— Como te atreveste a sair com este tempo, Hub? — perguntou Roland, enquanto se servia de cerveja.
Era alto, de membros compridos, ossudo e de carnes secas e morenas. Perfil nobre e fronte baixa, que confirmava a sua estreiteza mental. Distinguira-se no exército confederado, com o posto de capitão, pelo seu arrojo e ferocidade. Hub sabia que amava a esposa e a tratava bem, mas em certas ocasiões, como consequências dos disparates que ela dizia, dava-lhe grandes sovas.
— Trata-se do nosso pai — revelou Hub, por fim.
E contou o que ouvira. O irmão ouviu-o calado e imóvel, com os olhos pequenos e excessivamente juntos do nariz cravados num ponto invisível. Depois estremeceu e olhou o rapaz de tal maneira, que este teve vontade de levantar-se e fugir.
— Tens a certeza do que dizes? Não será nenhuma das tuas malditas fantasias?
— Não, não! Juro que ouvi! Julgas que, se não fosse assim, me atreveria a vir até aqui, com um tempo destes?
— Está bem. Então o caso é grave e não se pode perder tempo. É preciso avisar os outros ainda esta noite. Calvert!
Em poucos segundos Roland mobilizou vários homens e mandou-os chamar os irmãos e cunhados, com ordem para se reunirem em sua casa naquela mesma noite. A tormenta continuava e o vento cheirava agora a humidade, o que indicava que chovia a oeste, no deserto.
Em pouco mais de três quartos de hora chegaram os membros da família Boyce, com exceção de Ted, que fora levar o gado ao Kansas. Reuniram-se na sala principal, Silvestre com a mulher, a loura e angelical Kitty, e Nan com o marido, Waco.
— Tens a certeza de que ouviste isso, rapaz? — perguntou, desconfiado, Sil. — Não o terás inventado?
— Coisas destas não se inventam — interveio Waco.
O cunhado estava encostado à parede, sentado numa velha arca ao lado de Nan, que imitava a posição do marido.
— Se é verdade, o caso é grave — afirmou Sil. — Não procedemos bem ao deixar o pai sozinho, à mercê de qualquer aventureiro ou intrigante, quando saímos todos do seu lado. É velho e está exposto a cometer qualquer loucura.
— Nós não sabemos o que ela respondeu — observou Kitty. — No entanto, convém tomar uma atitude, quanto antes.
Os outros olharam-na com estranheza, como faziam sempre que ouviam a sua voz cortante e acerada, que não condizia com o rosto de querubim. Ainda não tinham conseguido habituar-se.
Todos sabiam que Sil era um sacerdote falhado. Tinha vocação para pastor e desejava evangelizar, mas um conjunto de circunstâncias impedia-o de realizar o seu sonho. Entre essas circunstâncias encontrava-se sua mulher, Kitty, que atravessara a sua vida como um autêntico demónio. Kitty era muito jovem, mas atrás do seu rosto adorável escondia uma vontade férrea, uma decisão inabalável e uma coragem fria, assim como uma dureza de sentimentos proporcional às outras características.
Era ela quem mandava em casa, quem resolvia a conduta a seguir por Sil, o qual lhe obedecia servilmente e a adorava ao ponto de fazer rir quantos o conheciam. No entanto, continuava com os modos e os pensamentos de um padre.
Era gordo, baixo, de mãos e pés pequenos, cara redonda, cabelos louros e olhos intensamente azuis, tão belos que, em pequeno, o escolhiam para figurar em certas festas da escola dominical, vestido de anjo e com umas asas douradas presas nas costas. Era frequente surpreendê-lo em arroubos místicos, com os lábios grossos a tremer em muda oração.
Grande contraste com eles apresentavam o cunhado Waco e a sua irmã Nan, que se pareciam fisicamente. Ambos eram morenos, tinham cabelos negros e gordurosos, feições grosseiras, nas quais sobressaíam o nariz, que parecia um bico carniceiro, os lábios grossos e os olhos bovinos, de olhar húmido e pegajoso. Os seus gestos eram repousados e serenos, e com eles pretendiam demonstrar dignidade, embora muitas vezes fizessem lembrar movimentos de abutres famintos.
Waco era o administrador dos bens dos Boyces — cargo que ocupava já antes do casamento com Nan — e diretor do banco de Sulphur Valley. Constava que era de origem semita, coisa que negava com a boca e confirmava com os atos.
