Ted levantou-se cambaleante. Doíam-lhe todos os músculos e sentia a cara inchada. Mas o que mais o incomodava era a maldita chuva que o cegava e asfixiava. Sentia-se empapado, como se estivesse mergulhado num tanque.
Os relâmpagos pareciam diluídos naquela húmida cortina, apesar de retumbarem por cima da sua cabeça. Viu a ziguezagueante coluna elétrica do raio que atacou o depósito.
A muito custo, pois a lama tornava-lhe a roupa pesada, apesar de dissolvida pela água, dirigiu-se para o sítio onde deixara o cavalo. Era preciso chegar ao rancho e prevenir o pai de que os irmãos tencionavam ir ali, e não com bons propositos.
Ted estava convencido de que nada de bom aconteceria se Roland conseguisse apanhar Castile. O singular código moral daquele Boyce, com espirito de negreiro, não previa que se tivesse misericórdia de quem atentasse contra o que julgava seu direito indiscutível... ainda que fosse Um roubo.
Claro que Ted reconhecia que se comportara como um néscio ao meter-se, de modo tão inocente, no meio deles e desafiá-los. Devia ter previsto que o tratariam daquela maneira. E podia considerar-se com sorte por o terem deixado com vida, o que, por outro lado, demonstrava, sem sombra de dúvida, que estavam certos de levar a sua avante sem dificuldade.
O jovem, cambaleando debaixo do espesso manto de chuva, com os ouvidos surdos pelo retumbar dos trovões, conseguiu arrastar-se ate junto do cavalo. O pobre animal tiritava, com as orelhas encolhidas, escorrendo por todos os lados. No momento em que Ted deitou as mãos à sela, caiu-lhe em cima um alude.
Por três vezes escorregou e caiu na lama. Por fim Id conseguiu trepar para o lombo do alazão, mas teve de apertar os joelhos contra a sela, e mesmo assim o seu equilíbrio era instável. Contudo, o vigor regressava-lhe pouco a pouco e já lhe foi relativamente fácil desprender as rédeas e esporear a montada em direção ao cimo da rua.
A terra erguia-se em borbotões debaixo dos cascos e verdadeiros arroios corriam ji pelas valetas, engrossados pela água que tombava a jorros dos telhados dos alpendres.
As descargas iluminavam por breves segundos aquela massa aquosa, por entre a qual apareciam desenhadas, a traços incertos, as silhuetas das casas. Ao chegar o alazão perto das cabanas dos «zunhis», foi quando se incendiou o celeiro.
Ted colocou o lenço no nariz, de forma a ficar um espago entre ele e a boca que lhe permitisse respirar, e incitou a montada a acelerar o passo. A casa atingida pelo raio desmoronou-se quando passava por ela.
No caminho que conduzia ao «Sulphur Ranch», a desolação provocada pela tormenta causava calafrios. Ted esforcou-se por divisar o Estacado e surpreendeu-o o muro negro e tempestuoso que fechava todo o Oeste e o Norte da planície.
Diversas árvores surgiram na sua frente, arrastadas pelos arroios que corriam pelos desníveis e pelos sulcos do terreno. A pouca distancia, distinguiu as corridas de uns porcos, que grunhiam com desespero. E um pouco mais adiante, o cavalo quase tropeçou no corpo agachado e trémulo de um veado, perdido, sem dúvida, da manada.
Talvez a tormenta — pensou o jovem — detivesse os irmãos, embora não lhe parecesse provável. Roland estava assustado com as intenções do velho e temia que, se perdesse aquelas horas, já nada pudesse fazer ou a situação fosse muito pior.
No entanto, seria quase impossível transpor a distância que o separava do rancho. Ted notava que estava exposto a desviar-se da rota e a cair em qualquer buraco oculto pela água. E se o cavalo quebrasse as pernas, ele seria como um náufrago naquele mar de lama.
