terça-feira, 12 de julho de 2016

BUF118. CAP IX

— Não se mexam, piolhosos filhos de cadela! — ordenou Roland Boyce, que se colocara à frente do grupo da porta. — Estão cercados por todos os lados e ao menor gesto dispararemos.
Depois, apontou para Tagus, que parecia convertido numa estátua, e disse:
— Agarrem-no. Esse é o irmão da bruxa que enlouqueceu o nosso pai.
Dois homens adiantaram-se. Eram Overton e um dos seus criados. O mestiço trazia um sorriso de imundo prazer na carantonha. Tagus não se mexeu enquanto não chegaram a poucos passos de si.
Então deu um magnifico salto e caiu no meio deles. A sua mão direita abateu-se sobre o pescoço do dono do «saloon» e obrigou-o a girar. E o companheiro despachou-o com um feroz pontapé no meio da barriga, que o obrigou a retroceder, encolhido e gritando.
— A ele! — bramiu Roland, e vários homens mais correram para o irmão de Castile.
Ted esteve tentado a descobrir-se e a sair em sua defesa; mas dominou-se a custo, compreendendo que seria loucura e que para nada serviria senão para anular a menor possibilidade de salvação do índio.
O pior seria se quisessem eliminar também os demais peles-vermelhas reunidos; mas imaginava que Roland se contentaria com despojá-los de quanto possuíssem e escorraçá-los da povoação, no meio da tormenta, o que equivaleria a converter a natureza em verdugo e livrar-se assim de responsabilidades.
Os cidadãos de Sulphur Valley caíram sobre Tagus, que se revolveu e iniciou uma luta extraordinária, a nobre luta do selvagem contra a fera domesticada e com os dentes aguçados pelo Odio e pela servidão.
Mas depois de sacudir os seus atacantes e de faze-los cair duas ou três vezes, acabou por ser dominado. Overton, a despeito de ter a cabeça a banda, metera-se na refrega e desferia pancadas as cegas, cruéis, procurando as partes mais sensíveis do pele-vermelha para feri-lo.
Entre dois sujeitaram-no pelos braços, enquanto outro o agarrava pelos negros cabelos e lhe dobrava o pescoço para trás ate ao ponto de rotura.
Roland aproximou-se deles. Esteve uns segundos a admirar a figura vencida do «zunhi» e, a seguir, atirou-se a ele e esbofeteou-o com brutalidade. Ted rangeu os dentes e cravou as unhas da mão direita na palma da esquerda, para dominar-se.
— Ouvimos o que disseste — declarou o primogénito dos Boyce, e não havia o menor tom de piedade na sua voz. — Vais repeti-lo, maldito, em linguagem de gente, ou esquartejar-te-emos aqui mesmo. Vieste incitar os teus para que lutem a favor de meu pai. Mas não te quiseram seguir, o que talvez sirva aos teus irmãos... de raça para salvarem a pele, embora a sua existência nesta terra tenha acabado esta mesma noite.
Virou-se e percorreu a sala com olhar frio.
— Terão de sair agora mesmo da povoação — declarou. — O que for encontrado nela dentro de uma hora, será abatido sem contemplações. Entenderam?
Não esperou pela reação que pudessem provocar as suas palavras. Virou-se de novo para Tagus.
— Ouvimos tamBem a acusação que te fizeram de que a tua irmã esta noiva de meu irmão Ted. Vamos, responde! E verdade ou nao?
Tagus fez um brusco movimento com a cabeça e cuspiu no rosto de Roland. Este limpou-se com impressionante serenidade, e mergulhou o punho direito no diaframa do Indio. Uma, duas vezes. Tagus expeliu todo o ar dos pulmões e o seu rosto acetinado pôs-se verde de todo.
Roland parou de bater.
— Responde, filho de uma cadela — insistiu. — E verdade que a tua irmã está noiva de meu irmão Ted? Fala e limitar-nos-emos a enforcar-te. De contrário, morreras empalado.
Sil aproximou-se do local onde se cometia o iniquo castigo.
— Roland, por favor. É preciso que...?
Roland fitou-o com desprezo.
