quarta-feira, 6 de julho de 2016

BUF118. CAP III

Da sua torre, Castile, a «zunhi», viu os irmãos atravessarem o pátio: Roland à frente, seguido por Sil e Waco e, a fechar a marcha, a arrastar-se lastimosamente, Hub. Grossas gotas de chuva começaram a cair.
A índia viu ainda Roland dizer qualquer coisa ao aleijado e este abanar a cabeça, numa negativa desesperada. Mas o mais velho agarrou-o pelos ombros, com fúria, e levou-o até ao alpendre, cujos degraus o obrigou a subir. Em seguida montaram e afastaram-se.
Hub demorou-se um bom par de minutos, sem se atrever a entrar em casa. Roland ordenara-lhe que ficasse e procurasse descobrir as intenções do velho. O aleijado tentara explicar ao irmão a insensatez do que lhe exigia, pois com certeza Walter dar-lhe-ia tal sova que o deixaria incapaz de espiar ou de fazer fosse o que fosse durante várias semanas. Hub receava, logicamente, que o pai deduzisse ter sido ele o informador do seu desejo de casar--se, e o seu medo era justificado, pois a sua deformidade resultara de um arrebatamento de ira de Walter, que o atirara de uma escada abaixo quando tinha apenas três anos.
Por isso correu, como pôde, para o quarto e nele se trancou. Não se enganou nos seus temores, pois não tardou a ouvir bater furiosamente à porta.
— Abre, verme retorcido — esganiçava-se o pai — que espreitas aos cantos, com medo que te pisem e façam vomitar todo o veneno que encerras!
O aleijado julgava chegada a última hora e batia os dentes, com o corpo coberto de suores frios. Mas as ameaças e as pancadas cessaram e ouviu a voz serena e grave de Castile:
— Que aconteceu, senhor?
— Esse verme, essa lesma imunda! Deve ter-nos ouvido, esta tarde, e foi a correr contar aos irmãos.
— E fez bem. O senhor devia tê-los informado. Deixe em paz o pobre garoto e lembre-se de que ele está assim por sua culpa.
Hub ouvia, aterrado, as palavras duras da índia, esperando a todo instante ouvir rebentar em maldições o autor dos seus dias, e também da sua desgraça. Mas, com grande surpresa sua, a voz de Walter fez-se ouvir, sim, mas suave e acalmada:
— Está bem, Castile. Mas por que te compadeces da sua situação e não da minha? Para bem dele, deves aceitar a minha proposta...
Afastaram-se e no cérebro de Hub operou-se, mais uma vez, o fenómeno insólito em que as palavras e os atos mudavam de valor e de significado. O que acabara de ouvir devia dispô-lo a favor da índia, mas, pelo contrário, aumentou o ódio e o medo que lhe tinha. Parecia--lhe que a atitude da mulher ocultava algum desígnio sinistro.
Dava às suas frases o sentido de que ela o considerava um estorvo à realização dos seus planos, pois estava no rancho e tomara conhecimento das intenções de Walter de fazê-la sua esposa. Com certeza que embruxara o velho com alguns daqueles pós que preparava no quarto e acabaria por matá-lo a ele também...
Esse pensamento deu-lhe forças para permanecer acordado, atento a qualquer acontecimento que se verificasse. Além disso a tempestade atingira o auge e não poderia descansar a ouvir o estrondo dos trovões e o uivo da ventania e a ver o clarão dos relâmpagos que inundavam o quarto.
Atreveu-se, por isso, a sair e a percorrer cautelosamente o corredor que conduzia à sala principal. Ao chegar verificou que havia luz no gabinete do pai e ouviu vozes, entre elas a de Castile.
Arrastou-se ainda com maiores precauções. Mergulhara de novo num dos, seus estados de irrealidade, ao ponto de não sentir o estorvo da perna e de lhe parecer flutuar numa nuvem, o que o impedia, também de ter medo. Era aquele o efeito que lhe produzia, sempre, o choque violento com a realidade.
— Quero que montem vigilância aturada — dizia Walter —; não me fio nessa matilha de velhacos.
— Não devia falar assim dos seus filhos — interveio Castile. — Eles não são velhacos, defendem apenas os seus direitos.
— Direitos? — repetiu Walter, com sarcasmo.