A vasta extensão do céu brilhou de repente, rasgando--se como uma peça de seda negra diante de uma fulgurante tesoura. Os olhos deslumbrados do cavaleiro viram o raio penetrar nas entranhas de uma azinheira, que se acendeu como um archote e tombou com majestosa lentidão.
Mas viram mais qualquer coisa, ou seja que o inusitado e violento fogacho descobria a figura de um cavaleiro que corria a galope para a povoação. Ted reconheceu-o e renunciou ao seu propósito de dirigir-se ao rancho. Aquele audacioso era Tagus, o irmão de Castile. O jovem lembrou-se da luta que tivera com ele e decidiu segui-lo, pois inquietava-o o que pudesse tramar. Qual seria a sua intencao ao dirigir-se para Sulphur Valley? Obrigou o alazão a voltar-se e esporeou-o na peugada do índio.
Ao entrarem na rua principal pelo lado das cabanas, um novo raio pegou fogo a uma delas. O cavalo montado por Tagus ergueu as patas dianteiras e o índio recorreu a toda a espécie de habilidades para domina-lo, mas acabou por escorregar-lhe do lombo e por cair na lama.
Levantou-se de um salto. Ted viu o «zunhi» cerrar os punhos, dar meia volta e sumir-se numa travessa. Seguiu-o, apesar de escuridão.
Mas em seguida novas descargas elétricas revelaram a sua presença, colado as paredes das cabanas, inclinado e deslizando com rapidez. Ate que chegou junto da escola, construída de troncos de cipreste e coberta de telhas.
Tagus atirou-se contra a porta, uma e outra vez. Ted deteve o cavalo e apeou-se. Estava intrigado. Não compreendia por que motivo o índio procedia assim. Encostou o alazão a parede da casa e afagou-lhe o pescoço encharcado para tranquilizá-lo.
Por fim, o «zunhi» derrubou o obstáculo que se lhe interpunha e entrou no edifício. Ted sabia que estava desabitado, porque o professor vivia no extremo oposto da povoação e ninguém ficava ali de vigilância, a não ser que tivessem mudado os hábitos desde os seus tempos de estudante.
Ia a entrar também quando reapareceu Tagus, que com as mesmas precauções e celeridade se dirigiu para o fundo da travessa. Ted seguiu-o.
Uma parte do solo cedeu, de saito, debaixo dos seus pés e enterrou-se ate aos joelhos. Saiu do buraco praguejando. Tagus desaparecera e as nuvens acinzentadas não lhe permitiram vê-lo. Recriminando-se pelo seu pouco cuidada, Ted fez marcha atrás e aproximou-se do cavalo. Onde se teria metido o maldito pele-vermelha e por que motivo derrubara a porta da escola?
Esperou, certo de que em breve obteria resposta. Com efeito, ainda não teriam decorrido dois minutos quando luz de Um relâmpago mais forte viu Um grupo de homens que entravam no edifício devassado por Tagus. Bom, não era necessário ser lince para descobrir o que pretendia o irmão de Castile. Qualquer coisa bastante logica, naturalmente.
Aqueles indivíduos não entravam na escola para receber as lições do velho Simpson, mas sim para escutarem alguma incendiária peroração do seu irmão de raça, a respeito, claro estava, do maldito testamento que pensava fazer Walter Boyce.
Prometia ser uma conferência interessante. Ted obrigou o cavalo a recuar e a sair da travessa. A chuva diminuiu de intensidade e, embora continuasse a flagelar aquele recanto do mundo, não o fazia com a fúria de momentos antes.
O jovem meteu o alazão nas minas do celeiro. Uma parte do teto conservava-se de 'pé e, como tinha um palheiro por cima, o armazém mantinha-se relativamente seco.
— Descansa aqui, amigo — sussurrou ao cavalo, dando-lhe palmadinhas nas ancas.