Encontrara em Nau a companheira perfeita, pois era materialista como ele, capaz de reagir apenas em contacto com o ouro, julgando as coisas pelo seu preço e alimentando o corpo de restos e desperdícios. Tinham três filhos parecidos com eles, gordos, lustrosos, amigos já de tocar com as mãozitas em moedas de ouro e de brincar a emprestar dinheiro e a vender objetos.
— Que dizes tu, Roland? — perguntou Sil, e o olhar de todos convergiu para o irmão mais velho.
— É preciso expulsar essa mulher lá de casa! — ripostou o interpelado. — Assim ficará o assunto resolvido.
— Ainda não sabemos se ela aceitou a proposta — insistiu Kitty —, e isso é um pormenor muito importante.
Era alto, de membros compridos, ossudo e de carnes secas e morenas. Perfil nobre e fronte baixa, que confirmava a sua estreiteza mental. Distinguira-se no exército confederado, com o posto de capitão, pelo seu arrojo e ferocidade. Hub sabia que amava a esposa e a tratava bem, mas em certas ocasiões, como consequências dos disparates que ela dizia, dava-lhe grandes sovas.
— Trata-se do nosso pai — revelou Hub, por fim.
E contou o que ouvira. O irmão ouviu-o calado e imóvel, com os olhos pequenos e excessivamente juntos do nariz cravados num ponto invisível. Depois estremeceu e olhou o rapaz de tal maneira, que este teve vontade de levantar-se e fugir.
— Tens a certeza do que dizes? Não será nenhuma das tuas malditas fantasias?
— Não, não! Juro que ouvi! Julgas que, se não fosse assim, me atreveria a vir até aqui, com um tempo destes?
— Está bem. Então o caso é grave e não se pode perder tempo. É preciso avisar os outros ainda esta noite. Calvert!
Em poucos segundos Roland mobilizou vários homens e mandou-os chamar os irmãos e cunhados, com ordem para se reunirem em sua casa naquela mesma noite. A tormenta continuava e o vento cheirava agora a humidade, o que indicava que chovia a oeste, no deserto.
Em pouco mais de três quartos de hora chegaram os membros da família Boyce, com exceção de Ted, que fora levar o gado ao Kansas. Reuniram-se na sala principal, Silvestre com a mulher, a loura e angelical Kitty, e Nan com o marido, Waco.
— Tens a certeza de que ouviste isso, rapaz? — perguntou, desconfiado, Sil. — Não o terás inventado?
— Coisas destas não se inventam — interveio Waco.
O cunhado estava encostado à parede, sentado numa velha arca ao lado de Nan, que imitava a posição do marido.
— Se é verdade, o caso é grave — afirmou Sil. — Não procedemos bem ao deixar o pai sozinho, à mercê de qualquer aventureiro ou intrigante, quando saímos todos do seu lado. É velho e está exposto a cometer qualquer loucura.
— Nós não sabemos o que ela respondeu — observou Kitty. — No entanto, convém tomar uma atitude, quanto antes.
Os outros olharam-na com estranheza, como faziam sempre que ouviam a sua voz cortante e acerada, que não condizia com o rosto de querubim. Ainda não tinham conseguido habituar-se.
Todos sabiam que Sil era um sacerdote falhado. Tinha vocação para pastor e desejava evangelizar, mas um conjunto de circunstâncias impedia-o de realizar o seu sonho. Entre essas circunstâncias encontrava-se sua mulher, Kitty, que atravessara a sua vida como um autêntico demónio. Kitty era muito jovem, mas atrás do seu rosto adorável escondia uma vontade férrea, uma decisão inabalável e uma coragem fria, assim como uma dureza de sentimentos proporcional às outras características.
Era ela quem mandava em casa, quem resolvia a conduta a seguir por Sil, o qual lhe obedecia servilmente e a adorava ao ponto de fazer rir quantos o conheciam. No entanto, continuava com os modos e os pensamentos de um padre.
Era gordo, baixo, de mãos e pés pequenos, cara redonda, cabelos louros e olhos intensamente azuis, tão belos que, em pequeno, o escolhiam para figurar em certas festas da escola dominical, vestido de anjo e com umas asas douradas presas nas costas. Era frequente surpreendê-lo em arroubos místicos, com os lábios grossos a tremer em muda oração.
Grande contraste com eles apresentavam o cunhado Waco e a sua irmã Nan, que se pareciam fisicamente. Ambos eram morenos, tinham cabelos negros e gordurosos, feições grosseiras, nas quais sobressaíam o nariz, que parecia um bico carniceiro, os lábios grossos e os olhos bovinos, de olhar húmido e pegajoso. Os seus gestos eram repousados e serenos, e com eles pretendiam demonstrar dignidade, embora muitas vezes fizessem lembrar movimentos de abutres famintos.