Hub espreitou por uma fresta e viu quem seu pai mandara chamar. Encontravam-se ali Tagus, o «zunhi», um tipo alto, musculoso, de cabelos negros e pómulos salientes, que lhe tornavam mais pequenos os olhos pardos. A irmã também era alta como ele, de corpo flexível e esbelto. Formavam os dois um par soberbo de exemplares da raça índia, fortes, ágeis e formosos. Além deles encontravam-se presentes Rudy, Dilley e o chinês Leng. Rudy e Dilley eram peões, o segundo um septuagenário já cansado e o primeiro um ruivo robusto, há pouco tempo ao serviço do rancho. Walter entregava-lhes, no momento em que Hub espreitou, umas carabinas que tirara de um armário.
-- Direitos? — repetiu. — Não têm nenhuns, Castile. O que único que poderia exigi-los é Ted, e esse bem sabes que não o fará. Os outros fugiram das responsabilidades e do perigo...
— Não terão fugido, antes, dos maus tratos?
Walter fitou a índia com uma expressão indecifrável, mas, como sempre, rendeu-se. A rapariga apoderara-se da sua vontade.
— É possível — confessou, com voz rouca. — Mas isso não os desculpa, Castile. Se fossem homens verdadeiros, ou ela, Nan, uma verdadeira mulher, teriam lutado, teriam procurado a sua vida fora deste rancho e não na cómoda proximidade dos seus postos de vigilância. Estão à espera de que eu morra para caírem em cima de tudo isto e reparti-lo! Mas juro que, para que tal 'não suceda, serei capaz de deitar fogo a todas as minhas propriedades! Eles não sabem...
E desatou a rir, com um riso que correspondia ao autêntico demónio que fora e se consumia agora num montão de ossos e músculos corroídos pela idade e pela doença.
— Não verão nem um cêntimo, Castile! — afirmou, entre gargalhadas. — Esperam herdar, mas terão uma grande surpresa!
— Não é possível que tenha feito semelhante coisa! — exclamou Castile, num tom de verdadeiro susto, enquanto os outros escutavam meio aparvalhados, como se nada entendessem.
— Por que não? Ainda não está em regra, mas estará amanhã, Castile, quando nos casarmos.
— Não pense nisso! — replicou com firmeza a índia. — Nunca consentirei em semelhante casamento, e muito menos nessas condições. Não, senhor, agora menos do que nunca. Deve estar louco, parece querer desafiar todos os poderes do mundo.
— Castile, amanhã casarás comigo — afirmou Walter, num tom novo. — Terás de fazê-lo, com mil raios, ou juro-te que os acontecimentos se precipitarão. Depois da' visita desses... idiotas, não podes recusar. Não compreendes? Estão furiosos e lançar-se-ão contra ti assim que tiverem oportunidade para isso. A única maneira de contê-los é pô-los ante o facto consumado. Tu e eu casados ao amanhecer, e morderão o freio como potros por domar!
Pelos vistos achava tudo aquilo muito divertido, pois voltou a rir-se. No entanto calou-se bruscamente e fitou os olhos maldosos nos servidores.
— Temos de estar vigilantes repetiu. — Conheço o Roland e sei que não hesitaria em atacar à menor oportunidade. Se te apanhasse, Castile... Bem, tu, Ruby, e tu, Dilley, ficarão no dormitório com as carabinas preparadas, ficando um de sentinela enquanto o outro dorme; render-se-ão de duas em duas horas. Se os virem chegar, não lhes cortem o passo, deixem-nos aproximar. Tu, Tagus, e tu, Leng, farão o mesmo, mas aqui dentro. E agora vão-se embora para os vossos postos.
Os homens saíram e Hub coseu-se com a parede, vendo-os afastar-se até à porta principal. Estava mais assustado do que nunca, pois compreendia o significado daquelas medidas. Talvez a visita dos irmãos tivesse sido um grande erro.
Como havia de avisá-los agora? Tagus ou o chinês vê-lo-iam, se tentasse escapar-se...
Ouviu ainda Castile, sempre com a mesma voz comedida e profunda:
— Não me agrada o que faz, senhor, está a dar-lhes razão. Ver-me-ão como uma usurpadora, e é nisso mesmo que deseja transformar-me. Vai tirar-lhes o que lhes pertence...
— Não lhes pertence nada, Castile! — interrompeu-a o velho. — Nunca lhes pertenceu. Quando para aqui vim, há quarenta anos, os únicos habitantes desta terra eram os teus antepassados, é a eles que pertence o rancho e quanto ele contém. É isso que te proponho: se casares comigo, no momento do casamento farei um testamento pelo qual todas as minhas propriedades passarão de novo para o teu povo.