De boa vontade teria ficado ali também, deitado fogo a palha e posto a roupa a secar, mas tomou o caminho da escola e aproximou-se de uma das janelas. Não se enganara nas suas suspeitas. Acendera-se um candeeiro de querosene e o recinto estava ocupado por uns cinquenta membros da tribo «zunhi», enrolados nas suas mantas pintalgadas, com os rostos atentos virados para o estrado da secretaria do professor.
No lugar deste colocara-se Tagus, que lhes falava. Ted notou que continuavam a entrar pessoas, que se sentavam nos bancos e iam enchendo a aula. Tomou imediatamente uma resolução e encaminhou-se para a porta.
Um índio passou pelo sítio onde ficara, de costas apoiadas a parede. Deu Um passo para ele descarregou-lhe o punho fechado na testa. O «zunhi», que era velho e magro, caiu como Um fardo.
Ted tirou-lhe a manta e envolveu-se nela, entrou na escola e foi sentar-se num canto onde as sombras eram mais densas.
— ...temos de apressar-nos. Deixa-nos as terras, os campos que foram sempre nossos. Compreendem? Pensem nisto, pensem nisto...
Tagus falava-lhes em dialeto e fazia-o com a veemência de um candidato democrático do Sul. Mas a sua recomendação de que pensassem na tentadora dádiva de Walter Boyce parecia não ter surtido efeito, porque os índios continuavam estoicamente sentados, como se não o tivessem ouvido.
Ted conhecia-os bem, assim como a sua língua, para não saber que tudo aquilo era fachada. Com certeza estavam às voltas com as palavras do seu irmão de raça e estudando as possibilidades de se produzir Um aumento das rac5es de uisque ou dinheiro para comprar mantas e contas de vidro.
O jovem não pôde evita-lo, mas desconfiava que aqueles seres, mergulhados numa quietude estúpida, seriam incapazes de um movimento de rebelião ou sequer de defesa. Fosse pelo que fosse, decerto por culpa dos brancos, tinham degenerado e careciam de energias e de força. Bastaria uma rajada de vento para levá-los todos adiante.
Um dos presentes levantou-se e ergueu o braço. A sua cara poderia perfeitamente ser pendurada numa parede como a mascara do vício. Mas a sua voz era clara e serena.
— As tuas palavras são interessantes, irmão — disse. — Sem dúvida que são. Mas, por que motivo o velho Boyce deseja fazer uma coisa dessas? Acaso lhe tocaram o coração os sofrimentos do nosso povo? Parece-me pouco provável. Não será por querer-nos utilizar contra os filhos ou por ter pensado que uns herdeiros mortos são muito bons?
O jovem não teve outro remedio senão aplaudir no seu íntimo o astuto pele-vermelha. Indiscutivelmente, não eram os bons sentimentos que impeliam o velho a restituir-lhes as propriedades, das quais os despojara sem contemplac5es quarenta anos antes, mas sim porque eram a cartada que podia jogar contra os homens da povoação, visto não ter força suficiente para enfrentá-los e defender o seu capricho.
Era estúpido que não tivesse compreendido isso mais cedo. Essa era a cartada de Walter Boyce. E possivelmente fora ideia sua mandar Tagus realizar aquela reuniao.
— Os motivos não contam — disse Tagus, que tinha o aspeto de um autêntico caudilho do seu povo, direito, de tórax saliente, compridos braços musculosos e cabeça arrogante. — É possível que tenham razão; mas, fazendo o seu jogo, poderemos ganhar, de verdade, o que nos prometeu. Não podemos perder esta oportunidade. De contrário, não existirá esperança para nós, que depressa deixaremos de existir.
— Não temos armas — salientou a oponente.
— A única coisa que precisamos de fazer é ir ao rancho — explicou Tagus. — O velho nos dará as carabinas e as munições necessárias.
— De todos os modos, irmão, ainda não nos disseste por que motivo o velho Boyce quer fazer isso. Ouvimos dizer que tenciona casar-se com tua irmã Castile. É verdade?
