Drew fez o cavalo dar meia volta e, sem articular uma
palavra, iniciou o caminho do regresso. O outro continuou a rir e só
interrompeu a sua hilaridade para exclamar fingida tristeza:
- Pobre parolo! Fizemos-lhe grande ofensa!
Drew escutou-o mas seguiu o seu caminho, sem estremecer.
- Oiça! – gritou finalmente e Drew deteve-se sem voltar a
cabeça. – Quero dizer que você tinha muita razão! O cavalo não é tão veloz como
me pareceu quando chegou… Ou pelo menos é mais lento na retirada.
Drew permaneceu imóvel. Algo muito frio e duro penetrara na
sua alma. Agora podia «ver» com assombrosa nitidez. A vida e as pessoas
revelaram-se naquele instante na sua autêntica realidade. Tomaram cores vivas
como num quadro em que um pintor clarividente distribui pinceladas a cada
figura para lhe dar o matiz peculiar, o tom que por natureza lhe pertence. Nem
todas as pessoas eram da mesma cor, como pensara até então. Havia pessoas
banhadas de luz, como a velha Marta e o próprio Bem-Tim. Também as havia
manchadas de luar e lama, como Portia… tão linda à primeira vista! Havia
pessoas tingidas de vermelho… da cor do sangue! E outras, de aspeto brilhante
mas vazias de cor, como aquele imbecil que o provocava sem razão, só para se
fazer admirar pela rapariga. Os pavões exibem as suas caudas sem perceberem
que, sendo estúpidos, nunca o são tanto como nesse momento de vaidade.
E ele, o próprio Drew… Qual a cor que tingia a sua alma?
Naquele instante, tinha o cor do metal mais duro e resistente. Frio e tenaz.
Mas podia mudar em qualquer outro momento. A «sua cor» não se havia fixado de
modo definitivo. E o «metal da alma» podia atingir um grau de calor
inverosímil, tornando-se vermelho como sangue! E lançaria chispas perigosas
como os metais em fusão!
Continuou de novo a caminhar, ereto e atento, plenamente
convencido do endurecimento repentino da sua alma. Levava o revólver a
bater-lhe na anca – metal contra metal – e agora compreendia bem o significado
da arma e da sua existência.
Nada teria acontecido se Hughes Raine, embriagado pela
vitória tão fácil sobre o rival que abandonava a arena, não houvesse incorrido
no erro de menosprezar totalmente o pobrezito aldeão. Quando este já ia a
perder-se de vista, numa volta do caminho, Hughes Raine empunhou com rapidez o
revólver e disparou – à laia de última piada – procurando que a bala passasse a
roçar a orelha direita de Drew…
Então o metal incendiou-se por si mesmo… Drew correspondeu
ao tiro com a velocidade fulminante de um raio. Voltou-se na montada e da sua
mão brotou um relâmpago de fogo. O chapéu de Hughes Raine voou pelos ares
atravessado por uma bala. Drew continuou a disparar sem descanso. Os projeteis
despedidos pelo seu revólver esfarrapavam o belo fato de peralvilho. Uma das
balas levou-lhe quase todo o chumaço de um ombro e outra foi rasgar-lhe a aba
esquerda do casaco tal como o faria uma espada candente.
Raines empunhava a arma que disparara o único tiro contra
Drew mas… a surpresa e o terror tinham conseguido paralisá-lo. O enxame de
balas que mordiscavam assustadoramente as suas roupas atordoou-o de tal maneira
que o sangue pareceu gelar-lhe nas veias. Sentia-se envolto num lençol húmido e frigidíssimo que
o impedia de realizar o mais leve movimento. Nem sequer foi capaz de gritar.
Portia, ao contrário, ergueu os braços para o céu e encheu o
ar com o seu alarido:
- Drew, não! Drew, não o faças!
Drew cessou bruscamente de disparar e, sem muita pressa,
retrocedeu, aproximando-se montado no seu cavalo. Hughes Raine contemplava o
regresso do «parolo» e empalideceu tanto que o seu rosto parecia o de um
autêntico cadáver, olhos desorbitados de modo inacreditável.
A rapariga voltou a gritar.
- Não, não Drew! Não te aproximes! Vai-te!
Uma vez junto deles, Drew desmontou e ficou parado diante do
janota que, nesse momento, abriu a boca com a angústia de um peixe fora da
água. Trazia ainda o revólver e apertava-o terrivelmente. Mas agora sentia-o
tão inútil como o seria para uma múmia petrificada durante longos séculos.
- Drew, suplico-te… por favor! Perdoa-me! E a ele…
Desculpa-nos! Suplico-te!... Não o mates! Não o faças diante de mim… Seria
incapaz de suportá-lo!
Durante uns instantes, Drew olhou-a. Na expressão dele não
havia o menor sinal que traísse os seus sentimentos.
- Não o vou matar, descansa – exclamou finalmente. – Não o
mato, porque já está morto de medo! Repara nele… Não o vÊs? Mas… logo, quando
se encontre em condições de te escutar, pergunta-lhe porque diabo se arrisca a
dar tiros se, «depois», há-de sentir o terror assim? Eu penso que o medo deve
sofrer-se «antes»!
Portia reanimou-se um pouco.
- Mas… - articulou – não lhe fazes mal?
- Não. Foi simplesmente uma demonstração do pouco que eu
sei… tal como desejavas.
- Então, guar… guarda o revólver…
Drew obedeceu ao pedido e meteu a arma no coldre.
- Adeus, Portia.
- Vais-te?
- Sim.
- Voltarás?
Olhou-a espantado por aquela inconsciência feminina.
- Claro que não!
Apertou os lábios ofendida.
- Está bem. Vai e não voltes. Não preciso de ti.
- Já sei. Tens «mr.» Raine.
A atenção de Portia recaiu, então, no seu maltratado galã.
Hughes, muito pálido ainda e suando em camarinhas, voltou a cabeça, abnatido, e
afastou-se lentamente. Suspenso na sua mão, baloiçava o revólver, como um
símbolo da derrota. O resto do chumaço do caso quase se desprendia do ombro. E
a reção de Portia também foi suavemente feminina.
- Imbecil!... – disse. – Estragaste-lhe o fato!
Drew fez um gesto de indiferença.
- Suponho que ainda tem muitos outros e… todos bons. ´E
homem desse género… Adeus, Portia.
Prendeu-o de repente por um braço.
- Perdoa-me, Drew!
- Porque não?... Perdoo-te de boa vontade – respondeu so
mesmo tempo que se desprendia dela, suavemente.
- Não voltarás, a sério?
Num salto lesto, Drew montou o cavalo.
- Não voltarei aqui nem ao povoado. O meu lugar é no rancho.
As vacas… entendo-as bem. Nunca me enganam!
- Pois vai e… casa-te com uma vaca!
(Coleção Búfalo, nº 47)
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