segunda-feira, 4 de julho de 2016

BUF118. CAP I

No horizonte distinguiam-se nuvens de tormenta, negras, túrgidas, empurradas pelo vento, tornadas ainda mais tenebrosas pelos relâmpagos lívidos que de vez em quando as cortavam.
Colunas de pó amarelo formavam fantásticas composições arquitetónicas na vasta solidão do deserto. Arbustos e folhas secas rodopiavam e iam enlaçar-se nas estacas da cerca, e a tabuleta onde se lia «Sulphur Ranch» batia com força, produzindo estalidos secos.
Visto através das colunas de pó, o sol parecia a caveira velha de uma vaca. O fenómeno da fosforescência que se verificava nas estacas e nas copas da alameda de azinheiros demonstrava quanto a atmosfera estava carregada de eletricidade.
Na fundura do vale pelo qual corria o Sulphur Creek, com as suas águas turbulentas cor de ocre, os robles que formavam uma barreira protetora em redor do rancho agitavam-se com um rumor surdo, ameaçador. Apesar deles, a areia invadia o pátio dianteiro e o alpendre com a espessa trepadeira que o cobria quase por completo.
Hub o «Aleijado», o filho mais novo de Walter Boyce, resolveu dar uma volta pelo enorme casarão, contagiado pela excitabilidade do ambiente. Gostava de andar pelas salas amplas, sentindo-se único habitante do desordenado edifício que lhe parecia sempre novo, com cantos inexplorados.
No entanto, não se atrevia a visitar aposentos que lhe inspiravam um temor obscuro: o escritório do pai, por exemplo, e a torre do fundo, habitação da índia «zunhi» que tratava do velho.
Enquanto atravessava os quartos desertos, Hub experimentava a sensação perturbadora de que estavam povoados de personagens irreais e assistia, em imaginação, a reuniões estranhas e ao desenrolar de situações complicadas e sempre iguais.
O seu cérebro exaltado fazia com que tais fantasmas fixassem a atenção na sua pessoa estropiada e começassem por afrontá-la e por rir-se da sua deformidade para acabarem a lamentá-lo e a enaltecê-lo, graças aos feitos extraordinários que cometia.
Tais feitos não eram muito claros, mas resumiam-se mais ou menos em arriscar a vida para salvar a de alguém — precisamente a de quem mais o odiava —, ou em descobrir uma conjura contra os habitantes da povoação vizinha ou, ainda, algum terrível cataclismo. Frequentemente, nos seus devaneios, a compaixão e a admiração dos seus encarniçados perseguidores manifestavam-se sobre o seu cadáver, pois, no seu desejo de se considerar vítima, Hub não recuava ante a própria imolação.
Mas, naquela tarde, o seu passeio conduziu-o à porta, para si sagrada, do escritório do pai. Parou, com o coração a bater violentamente, pois a pesada porta de carvalho estava entreaberta e deixava ouvir as vozes do velho e da maldita feiticeira que tanto medo inspirava ao aleijado.
A curiosidade venceu o medo e o rapaz aproximou-se de um dos lados da entrada. Mal ouviu as primeiras palavras, violento tremor lhe sacudiu o corpo:
— Não podes opor-te, Castile — dizia o velho com a sua voz potente, que fazia supor pertencer a um jovem forte e não a um septuagenário meio paralisado pela arteriosclerose. — Tenho remoído o caso todas estas noites em que a maldita dor do braço não me deixa dormir. Assim pago os teus serviços... Não, não! Sei o que estás a pensar mas enganas-te. A verdade é que gosto de ti. Bem sei que é um amor tardio e que me desespero por a seiva já não percorrer o tronco e as ramas, para gerar novos frutos. Mas é a verdade, com a breca!
— Já pensou no que dirão os seus filhos? — perguntou a voz grave e pastosa da índia. — Jamais concordariam com semelhante ideia...
— Os meus filhos?! — exclamou Walter, com uma gargalhada que parecia um atirar de pedras sobre a sua descendência. — Que têm eles com semelhante assunto? Acaso se lembram de mim?
— No entanto, nesta ocasião lembrar-se-iam — replicou Castile, sem modificar o tom da voz. — Agradeço--lhe a ideia, senhor, mas considero-a uma loucura. Sabe muito bem que estarei sempre ao seu serviço. Sendo assim, para que é precisa tal união?
— Não compreendes, Castile, não compreendes.
Hub desejava fugir, mas, ao mesmo tempo, sentia-se incapaz de mover-se. Os seus sentimentos misturavam-se, produzindo-lhe uma angústia mental indescritível. As palavras seguintes do seu pai foram, no entanto, bastante claras para si:
— Preciso de ti, Castile, não posso suportar a minha solidão. Considero-me morto, como se devesse ter morrido anos atrás, quando a meta da minha vida, a luta, os filhos, se afastaram do alcance das minhas forças. Estou condenado a esperar, dentro da própria sepultura, a morte real, sem poder, sequer, pedir ao inferno que a acelere. Compreendes o que sofro? Quero que compreendas, Cas-tile, pois ajudar-me-ia a abreviar o tempo que me falta... Pensa bem.