— Se a tua alminha de sacerdote não suporta estas cenas, podes ir para o teu rancho e esperar que passe tudo. No teu Lugar, creio que a tua mulher nao, se mostraria tao agoniada.
— Mas, Roland...
Roland não lhe ligou importância. E voltou a carga com Tagus. Um trovão formidável impediu que se ouvisse a sua seguinte pergunta. O «zunhi» fez novo esforço e quase conseguiu desprender-se das mãos que o garrotavam. Ao mesmo tempo, atingiu o seu verdugo com uma joelhada, que no entanto não teve força suficiente para causar-lhe grande mal.
Roland, resfolegando como um urso ferido, atirou-se ao prisioneiro e descarregou os seus enormes punhos em todos os pontos vulneráveis.
— Roland, Roland! — gemeu Sil, que tinha o rosto branco, descomposto.
Waco também correra para eles e procurava conter o furioso primogénito. Ted mordeu uma das mãos até sentir correr o sangue. E naquele momento resolveu acabar com tudo aquilo. Já não lhe interessava a consanguinidade nem qualquer outro laço familiar.
Assistiu ao fim da terrível cena. Tagus caiu por terra, desfeito, partido, jorrando sangue por todos os lados.
Os seus assassinos recompuseram-se lentamente. Eram efigies sinistras, com as mãos ainda crispadas e manchadas do sangue da sua vítima. Um grito agudo, lancinante, fendeu o ar naquele momento e galvanizou-os, fê-los regressar a sua abjeta condição.
Ted adivinhou quem gritara e sentiu pena. Era seu irmão Hub, que correra para ali, morbidamente atraído pelo drama, mas que não conseguira resistir ao espetáculo canibalesco, desonroso para a espécie humana.
— Vamos! — Roland recompusera-se; já não hesitava. — Façamos sair todos estes cães daqui e que comecem a correr para fora da povoação.
— Isso, isso! — exultou Overton. — Que vão para o deserto, que e onde devem viver!
Ted acalmara-se; e como estava junto da porta foi dos primeiros a sair. Não pôde evitar a coronhada que um dos vaqueiros, aliado aquele bando de fanáticos, lhe dedicou, embora sem saber a quem era dirigida na realidade.
Quase já não chovia, mas os trovões e os relâmpagos continuavam em todo o seu esplendor. Alguém disse de dentro ainda da escola:
— Destruamos as cabanas!
E o alude de espoliadores precipitou-se pela travessa, a caminho das miseráveis habitações. Ted viu a alta figura de Overton, que corria a frente, talvez convencido de que seria realidade o tesouro de que tanto falara e que, segundo ele, os «zunhis» tinham escondido debaixo da terra das cabanas.
Roland e os irmãos saíram também. O mais velho dos Boyce não gostou que fossem os homens do seu grupo os primeiros a começar o saque. E procurou contê-los.
— Teremos tempo! — gritou, pondo-se diante dos últimos. — Agora o mais importante é ir ao rancho e acabar de uma vez com a bruxa.
Ted envolveu-se mais na manta e afastou-se em direção do celeiro onde deixara o cavalo. Não queria esperar mais. Agora sim, convinha chegar ao rancho antes dos irmãos e dos loucos de Sulphur Valley, dispostos a cometer ali novos crimes.
Não gostava dos índios, exceto no tocante a Castile, mas o tratamento infligido a Tagus revolvera-lhe as entranhas. Era demoníaco, desumano. Nem os lobos devoram o membro da alcateia ferido de modo tao bestial, porque ao fim e ao cabo eles cumprem uma lei inexorável da natureza, que não tolera inúteis para a caça. E, alem disso, tem a grande desculpa da fome.
Não teve dificuldade em chegar ao refúgio em que deixara o alazão. Este resfolegou, contente com o seu regresso. Ainda estava molhado, assim como a sela, mas descansara, e isso era muito importante. Também comera da palha amontoada.
O jovem saltou-lhe para cima, assim que chegou ao ar livre e dirigiu-o para a saída da povoação. Obrigou-o a um rodeio, a fim de não se encontrar com os saqueadores. Mas quando chegou ao limite das cabanas, distinguiu, à lívida claridade dos relâmpagos, a multidão de índios que empreendiam o êxodo.