— Sim. E ela está disposta a esse sacrificio desde que nos disponhamos a lutar para consolidar essa heranca. Reparem: tudo o que temos de fazer é montar guarda ao rancho e esperar os filhos do velho que irão para impedir o casamento. Quando nos virem lá, armados, compreenderão que perderam a partida e ir-se-ão embora.
O «zunhi» que replicara sentou-se e então levantou--se outro, mais novo e de melhor aspeto.
— Não nos agrada, Tagus — declarou sem mais delongas. — Podem retirar-se ou não. Por que lutaremos nos, realmente? Tu dizes-nos que o velho já assinou esse testamento e que ele entrará em vigor assim que se realizar o casamento, mas a tua irmã não está noiva de Ted Boyce? Não será tudo uma armadilha para que vocês Bois e esse maldito branco se apoderem do rancho e de quanto contem?
Era uma acusação feroz e Tagus acusou-a na brusca mudança do seu semblante, que não conseguiu dominar, a despeito da sua educação de pele-vermelha. Estendeu os braços e crispou os dedos.
— Amaldiçoado sejas, Panka! — bramiu por entre os dentes agudos. — O que disseste é...
Mas Panka abanou a cabeça e fez Um gesto com a mão, rejeitando o protesto.
— Todos sabemos isso, Tagus, e não nos deixamos convencer pela tua história. Já nos enganaram muitas vezes e não seremos tao estúpidos que nos prestemos a servir de isca para que outros levem a presa. Talvez seja verdade o que dizes, mas não nos cheira bem...
Tagus parecia disposto a atirar-se a ele. Vibrava de furor. E quando o raio caiu a umas cinquenta jardas da escola e o seu clarão encheu a aula, a sua figura adquiriu relevo dramático e aterrador.
Mas não teve tempo de fazer nenhum gesto. Coincidindo com a descarga que fez estremecer o edifício e quebrou os vidros das janelas, por estas surgiram os canos de varias carabinas e perto de meia dezena de habitantes brancos da povoação entraram pela porta, empunhando «Winchesters» e «Colts».
Os relâmpagos pareciam diluídos naquela húmida cortina, apesar de retumbarem por cima da sua cabeça. Viu a ziguezagueante coluna elétrica do raio que atacou o depósito.
A muito custo, pois a lama tornava-lhe a roupa pesada, apesar de dissolvida pela água, dirigiu-se para o sítio onde deixara o cavalo. Era preciso chegar ao rancho e prevenir o pai de que os irmãos tencionavam ir ali, e não com bons propositos.
Ted estava convencido de que nada de bom aconteceria se Roland conseguisse apanhar Castile. O singular código moral daquele Boyce, com espirito de negreiro, não previa que se tivesse misericórdia de quem atentasse contra o que julgava seu direito indiscutível... ainda que fosse Um roubo.
Claro que Ted reconhecia que se comportara como um néscio ao meter-se, de modo tão inocente, no meio deles e desafiá-los. Devia ter previsto que o tratariam daquela maneira. E podia considerar-se com sorte por o terem deixado com vida, o que, por outro lado, demonstrava, sem sombra de dúvida, que estavam certos de levar a sua avante sem dificuldade.
O jovem, cambaleando debaixo do espesso manto de chuva, com os ouvidos surdos pelo retumbar dos trovões, conseguiu arrastar-se ate junto do cavalo. O pobre animal tiritava, com as orelhas encolhidas, escorrendo por todos os lados. No momento em que Ted deitou as mãos à sela, caiu-lhe em cima um alude.
Por três vezes escorregou e caiu na lama. Por fim Id conseguiu trepar para o lombo do alazão, mas teve de apertar os joelhos contra a sela, e mesmo assim o seu equilíbrio era instável. Contudo, o vigor regressava-lhe pouco a pouco e já lhe foi relativamente fácil desprender as rédeas e esporear a montada em direção ao cimo da rua.