O aleijado conseguiu arrancar-se à mórbida fascinação que as palavras do pai lhe causavam e afastar-se. O singular foi que, à medida que se afastava, o que ouvira perdia a realidade e misturava-se às suas fantasias, até transformar-se numa conspiração contra a sua pessoa.
Sem compreender porquê, parecia-lhe que a união da índia com o pai só poderia prejudicá-lo. Naquela tarde, quando Castile entrou no seu quarto para dar-lhe a maçagem na perna, como fazia havia mais de um ano, percorreu-o um frio espantoso, que se lhe alojou no peito. Os enormes olhos de Castile fitaram-no e o seu olhar pareceu-lhe, mais do que nunca, adivinhar os seus pensamentos mais recônditos.
— Devias fazer mais exercício — disse-lhe. — De nada servem as maçagens se não te esforçares por ajudar-te a ti mesmo. Já te disse muitas vezes que nadar te faria bem...
O coração de Hub pareceu voltar-se-lhe ao pensar no que aconteceria se seguisse aquele conselho. Viu-se dentro do tanque, sem poder mover-se, e inclinada para ele, com as mãos estendidas para afogá-lo, Castile...
— Que tens? — perguntou-lhe a índia, assustada com o estranho sobressalto do rapaz, que se levantara com os olhos desorbitados.
— Nada, nada...
A índia observou-o durante um instante e, depois, deixou-o. Mal a viu sair, Hub saltou da cama, correu para a porta e fechou-a à chave. Numa mesita encontrava-se um jarro de água. O rapaz encheu um copo e ia a bebê-la, mas, já a tocar-lhe com os lábios, lembrou-se de que podia estar envenenada e despejou-a para o chão. Passou quase uma hora torturado por uma grande sede e pela visão de ferozes assassinos que, pagos por Castile, tentavam liquidá-lo.
No turbilhão das suas ideias persistia a certeza de que precisava de agir, mas agir de facto, não como acontecia nas suas lucubrações. Tinha de avisar os irmãos, de pô-los ao corrente do que se tramava. Sabia bem qual seria a reação do mais velho, Roland, do segundo, Silvestre, e do seu cunhado, Waco.
Faltava Ted, mas esse fora a Kansas levar gado.
Encharcado em suor, atreveu-se a sair do quarto, resolvido a abandonar o rancho e a fazer qualquer coisa. Arrastando a perna inútil, chegou à sala principal. A luz longínqua dos relâmpagos iluminava, Por breves intervalos, o conteúdo da vasta quadra, filtrando-se pelos vidros sujos das duas janelas.
Conseguiu transpor o corredor e sair para o alpendre, onde uma rabanada de vento quase o atirou ao chão. Olhou as nuvens negras, que se aproximavam. Sobre a sua cabeça brilhavam já as estrelas, a que as súbitas rajadas de vento e de poeira pareciam arrancar reflexos novos.
Hub lançou-se à aventura de atravessar o espaço descoberto. Logrou-o, embora ao encontrar-se sob as árvores julgasse que ia sufocar, tanto lhe batia o coração. O telheiro onde ficava o cavalo dócil e baixo que o capataz Dany adestrara para ele erguia-se perto do barracão dos trabalhadores. Só estavam no rancho cerca de meia dúzia de homens, pois os restantes, incluindo Dany, tinham acompanhado Ted. Entre aqueles contava-se o cozinheiro e o tratador dos cavalos, irmão de Castile, um «zunhi» que costumava olhá-lo com ar trocista quando lhe fazia alguma pergunta acerca dos animais a seu cargo.
Se o descobrisse a tentar sair com o cavalo, iria com certeza avisar Walter. Apesar de assustado até à medula, Hub dirigiu-se para a cavalariça dos puro-sangue, a uns duzentos metros da sua montada mansa. Tagus, o «zunhi», dormia ali, mas Hub queria assegurar-se.
Aproximou-se de uma das janelas, com enorme esforço, e espreitou para dentro da cocheira, onde reinava a mais impenetrável escuridão. Mas teve sorte, pois de mistura com os relinchos dos cavalos ouviu a respiração do pele--vermelha: o seu ressonar era inconfundível.
Com maior rapidez, alcançou o outro telheiro e, na escuridão, localizou o cavalo, que o acolheu com um breve relincho. Hub apressou-se a passar-lhe as mãos pelo pescoço, para que se acalmasse, não se atreveu a pôr--lhe mais do que a cabeçada e trouxe-o para fora.
