quinta-feira, 14 de julho de 2016

BUF118. CAP XI

A chuva era muito ligeira. Roland mandou acender vários candeeiros de petróleo e colocá-los no alpendre, para iluminarem a esplanada.
Num extremo desta, Um velho carvalho estendia uma das suas pernadas, despida de folhas, fúnebre. Nos tempos her6icos do rancho, mais de uma execução se realizara nela.
A trágica procissão pôs-se em marcha. Alguns homens levaram para o local três ou quatro candeeiros e estabeleceu-se um circulo amarelento, viscoso, no meio do qual deixaram Castile, com Overton ao lado e dois criado do «saloon», encarregados de puxar a corda.
Alguém trouxe um cavalo e um laço. Vários relâmpagos seguidos iluminaram por sua conta a cena. Os irmãos Boyce, com Ted, que levaram para junto deles, colocaram-se à frente.
— Isto acontecerá a todos os que traírem os Boyce! — gritou Roland. E. levantou o braço, para que se cumprisse o castigo. Mas, de súbito, deteve-se.
A fila de homens abrira-se e surgiu diante deles a figura de Walter, com a espingarda nas mãos.
Teve a satisfação de verificar que continuava a ser a principal personagem. Apesar de ser apenas, um velho e de se encontrar sozinho contra todos, ninguém procurou detê-lo.
— Pensavam que já me tinham enterrado, nao? — perguntou com voz potente, que contrastava com o seu corpo franzino. Adiantou-se para onde se encontravam os filhos. — Pois ainda terão de obedecer as minhas ordens.
O encarregado da luminotécnica no teatro da natureza acendeu uma luz azulada, quase roxa. O velho, meio encolhido pela arteriosclerose, dominava a situação, e Roland, que parecia tao seguro momentos antes, estava agora atemorizado.
— Pai — procurou desculpar-se — nos julgávamos que...
— Julgavam o quê? Roland, és mais parvo do que os macacos. Vou dizer-te uma coisa e espero que isto encerre a questão. Vais soltar essa mulher, que será a esposa do teu irmão Ted. E vou distribuir a minha herança pelos «zunhis». Tens alguma coisa a opor?
Roland tornara-se branco. Deu uns passos para o pai e fechou os punhos.
— Não podes... não podes...
— Por que nao? Já o fiz. E eles sabem-no. Tenta despoja-los do que lhes pertence!
Elevou-se um murmúrio entre os habitantes de Sulphur Valley. Até mesmo os trabalhadores do rancho tomaram parte no protesto. Walter deitou a rir, com um riso que revelava que, no fundo, se divertia com a situação.
De repente, um homem afastou-se do grupo e correu para o velho. Era Dany Roberts, o capataz. Outra coincidência conturbada naquela noite infernal.
— Patrão, não podes fazer isso. Não consentiremos!
— O quê? Como vais impedir-me? Louco!
— Mas estas terras são nossas!
— Vossas? Desde quando? Conquistei-as! Fui eu quem as tomou aos que eram seus donos, gente simples que se deixou enganar, porque acreditou nas promessas que lhe fiz! E não voltarei a enganá-los. Compreendem? As terras do meu rancho voltarão para eles. Tenho a certeza de que saberão aproveitar a oportunidade.
Vários homens mais se adiantaram. Ted deu um passo em frente, disposto a defender o velho, a quem admirava como sempre acontecera. E notou que os irmãos o imitavam, decerto impelidos pelo mesmo sentimento.
Então sucedeu qualquer coisa que decididamente elevou ao rubro as paixões. Overton, o mestiço, o homem que imaginara aproveitar-se da situação para satisfazer o seu velho anseio de apoderar-se dos tesouros dos seus meios-irmãos de raça, decidiu tomar o comando do movimento de protesto contra o velho.
— Acabemos de uma vez! — gritou. — Enforquemos esta maldita bruxa e depois trataremos do assunto da herança do velho, que está louco.