A terra erguia-se em borbotões debaixo dos cascos e verdadeiros arroios corriam ji pelas valetas, engrossados pela água que tombava a jorros dos telhados dos alpendres.
As descargas iluminavam por breves segundos aquela massa aquosa, por entre a qual apareciam desenhadas, a traços incertos, as silhuetas das casas. Ao chegar o alazão perto das cabanas dos «zunhis», foi quando se incendiou o celeiro.
Ted colocou o lenço no nariz, de forma a ficar um espago entre ele e a boca que lhe permitisse respirar, e incitou a montada a acelerar o passo. A casa atingida pelo raio desmoronou-se quando passava por ela.
No caminho que conduzia ao «Sulphur Ranch», a desolação provocada pela tormenta causava calafrios. Ted esforcou-se por divisar o Estacado e surpreendeu-o o muro negro e tempestuoso que fechava todo o Oeste e o Norte da planície.
Diversas árvores surgiram na sua frente, arrastadas pelos arroios que corriam pelos desníveis e pelos sulcos do terreno. A pouca distancia, distinguiu as corridas de uns porcos, que grunhiam com desespero. E um pouco mais adiante, o cavalo quase tropeçou no corpo agachado e trémulo de um veado, perdido, sem dúvida, da manada.
Talvez a tormenta — pensou o jovem — detivesse os irmãos, embora não lhe parecesse provável. Roland estava assustado com as intenções do velho e temia que, se perdesse aquelas horas, já nada pudesse fazer ou a situação fosse muito pior.
No entanto, seria quase impossível transpor a distância que o separava do rancho. Ted notava que estava exposto a desviar-se da rota e a cair em qualquer buraco oculto pela água. E se o cavalo quebrasse as pernas, ele seria como um náufrago naquele mar de lama.
A vasta extensão do céu brilhou de repente, rasgando--se como uma peça de seda negra diante de uma fulgurante tesoura. Os olhos deslumbrados do cavaleiro viram o raio penetrar nas entranhas de uma azinheira, que se acendeu como um archote e tombou com majestosa lentidão.
Mas viram mais qualquer coisa, ou seja que o inusitado e violento fogacho descobria a figura de um cavaleiro que corria a galope para a povoação. Ted reconheceu-o e renunciou ao seu propósito de dirigir-se ao rancho. Aquele audacioso era Tagus, o irmão de Castile. O jovem lembrou-se da luta que tivera com ele e decidiu segui-lo, pois inquietava-o o que pudesse tramar. Qual seria a sua intencao ao dirigir-se para Sulphur Valley? Obrigou o alazão a voltar-se e esporeou-o na peugada do índio.
Ao entrarem na rua principal pelo lado das cabanas, um novo raio pegou fogo a uma delas. O cavalo montado por Tagus ergueu as patas dianteiras e o índio recorreu a toda a espécie de habilidades para domina-lo, mas acabou por escorregar-lhe do lombo e por cair na lama.
Levantou-se de um salto. Ted viu o «zunhi» cerrar os punhos, dar meia volta e sumir-se numa travessa. Seguiu-o, apesar de escuridão.
Mas em seguida novas descargas elétricas revelaram a sua presença, colado as paredes das cabanas, inclinado e deslizando com rapidez. Ate que chegou junto da escola, construída de troncos de cipreste e coberta de telhas.
Tagus atirou-se contra a porta, uma e outra vez. Ted deteve o cavalo e apeou-se. Estava intrigado. Não compreendia por que motivo o índio procedia assim. Encostou o alazão a parede da casa e afagou-lhe o pescoço encharcado para tranquilizá-lo.
Por fim, o «zunhi» derrubou o obstáculo que se lhe interpunha e entrou no edifício. Ted sabia que estava desabitado, porque o professor vivia no extremo oposto da povoação e ninguém ficava ali de vigilância, a não ser que tivessem mudado os hábitos desde os seus tempos de estudante.