Nunca o montara em pelo, mas sentiu-se mais confiante quando se encontrou sobre o seu lombo roliço e fofo. Esporeou-o com a perna sã, na direção do povoado.
Sulphur Valley encontrava-se dentro da curva do arroio, numa elevação de terreno, numa espécie de plataforma que sobressaía sobre a corrente de água. Eram umas duzentas casas com paredes de adobe e tetos de palmeira, algumas com coberturas de zinco, e mais abaixo cerca de cem cabanas onde habitavam mestiços e peles--vermelhas.
O rancho de Roland ficava do outro lado do povoado, pelo menos a uma milha de distância, no centro das colinas nuas de Tahoka, e o de Sil ainda mais longe, na região do Lago Amarelo, onde nascia o rio do mesmo nome que ia ligar-se ao Sulphur. Ambos deviam a sua cor à existência de jazigos de enxofre nas proximidades.
Embora em Sulphur Valley vivesse o cunhado Waco, casado com sua irmã Nan, tal não lhe ocorreu e passou pela povoação a galope, agarrando-se desesperadamente ao pescoço do animal, com os cabelos ruivos em desordem.
Havia luzes nalgumas casas e vários indivíduos que se encontravam à porta do «saloon» viram, espantados, surgir o estranho cavaleiro. Seguiram-no vários cães, durante um bocado, a ladrar às pernas do cavalo.
Meia hora depois, ofegante como se tivesse sido ele quem correra, extenuado e com os dentes a bater de medo, chegou ao rancho de Roland. Era um casarão de aspeto feio, todo de madeira e com algumas roseiras entrelaçadas nas colunas do alpendre.
A pouca distância havia vários campos de trigo e vários pomares, que se espaçavam gradualmente e se misturavam com catos, saguaros e ocotillos, para os lados do sul.
No momento em que ia a desmontar, um relâmpago mais forte iluminou a paisagem, contra a sombria garganta de lobo que era, o horizonte. O' aleijado estremeceu e apressou-se a subir os três degraus que conduziam à moradia.
Atendeu-o Calvert, o anão cambaio que fazia o serviço da casa. Parecia um buldogue a andar apoiado nas patas traseiras, com a cabeçorra enorme e os olhinhos negros, de expressão perversa. Hub viu Berta, a cunhada, que cosia sentada junto de um cesto de roupa.
— Roland? — perguntou o rapaz, com voz trémula. Berta levantou-se e foi ao seu encontro.
— Qualquer coisa me dizia que esta noite aconteceriam coisas estranhas — observou, sem modificar a expressão do rosto. — Vimos uma lebre preta...
Hub engoliu em seco. Não gostava da mulher do irmão, tinha-lhe medo porque a sua cabeça não regulava bem. Dizia coisas absurdas que deixavam suspensos os que a ouviam, mas não se podia chamar-lhe louca, pois cumpria os seus deveres de mulher casada e mãe de dois filhos com absoluta normalidade. Dava a impressão, contudo, de que era apenas o seu corpo, já habituado, que executava os gestos quotidianos, enquanto a sua mente se povoava de visões incongruentes, que exprimia de forma brusca, inesperada, com palavras e risos que nada tinham a ver com o que a rodeava.
Era uma mulher alta, forte e loura, com olhos grandes, de um azul claro e frio. Sorriu ao cunhado, mostrando os dentes grandes e brilhantes.
— O Roland não se demora, foi ver o gado. Anda, senta-te nesta cadeira e põe a almofada debaixo da perna. O pai?
Voltou-se para Calvert e ordenou-lhe:
— Vai buscar um jarro de cerveja e um copo.
Hub sentou-se onde lhe fora indicado e observou a mulher do irmão com receio.
— O pai está bem... de saúde — respondeu, contendo as palavras porque lhe faltava ainda o fôlego e porque lhe lembrava o motivo que ali o levara.
— Há dias fui depor flores na sua sepultura declarou Berta, após uma curta pausa, de novo entregue à costura.
— Na sepultura de quem?
O aleijado sentia o coração subir-lhe à boca. Acalmou-o a entrada de Roland, que tapava o rosto com o lenço encarnado húmido, para defender-se da areia levantada pelo vento. Calvert apareceu também, com um jarro e um prato de amendoins descascados, que colocou na mesa do centro.
— Má noite se prepara — comentou o mais velho dos Boyces, que tirou o lenço do rosto e atirou o chapéu preto para um canto. — O gado está inquieto, mas não há tempo para metê-lo nos currais.
Como a confirmar as suas palavras, retumbou ao longe um trovão e pelas janelas entrou a luz de um relâmpago. Berta persignou-se e fez outros sinais estranhos, enquanto o vento soprava com força contra a casa.

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