Waco era o administrador dos bens dos Boyces — cargo que ocupava já antes do casamento com Nan — e diretor do banco de Sulphur Valley. Constava que era de origem semita, coisa que negava com a boca e confirmava com os atos.
Encontrara em Nau a companheira perfeita, pois era materialista como ele, capaz de reagir apenas em contacto com o ouro, julgando as coisas pelo seu preço e alimentando o corpo de restos e desperdícios. Tinham três filhos parecidos com eles, gordos, lustrosos, amigos já de tocar com as mãozitas em moedas de ouro e de brincar a emprestar dinheiro e a vender objetos.
— Que dizes tu, Roland? — perguntou Sil, e o olhar de todos convergiu para o irmão mais velho.
— É preciso expulsar essa mulher lá de casa! — ripostou o interpelado. — Assim ficará o assunto resolvido.
— Ainda não sabemos se ela aceitou a proposta — insistiu Kitty —, e isso é um pormenor muito importante.
— Importante porquê? Assim evitaríamos, pelo menos, que respondesse.
— Um momento...
Waco levantara a mão direita, com lentidão, mas a solenidade do gesto foi desvirtuada pelo pouco comprimento do braço e pela mão papuda. No entanto todos lhe prestaram atenção, pois não fora inutilmente que os aconselhara durante tanto tempo acerca de todos os assuntos.
— O que propões, Roland, não é uma medida muito conveniente, pois parece que te esqueces do pai. Bastaria uma atitude dessas, para que levasse a mulher à frente de um juiz e se unisse a ela, apesar da nossa oposição. É preciso proceder com astúcia.
A palavra «astúcia» adquiria um significado especial nos beiços grossos de Waco, pois era essa a divindade a que rendia culto... Quase a pronunciava com reverência.
— Que faremos então? — quis saber Sil.
— Iremos visitá-lo' e esta mesma noite. Há tempo que não cumprimos esse dever. De caminho falar-lhe-emos do assunto... ou talvez seja ele que o aborde. Então faremos as considerações que julgarmos justas, pois estou certo de que desistirá da ideia quando compreender o que semelhante ato lhe acarretaria.
A ideia foi aceite e puseram-se todos a caminho, deixando as mulheres em casa.
— Em menos de uma hora irá por aqui um pandemónio observou Roland, ao ver como as nuvens se acastelavam.
À luz lívida dos relâmpagos a planície de Sulphur apresentava um aspeto fantasmagórico, com os carvalhos erguidos no meio dos campos de algodão, ao norte, e os catos a oeste e ao sul. As descargas elétricas sucediam-se agora com intervalos de segundos.
Ao aproximarem-se do rio, ouviram o bramido furioso das águas.
— Com os demónios, podíamos ter deixado a visita para amanhã! — resmungou Sil, que não gostava de cavalgar com bom tempo, quanto mais sob a ameaça iminente da tormenta.
— Parece que não conheces o velho — replicou Roland. — Se se lhe meteu a ideia na cabeça, é capaz de querer pô-la em prática amanhã mesmo.
Desceram ao povoado, cujas ruas estavam desertas, pois erguiam-se nuvens de pó quase de passo em passo e papéis e latas rolavam por todos os lados, e meteram pelo caminho que levava a «Sulphur Ranch».
Mas avistaram a casa afrouxaram instintivamente o passo.
— O velho não vai gostar nada desta visita! — exclamou de novo Sil.
— Claro que não, mas que vá para o diabo! — Roland estava furioso e não o escondia. — Não consentirei que entregue a fazenda àquela bruxa! E quanto a ela...
Não era preciso explicar o que pensava. Os irmãos e Waco olharam-no com apreensão. Desmontaram no pátio e ataram as montadas aos postes. Roland, ao verificar que a porta estava fechada bateu com violência.
— Calma, irmão — recomendou-lhe Waco.
Após alguns segundos de espera e quando o mais velho dos Boyces ia a bater de novo, a pesada porta abriu-se e apareceu o rosto amarelo e enrugado de um chinês que observou os quatro homens com os olhinhos pretos cheios de temor.
— Patlão estai a dolmil — informou.
Roland empurrou-o e atirou-o de cangalhas pelo chão fora.