Ia a entrar também quando reapareceu Tagus, que com as mesmas precauções e celeridade se dirigiu para o fundo da travessa. Ted seguiu-o.
Uma parte do solo cedeu, de saito, debaixo dos seus pés e enterrou-se ate aos joelhos. Saiu do buraco praguejando. Tagus desaparecera e as nuvens acinzentadas não lhe permitiram vê-lo. Recriminando-se pelo seu pouco cuidada, Ted fez marcha atrás e aproximou-se do cavalo. Onde se teria metido o maldito pele-vermelha e por que motivo derrubara a porta da escola?
Esperou, certo de que em breve obteria resposta. Com efeito, ainda não teriam decorrido dois minutos quando luz de Um relâmpago mais forte viu Um grupo de homens que entravam no edifício devassado por Tagus. Bom, não era necessário ser lince para descobrir o que pretendia o irmão de Castile. Qualquer coisa bastante logica, naturalmente.
Aqueles indivíduos não entravam na escola para receber as lições do velho Simpson, mas sim para escutarem alguma incendiária peroração do seu irmão de raça, a respeito, claro estava, do maldito testamento que pensava fazer Walter Boyce.
Prometia ser uma conferência interessante. Ted obrigou o cavalo a recuar e a sair da travessa. A chuva diminuiu de intensidade e, embora continuasse a flagelar aquele recanto do mundo, não o fazia com a fúria de momentos antes.
O jovem meteu o alazão nas minas do celeiro. Uma parte do teto conservava-se de 'pé e, como tinha um palheiro por cima, o armazém mantinha-se relativamente seco.
— Descansa aqui, amigo — sussurrou ao cavalo, dando-lhe palmadinhas nas ancas.
De boa vontade teria ficado ali também, deitado fogo a palha e posto a roupa a secar, mas tomou o caminho da escola e aproximou-se de uma das janelas. Não se enganara nas suas suspeitas. Acendera-se um candeeiro de querosene e o recinto estava ocupado por uns cinquenta membros da tribo «zunhi», enrolados nas suas mantas pintalgadas, com os rostos atentos virados para o estrado da secretaria do professor.
No lugar deste colocara-se Tagus, que lhes falava. Ted notou que continuavam a entrar pessoas, que se sentavam nos bancos e iam enchendo a aula. Tomou imediatamente uma resolução e encaminhou-se para a porta.
Um índio passou pelo sítio onde ficara, de costas apoiadas a parede. Deu Um passo para ele descarregou-lhe o punho fechado na testa. O «zunhi», que era velho e magro, caiu como Um fardo.
Ted tirou-lhe a manta e envolveu-se nela, entrou na escola e foi sentar-se num canto onde as sombras eram mais densas.
— ...temos de apressar-nos. Deixa-nos as terras, os campos que foram sempre nossos. Compreendem? Pensem nisto, pensem nisto...
Tagus falava-lhes em dialeto e fazia-o com a veemência de um candidato democrático do Sul. Mas a sua recomendação de que pensassem na tentadora dádiva de Walter Boyce parecia não ter surtido efeito, porque os índios continuavam estoicamente sentados, como se não o tivessem ouvido.
Ted conhecia-os bem, assim como a sua língua, para não saber que tudo aquilo era fachada. Com certeza estavam às voltas com as palavras do seu irmão de raça e estudando as possibilidades de se produzir Um aumento das rac5es de uisque ou dinheiro para comprar mantas e contas de vidro.
O jovem não pôde evita-lo, mas desconfiava que aqueles seres, mergulhados numa quietude estúpida, seriam incapazes de um movimento de rebelião ou sequer de defesa. Fosse pelo que fosse, decerto por culpa dos brancos, tinham degenerado e careciam de energias e de força. Bastaria uma rajada de vento para levá-los todos adiante.
Um dos presentes levantou-se e ergueu o braço. A sua cara poderia perfeitamente ser pendurada numa parede como a mascara do vício. Mas a sua voz era clara e serena.
