — continuou Ted. — Serás unicamente minha.
A «zunhi» quis libertar-se das suas mãos, mas não conseguiu.
— Não, Ted... Tu não compreendes...
— Manda tudo ao diabo, Castile. Só compreendo que te amo e...
Beijou-a para não falar.
A chuva cessara e ate os trovoes e os relâmpagos pareciam ter-se afastado definitivamente.

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