— Não venhas com histórias, Leng! — ordenou o irritado primogénito. — Sabemos que o velho não se deita a maior parte das noites, e mesmo que o fizesse ainda é muito cedo.
— Por favor, Roland! — suplicou Sil, que entrou ao lado do irmão.
Roland foi direito ao escritório de Walter Boyce. Sil e Waco seguiam-no, pálidos, e atrás deles Hub arrastava a perna enferma, com a mente cheia de adversários que pretendiam agarrá-lo e ameaçavam liquidá-lo.
Quando Roland girou o fecho e empurrou a porta do escritório, o aleijado recuou, como se receasse ver sair de lá um monstro. O pavor que lhe inspirava o autor dos seus dias era superior a qualquer consideração. Mas conseguiu arranjar coragem para meter a cabeça pela porta.
A sala era grande, como todas as da casa, e num canto erguia-se um estrado com um cadeirão e uma mesa.
Havia estantes e cadeiras, uma carpete puída cobria o chão e as janelas tinham cortinas. Na chaminé ardia lenha e «Nemésis», a cadela de Walter, estava estendida junto do calor. Grunhiu surdamente, ao ouvir a entrada dos visitantes, mas os anos impediram-na de mover-se.
Walter lia um livro grosso, com as pernas enroladas numa manta índia e um casaco preto sobre a camisa branca. Em cima da mesa, um candeeiro de petróleo. Um fumo acre enchia o aposento e irritava os olhos.
O velho Boyce era de estatura menos do que mediana, um anão comparado com os filhos, arcaboiço débil, ombros estreitos, pernas e braços delgados, em que a velhice pusera nódulos. Tinha a cabeça grande e a cara gorda há muito sulcada de rugas, vincos profundos que eram um mapa perfeito da sua vida acidentada, gravadas as paixões pelo cinzel da sua potente tenacidade.
A sua tortura consistira sempre em possuir o espírito de um gigante encerrado num corpo miserável, e aos esforços para tentar acomodar um no outro devia e enrugado do rosto. Os anos davam um ar de tragédia à sua luta constante. O homem de vontade férrea e valor indomável, que fundara um exército de gado naquele território, encontrava-se prisioneiro da implacável teia de aranha do tempo.
Levantou a cabeça do livro e cravou os olhos negros nos filhos. Roland adiantou-se, enquanto Sil e Waco permaneciam afastados, olhando à sua volta com desconfiança.
— Que aconteceu? Por que vieram esta noite... todos?
— Há algum tempo que não tínhamos notícias tuas respondeu com dureza o mais velho.
— Deixa-te de hipocrisias! A hora da minha morte deve estar próxima e vocês já a farejaram!
Roland apertou os punhos, com força, e Waco apressou-se a colocar-se ao seu lado e a fazer uma leve inclinação de cabeça. Sil também se aproximou, mas antes que o administrador abrisse a boca Roland disse:
— És injusto, pai. Se não vimos com mais frequência é porque a nossa presença parece desagradar-te.
Walter inclinou-se para diante, com as mãos apoiadas no braço do cadeirão e as veias do pescoço saídas de maneira impressionante. Roland recuou um passo.
— Não te enganas, Roland! Por que raio havia de ter prazer em ver-te? Casaste com uma louca, abandonaste esta casa, e em lugar de ires construir um futuro, como eu fiz, instalaste-te a um par de milhas, com a única preocupação de esperar que eu estique para caíres sobre este rancho como um coiote ávido de carne podre!
— Não, não!
Silvestre decidiu intervir, embora a gaguejar:
— Por que nos recebes sempre assim? Embora não acredites, estimamos-te e interessamo-nos pela tua sorte.
Como se lhe tivesse mordido uma rata assanhada, Walter soergueu-se mais da cadeira e Hub não pôde reprimir um pequeno grito ao vê-lo naquela atitude colérica.
— Cala-te, maldito padreca! És um saco de imundícies, um porco banhado no perfume barato da tua mulher. Que querem vocês? Por que vieram?
Chegara a vez de falar o administrador, cujas banhas tremiam, embora se esforçasse por disfarçá-lo.
— Pai — murmurou —, queríamos falar contigo de... bem, soubemos que pensas...
— Que pensas casar-te com uma maldita pele-vermelha, com uma bruxa repugnante! — berrou Roland, a tremer de cólera. — Não o toleraremos!
Desta vez Walter deixou cair a manta que lhe aquecia as pernas e o seu corpo separou-se toda da cadeira. Adiantou ainda mais a cara, quase até tocar a do primogénito que, por estar fora do estrado, ficava à sua altura.