— As tuas palavras são interessantes, irmão — disse. — Sem dúvida que são. Mas, por que motivo o velho Boyce deseja fazer uma coisa dessas? Acaso lhe tocaram o coração os sofrimentos do nosso povo? Parece-me pouco provável. Não será por querer-nos utilizar contra os filhos ou por ter pensado que uns herdeiros mortos são muito bons?
O jovem não teve outro remedio senão aplaudir no seu íntimo o astuto pele-vermelha. Indiscutivelmente, não eram os bons sentimentos que impeliam o velho a restituir-lhes as propriedades, das quais os despojara sem contemplac5es quarenta anos antes, mas sim porque eram a cartada que podia jogar contra os homens da povoação, visto não ter força suficiente para enfrentá-los e defender o seu capricho.
Era estúpido que não tivesse compreendido isso mais cedo. Essa era a cartada de Walter Boyce. E possivelmente fora ideia sua mandar Tagus realizar aquela reuniao.
— Os motivos não contam — disse Tagus, que tinha o aspeto de um autêntico caudilho do seu povo, direito, de tórax saliente, compridos braços musculosos e cabeça arrogante. — É possível que tenham razão; mas, fazendo o seu jogo, poderemos ganhar, de verdade, o que nos prometeu. Não podemos perder esta oportunidade. De contrário, não existirá esperança para nós, que depressa deixaremos de existir.
— Não temos armas — salientou a oponente.
— A única coisa que precisamos de fazer é ir ao rancho — explicou Tagus. — O velho nos dará as carabinas e as munições necessárias.
— De todos os modos, irmão, ainda não nos disseste por que motivo o velho Boyce quer fazer isso. Ouvimos dizer que tenciona casar-se com tua irmã Castile. É verdade?
— Sim. E ela está disposta a esse sacrificio desde que nos disponhamos a lutar para consolidar essa heranca. Reparem: tudo o que temos de fazer é montar guarda ao rancho e esperar os filhos do velho que irão para impedir o casamento. Quando nos virem lá, armados, compreenderão que perderam a partida e ir-se-ão embora.
O «zunhi» que replicara sentou-se e então levantou--se outro, mais novo e de melhor aspeto.
— Não nos agrada, Tagus — declarou sem mais delongas. — Podem retirar-se ou não. Por que lutaremos nos, realmente? Tu dizes-nos que o velho já assinou esse testamento e que ele entrará em vigor assim que se realizar o casamento, mas a tua irmã não está noiva de Ted Boyce? Não será tudo uma armadilha para que vocês Bois e esse maldito branco se apoderem do rancho e de quanto contem?
Era uma acusação feroz e Tagus acusou-a na brusca mudança do seu semblante, que não conseguiu dominar, a despeito da sua educação de pele-vermelha. Estendeu os braços e crispou os dedos.
— Amaldiçoado sejas, Panka! — bramiu por entre os dentes agudos. — O que disseste é...
Mas Panka abanou a cabeça e fez Um gesto com a mão, rejeitando o protesto.
— Todos sabemos isso, Tagus, e não nos deixamos convencer pela tua história. Já nos enganaram muitas vezes e não seremos tao estúpidos que nos prestemos a servir de isca para que outros levem a presa. Talvez seja verdade o que dizes, mas não nos cheira bem...
Tagus parecia disposto a atirar-se a ele. Vibrava de furor. E quando o raio caiu a umas cinquenta jardas da escola e o seu clarão encheu a aula, a sua figura adquiriu relevo dramático e aterrador.
Mas não teve tempo de fazer nenhum gesto. Coincidindo com a descarga que fez estremecer o edifício e quebrou os vidros das janelas, por estas surgiram os canos de varias carabinas e perto de meia dezena de habitantes brancos da povoação entraram pela porta, empunhando «Winchesters» e «Colts».
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