Acolheu as suas palavras uma espécie de trovão humano, que coincidiu com outro do céu. Os homens de Sulphur Valley agruparam-se à sua volta, e os criados do «saloon» passaram o laço sobre a cabega de Castile.
— Comigo os Boyce! — rugiu o velho, então, erguendo a espingarda.
Nenhum hesitou. Naquele transe desapareceram todos os antagonismos e desentendimentos. Já não se importavam com a herança ou com o que o velho pretendesse fazer da sua pessoa. O grito do clã, com que sempre tinham enfrentado qualquer perigo, galvanizou-os.
Ate Hubo, o aleije ado, arrastando a sua disforme perna, se aproximou do pai. E todos formaram uma espécie de parede firme, imbatível. —
 — Soltem-na! — Gritou Walter. — Soltem-na e saiam daqui. O mais que poderão exigir no futuro é conviver com os índios e que eles lhes permitam continuar nesta terra.
— Nunca! — Berrou Everton. — Vamos enforca-la!
Fez o gesto de bater na garupa do cavalo sobre o qual tinham montado Cas tile. Hub correu para eles, arrastando-se quase na lama.
— Não, não! — reclamou com voz aguda. Isso não! Não quero que a enforquem.
— Afasta-te, Hub, não sejas doido! — avisou-o Ted, que compreendera o que ia acontecer e quis impedi-lo.
Mas o mestiço já premira o gatilho do revólver. Três vezes. Hub foi projectado para trás várias jardas e caiu de costas, com o peito perfurado. Ted deu um salto para a frente, possuido de uma raiva tensa.
— Besta, besta! — rugiu. — És pior do que a pior das feras.
E sem pensar mais, atirou-se a Overton. Transpôs a distancia que os separava. Estava certo de que o mestiço dono do «saloon» acabava de cometer, um erro trágico. O repugnante assassínio que praticara não podia ser aprovado pelos demais homens, que nada tinham de comum com ele.
Novos trovões sacudiram a atmosfera, e um vaqueiro gritou:
— Os índios! Vem para aqui!
Corn efeito, eram os miseraveis «zunhis», com Panka a cabega, trazendo nas maos o único «tesouro» que lhes restava: velhas carabinas, espingardas primitivas, arcos e flechas. Mas eram centenas.
A sua presenca perturbou os habitantes de Sulphur Valley. O mais certo é que estivessem desorientados com a série de situações que se sucediam, todas contraditórias. Tinham seguido os Boyce e agora estavam contra eles; lutavam para impedir que o velho Walter repartisse as suas terras pelos «zunhis» e os indios apareciam, dispostos a sustentar o seu direito. O velho soubera intrujá-los bem; mas não estavam tao desprovidos de energias e de combatividade como muitos calculavam.
Ted, entretanto, sem ligar importância aos acontecimentos, avançara para o mestiço. E sem aviso saltou sobre ele. Qualquer coisa lhe dizia que ninguém tentaria separá-los. Que a questão seria dirimida entre os dois, exclusivamente.
— Porco! — gritou, batendo no pescoço de Overton com o punho direito.
O dono do «saloon» entrou em ação. Todo o medo que sentia, a raiva de lhe terem estragado o piano e, sobretudo, a consciência de que chegara ao fim o seu papel de verdugo, revolveram-se dentro de si.
Cambaleou, mas não caiu, e esperou que Ted lhe saltasse em cima. Recebeu-o com um tremendo direto ao flanco e com um gancho ao queixo, e Ted replicou-lhe com um direto ao diafragma.
— Abutre nojento! — gritou Ted.
Novo murro. Overton caiu na lama. Um raio abateu-se naquele momento sobre os carvalhos, dos quais partiu uma labareda, ao mesmo tempo que o espago estremecia com o formidável trovão seguinte.