— Impedi-lo-ás? Fora! Fora da minha casa! — rugiu. — Se dentro de um minuto não tiverem saído todos, mandá-los-ei expulsar a pontapé! Porcos! Desgraçados! Como se atrevem a ser insolentes na minha frente? Casar-me-ei amanhã mesmo, estão a ouvir? Fora, já disse!
«Nemésis» levantou-se e grunhiu coro mais força. De súbito, um trovão formidável fez tremer a casa toda e uma rabanada de vento abriu uma das janelas e fez tremer a luz do candeeiro de petróleo.
— Um momento...
Waco levantara a mão direita, com lentidão, mas a solenidade do gesto foi desvirtuada pelo pouco comprimento do braço e pela mão papuda. No entanto todos lhe prestaram atenção, pois não fora inutilmente que os aconselhara durante tanto tempo acerca de todos os assuntos.
— O que propões, Roland, não é uma medida muito conveniente, pois parece que te esqueces do pai. Bastaria uma atitude dessas, para que levasse a mulher à frente de um juiz e se unisse a ela, apesar da nossa oposição. É preciso proceder com astúcia.
A palavra «astúcia» adquiria um significado especial nos beiços grossos de Waco, pois era essa a divindade a que rendia culto... Quase a pronunciava com reverência.
— Que faremos então? — quis saber Sil.
— Iremos visitá-lo' e esta mesma noite. Há tempo que não cumprimos esse dever. De caminho falar-lhe-emos do assunto... ou talvez seja ele que o aborde. Então faremos as considerações que julgarmos justas, pois estou certo de que desistirá da ideia quando compreender o que semelhante ato lhe acarretaria.
A ideia foi aceite e puseram-se todos a caminho, deixando as mulheres em casa.
— Em menos de uma hora irá por aqui um pandemónio observou Roland, ao ver como as nuvens se acastelavam.
À luz lívida dos relâmpagos a planície de Sulphur apresentava um aspeto fantasmagórico, com os carvalhos erguidos no meio dos campos de algodão, ao norte, e os catos a oeste e ao sul. As descargas elétricas sucediam-se agora com intervalos de segundos.
Ao aproximarem-se do rio, ouviram o bramido furioso das águas.
— Com os demónios, podíamos ter deixado a visita para amanhã! — resmungou Sil, que não gostava de cavalgar com bom tempo, quanto mais sob a ameaça iminente da tormenta.
— Parece que não conheces o velho — replicou Roland. — Se se lhe meteu a ideia na cabeça, é capaz de querer pô-la em prática amanhã mesmo.
Desceram ao povoado, cujas ruas estavam desertas, pois erguiam-se nuvens de pó quase de passo em passo e papéis e latas rolavam por todos os lados, e meteram pelo caminho que levava a «Sulphur Ranch».
Mas avistaram a casa afrouxaram instintivamente o passo.
— O velho não vai gostar nada desta visita! — exclamou de novo Sil.
— Claro que não, mas que vá para o diabo! — Roland estava furioso e não o escondia. — Não consentirei que entregue a fazenda àquela bruxa! E quanto a ela...
Não era preciso explicar o que pensava. Os irmãos e Waco olharam-no com apreensão. Desmontaram no pátio e ataram as montadas aos postes. Roland, ao verificar que a porta estava fechada bateu com violência.
— Calma, irmão — recomendou-lhe Waco.
Após alguns segundos de espera e quando o mais velho dos Boyces ia a bater de novo, a pesada porta abriu-se e apareceu o rosto amarelo e enrugado de um chinês que observou os quatro homens com os olhinhos pretos cheios de temor.
— Patlão estai a dolmil — informou.
Roland empurrou-o e atirou-o de cangalhas pelo chão fora.
— Não venhas com histórias, Leng! — ordenou o irritado primogénito. — Sabemos que o velho não se deita a maior parte das noites, e mesmo que o fizesse ainda é muito cedo.
— Por favor, Roland! — suplicou Sil, que entrou ao lado do irmão.
Roland foi direito ao escritório de Walter Boyce. Sil e Waco seguiam-no, pálidos, e atrás deles Hub arrastava a perna enferma, com a mente cheia de adversários que pretendiam agarrá-lo e ameaçavam liquidá-lo.
Quando Roland girou o fecho e empurrou a porta do escritório, o aleijado recuou, como se receasse ver sair de lá um monstro. O pavor que lhe inspirava o autor dos seus dias era superior a qualquer consideração. Mas conseguiu arranjar coragem para meter a cabeça pela porta.