Houve um silêncio significativo. A oferta era, sem dúvida, tentadora.
— O Governo nunca consentiria em tal cedência! — comentou por fim a índia.
— Claro que consentirá! Posso deixar os meus bens a quem me apetecer. Não o farei como imaginas, a uma tribo, repartirei toda a propriedade entre os «zunhis» que atualmente habitam Sulphur Valley. Compreendes agora? Beneficiarei uma quantidade de indivíduos, não um povo, e assim restituirei o que lhes tirei.
Nova pausa. Ao soar de novo, a voz da índia parecia diferente:
— Está bem — declarou. — Se é por esse motivo, acedo... mas com a condição de que os seus filhos também sejam beneficiados pela distribuição. No fim de contas, é o menos que se lhes pode fazer. Assim terão de viver, se quiserem, em pé de igualdade com os meus.
— Aceito.
Hub não quis esperar mais. Agora tinha a certeza de que a traição se consumara, de que haviam sido despojados em favor dos miseráveis «zunhis», que morriam embrutecidos pelo álcool e por toda a espécie de doenças nas cabanas da povoação.
Era horrível, monstruoso, mas acontecera. Hub meteu--se no quarto e fechou-se de novo. A tempestade atingira o auge. Os trovões ribombavam quase em cima do rancho e uma luz vivíssima, que iluminou o quarto como se fosse dia, cegou-o por momentos. Logo a seguir, a chicotada elétrica de um raio estalou a menos de duzentos metros.
A chuva caía torrencialmente, batendo no telhado com ímpeto feroz. Hub via-se impotente, incapaz de fazer fosse o que fosse. Mesmo que conseguisse iludir a vigilância de Tagus e do chino, não chegaria, com semelhante temporal, sequer à povoação.
Desesperado e a chorar de raiva, atirou-se para cima da cama e assistiu ao desfilar lento dos segundos, acompanhados pelo bater da chuva. As forças da natureza debatiam-se num combate colossal, sem que ele pudesse intervir.
Mas, de repente, tudo serenou. A tempestade pareceu ceder, embora por curto prazo, e a chuva tornou-se menos violenta. Então o aleijado saltou da cama e foi abrir a janela. O seu quarto dava para as traseiras da casa.
 Apesar da febre, do medo e da excitação que o consumiam, uma reflexão se lhe impôs: se conseguisse sair por ali e avisar os irmãos, estes poderiam entrar pelo mesmo sítio e evitar o crime que se preparava.
Hub não hesitou. Subiu para o parapeito da janela e sentou-se, a olhar para fora. O céu estava negro como breu, mas a tempestade amainara de facto.
A chuva continuava a cair, mas fraca, e os relâmpagos iluminavam de vez em quando as trevas, mas sem trovões ou, então, muito distantes. O vento passara quase por completo. O aleijado calculou que a terra devia estar fofa, por causa da água, e que a queda, portanto, não o magoaria muito. E saltou.
Torceu a perna doente e teve de morder a mão, até fazer sangue, para não gritar como um danado. Por fim, coxeando mais do que nunca, encaminhou-se para as árvores.
Chegou à alameda encharcado, ofegante, e á sofrer atrozmente daquele membro inútil. Convencido já de que da casa não o veriam, rodeou o bosque para verificar se o cavalo continuava atado junto ao alpendre ou se Tagus o recolhera.
Não estava, o que o obrigava a seguir a pé até à povoação. Aí poderia ir a casa de Waco, ao banco. O empreendimento assustaria qualquer pessoa normal, pois o caminho estava intransitável, e se a cavalo seria perigoso, a pé então nem era bom pensar.
Mas o mais jovem dos Boyces não podia fazer outra coisa senão avançar. E avançou, a chapinhar na lama, a escorregar, transformado numa sopa humana, convencido de que todas as forças do mundo se concitavam para perdê-lo, convertendo, em imaginação, as árvores em grupos de pessoas e as rochas em gigantes que o esperavam.
Para si o mundo inteiro era aquele pedaço de deserto, e Hubert Boyce o único sobrevivente de urna imensa catástrofe, um herói que se afadigava para chegar ao local onde estavam os outros homens e mulheres e salvá-los.

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