Ted atirou-se ao mestiço, que procurava levantar-se, e bateu-lhe na cara, no peito, na cintura. Overton retorceu-se e levou as suas grandes mãos ao pescoço do jovem Boyce. Apertou com toda a forca de que era capaz e Ted experimentou a sensação de que o mergulhavam num poço negro e vermelho.
Para defender-se daquela tenaz, meteu o joelho na barriga do adversário. Rolaram no chão, encharcando-se, sem deixarem de bater, cegos a qualquer outra coisa que não fosse ferirem-se, conseguir a anulação de um deles.
Entretanto, os «zunhis» invadiam todos os lugares e por fim detiveram-se em círculo, rodeando os brancos, com as armas preparadas, a observar os dois homens que lutavam.
Estes já quase não podiam mover os braços. Ted conseguiu colocar-se por cima de Overton e deixou-lhe cair os punhos, repetidas vezes, na cara, embora o mestiço procurasse esquivá-la a custo, respirando com dificuldade. Conseguiu separar-se de Ted e quis levantar-se.
O jovem atirou-se-lhe as pernas e voltaram a cair. Já não eram mais do que dois corpos cobertos de lama, irreconhecíveis. Overton levantou a perna direita para repelir um ataque de Ted, mas perdeu o equilíbrio e tombou com o adversário em cima.
Atingira o limite da sua resistência. E Ted também, apesar de ainda conseguir levantar o braço e abater o punho sobre o rosto do dono do «saloon».
Isso coincidiu com o ultimo esforço do céu para triturar a terra. Um trovão imenso, com o qual se despediu a tormenta. O horizonte começava a clarear e as nuvens negras tomavam uma cor leitosa.
Ted esteve Um bocado estendido, sem se aperceber do que se passava a sua volta. Despertou-o um grito. E procurou levantar-se, embora só o conseguisse depois de falhar um par de vezes.
Por ultimo, logrou suster-se ern pe e olhou para onde soara a voz. O que viu fê-lo compreender que, fosse como fosse, a justiça não se extinguira totalmente na terra.
Nem a maldade dos homens nem a fúria dos elementos podiam apagar o sentimento pelo qual se forjaram as civilizações, o sentimento que, em última analise, acaba sempre por impor-se.
Do tronco do carvalho das execuções pendia, oscilando grotescamente, o corpo de Eagle Overton, o homem que procurara o exterminio dos da sua raça e contra o qual acabava de lutar.
A chuva cessara; e rompendo o cerco de nuvens acasteladas no horizonte, penetrou um raio de sol que iluminou o macabro quadro do enforcado.
Ted dirigiu-se aos baldões para junto de Castile. A índia, libertada no último segundo, correra para o corpo de Hub, cuja cabeça tomara no colo.
Virou-se e fitou Ted ansiosamente.
— Mataram-no! Porquê? Nunca fez mal a ninguém — soluçou. — Sonhava ser o protagonista de algum facto heroico, que todos soubessem como se sacrificara por eles.
— Bom, pois conseguiu-o.
Ted ajoelhou-se e com grande esforço ergueu nos braços o corpo do irmão. Depois dirigiu-se para junto do pai e dos outros irmãos.
O velho olhava em frente, desorientado. Houve um momento de suspensao. Depois, Walter deixou escapar um rouco gemido e precipitou-se para o cadaver de Hub. Apertou-o nos braços e beijou-o.
— Fui eu, eu, quem te matou! — increpava-se. — Eu sou o teu assassino.
Ted pôs-lhe uma das mãos no ombro. E o velho fitou-o como se o visse pela primeira vez.
— Vou-me embora, pai — disse a custo, mas com firmeza. — Bem sabes que devo ir. Mas agora tenho a certeza de que os outros te acompanharão. Pensa neles... pensa em Hub... e não te sentirás tao só.
E sem olhar mais o que deixava para trás, pegou no braço de Castile e afastaram-se daquele sítio. Um esplendoroso dia anunciava-se no deserto.
F I M
 

Sem comentários:

Enviar um comentário