A sala era grande, como todas as da casa, e num canto erguia-se um estrado com um cadeirão e uma mesa.
Havia estantes e cadeiras, uma carpete puída cobria o chão e as janelas tinham cortinas. Na chaminé ardia lenha e «Nemésis», a cadela de Walter, estava estendida junto do calor. Grunhiu surdamente, ao ouvir a entrada dos visitantes, mas os anos impediram-na de mover-se.
Walter lia um livro grosso, com as pernas enroladas numa manta índia e um casaco preto sobre a camisa branca. Em cima da mesa, um candeeiro de petróleo. Um fumo acre enchia o aposento e irritava os olhos.
O velho Boyce era de estatura menos do que mediana, um anão comparado com os filhos, arcaboiço débil, ombros estreitos, pernas e braços delgados, em que a velhice pusera nódulos. Tinha a cabeça grande e a cara gorda há muito sulcada de rugas, vincos profundos que eram um mapa perfeito da sua vida acidentada, gravadas as paixões pelo cinzel da sua potente tenacidade.
A sua tortura consistira sempre em possuir o espírito de um gigante encerrado num corpo miserável, e aos esforços para tentar acomodar um no outro devia e enrugado do rosto. Os anos davam um ar de tragédia à sua luta constante. O homem de vontade férrea e valor indomável, que fundara um exército de gado naquele território, encontrava-se prisioneiro da implacável teia de aranha do tempo.
Levantou a cabeça do livro e cravou os olhos negros nos filhos. Roland adiantou-se, enquanto Sil e Waco permaneciam afastados, olhando à sua volta com desconfiança.
— Que aconteceu? Por que vieram esta noite... todos?
— Há algum tempo que não tínhamos notícias tuas respondeu com dureza o mais velho.
— Deixa-te de hipocrisias! A hora da minha morte deve estar próxima e vocês já a farejaram!
Roland apertou os punhos, com força, e Waco apressou-se a colocar-se ao seu lado e a fazer uma leve inclinação de cabeça. Sil também se aproximou, mas antes que o administrador abrisse a boca Roland disse:
— És injusto, pai. Se não vimos com mais frequência é porque a nossa presença parece desagradar-te.
Walter inclinou-se para diante, com as mãos apoiadas no braço do cadeirão e as veias do pescoço saídas de maneira impressionante. Roland recuou um passo.
— Não te enganas, Roland! Por que raio havia de ter prazer em ver-te? Casaste com uma louca, abandonaste esta casa, e em lugar de ires construir um futuro, como eu fiz, instalaste-te a um par de milhas, com a única preocupação de esperar que eu estique para caíres sobre este rancho como um coiote ávido de carne podre!
— Não, não!
Silvestre decidiu intervir, embora a gaguejar:
— Por que nos recebes sempre assim? Embora não acredites, estimamos-te e interessamo-nos pela tua sorte.
Como se lhe tivesse mordido uma rata assanhada, Walter soergueu-se mais da cadeira e Hub não pôde reprimir um pequeno grito ao vê-lo naquela atitude colérica.
— Cala-te, maldito padreca! És um saco de imundícies, um porco banhado no perfume barato da tua mulher. Que querem vocês? Por que vieram?
Chegara a vez de falar o administrador, cujas banhas tremiam, embora se esforçasse por disfarçá-lo.
— Pai — murmurou —, queríamos falar contigo de... bem, soubemos que pensas...
— Que pensas casar-te com uma maldita pele-vermelha, com uma bruxa repugnante! — berrou Roland, a tremer de cólera. — Não o toleraremos!
Desta vez Walter deixou cair a manta que lhe aquecia as pernas e o seu corpo separou-se toda da cadeira. Adiantou ainda mais a cara, quase até tocar a do primogénito que, por estar fora do estrado, ficava à sua altura.
— Impedi-lo-ás? Fora! Fora da minha casa! — rugiu. — Se dentro de um minuto não tiverem saído todos, mandá-los-ei expulsar a pontapé! Porcos! Desgraçados! Como se atrevem a ser insolentes na minha frente? Casar-me-ei amanhã mesmo, estão a ouvir? Fora, já disse!
«Nemésis» levantou-se e grunhiu coro mais força. De súbito, um trovão formidável fez tremer a casa toda e uma rabanada de vento abriu uma das janelas e fez tremer a luz do candeeiro de petróleo.
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