Homens, mulheres e crianças, sem bagagens, porque os brancos não lhe permitiram levar nada das suas míseras vivendas, fugiam das carabinas que lhes apontavam, dirigindo-lhes insultos e empurrando-os.
De repente, produziu-se um remoinho: um homem acabava de reter uma rapariga e apertava-a nos bragos.
— Tu nao, pequena! — gritava. — Eu te protegerei...
A donzela «zunhi» debatia-se e gemia, procurando escapar das garras que a seguravam. Nenhum dos seus irmãos, nem novos nem velhos, intercedeu por ela. E o sujeito que a agarrara arrastou-a consigo, por entre as graçolas dos restantes.
Conduziu-a precisamente para a ponto onde se colocara Ted.
O jovem viu que o homem lhe batia com brutalidade, a fim de dominá-la. Então, fincou os calcanhares nos flancos da montada e atirou-se sobre o par.
Agarrou o porco sujeito pelo pescoço e atirou-o para diante dos cascos. A rapariga «zunhi» caiu para um lado, com um grito. O alazão espezinhou o tipo e Ted fê-lo voltar atrás várias vezes, sem fazer caso dos gritos que se escapavam da garganta do patife.
Também se sentia cruel, desprovido da menor parcela de sensibilidade. Agora queria matar, incendiar e matar como os outros, embora do lado oposto.
Assim que teve a certeza de que esmagara diversas costelas ao miserável, além de partir-lhe outros ossos, afastou o cavalo e meteu-o a galope em direção ao «Sulphur Ranch». E aquele ato de alta justiça foi iluminado pela fúria do céu, que o acompanhou também de música de fundo.
À medida que percorria o encharcado caminho, Ted ouvia vozes atrás de si que o elucidaram da situação, em parte provocada pela natureza, e em parte pelos homens.
— O Sulphur transbordou!
— O gado! E preciso leva-lo para os desfiladeiros do Este!
Era certo. Se não o fizessem, as águas arrastariam as reses para o Sul e morreriam todas, ou pelo menos a maior parte. Mas se as empurrassem para as colinas de Thoka, haveria o perigo de se espantarem e de se precipitarem nos desfiladeiros, morrendo esmagadas.
Ted sabia qual seria a atitude dos irmãos, em especial de Roland. O primogénito não se importaria absolutamente nada de perder uns milhares de cabeças. O que ele desejava era assegurar-se da propriedade dos Boyce, do rancho do pai, com uns centos de milhar de acres, dos vastos e belos campos do norte e de todo o dinheiro que o velho guardava no banco.
Quem perderia seriam os rancheiros pobres, os que unicamente contavam com o gado que ia ser vítima da tormenta. Mas talvez Roland lhes prometesse indemnizá-los da perda se o acompanhassem ao assalto da fortaleza do temível velho que lhes dera o sangue.
Depois de transpor as terras baixas e de começar a subir, galopou com mais rapidez, porque o solo encontrava-se mais duro e a água seguia cursos naturais, pela encosta, ate perder-se na concha do Sulphur Creek.
No entanto, era ali que as temíveis faíscas se tornavam mais perigosas. Ted notou alguns carvalhos derrubados, abertos pelos raios.
E perto já do velho rancho, uma daquelas descargas destroçou o seu centenário olmo, que se abateu como um gigante decapitado. O alazão encabritou-se e o jovem teve de utilizar toda a sua perícia para sossegá-lo.
Um novo som alertou o cavaleiro. Deteve a montada e estendeu o pescoço, procurando identifica-lo. Depressa soube de que se tratava. Eram os homens de Sulphur Valley.
— Vamos, amigo, vamos! — incitou o alazão, e meteu-o a galope.
Como um furacão penetrou na esplanada. Ao passar diante do barracão, gritou:
— Venham todos a casa! Sou Ted Boyce e os homens de Sulphur Valley seguem-me. Depressa!
De Um salto desmontou do cavalo e correu para o alpendre. A porta abriu-se e um clarão amarelado saiu por ela. O velho estava ali a sua espera.
E atras dele o chinês, com a carabina pronta a disparar. E também Castile, cujos grandes olhos se salientavam como duas manchas de tinta, imprecisos, mas carregados de intensidade.

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