segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

BUF147.14 Morrer por amor?


Quando Fred abriu os olhos, estava estirado, de braços abertos em cruz, sobre um tapete de frescas sálvias.

Era ainda de noite, mas as primeiras luzes da aurora começavam a despontar no horizonte.

Olhou em redor e viu-se rodeado de um sem-número de pernas. Quatro das pernas calçavam botas militares: ergueu os olhos e viu um cabo e um soldado federal. Notou que o seu coração pulsava desordenadamente e voltou a fechar os olhos.

Pensou que estava perdido; que, depois de tudo o que ocorrera, os seus esforços tinham resultado inúteis.

Havia, porém, mais homens ali. Tratava-se de picadores do rancho de Stiles que olhavam para ele com ar inexpressivo. Moveu-se. O cabo debruçou-se sobre ele e perguntou com amabilidade:

— Então como se encontra?

Sacudiu a cabeça e levou as mãos à testa.

— Suponho que estou bem — respondeu, um tanto surpreendido pelo suave tom com que o tratavam.

Ajeitou-se até ficar sentado e reparou que se não encontrava no mesmo lugar onde tinha caído. Olhou à sua volta e viu então que estava mesmo em frente da cabana onde tinha passado a sua convalescença.

Era evidente que o tinham deitado na relva para que recuperasse os sentidos. A não ser por esse motivo, qualquer outro seria muito de recear.

Pensou em Vicky e em Blaise Stiles. Parecia-lhe estranho que se não encontrassem a seu lado, salvo se ele se encontrasse sob prisão e tivessem proibido a sua presença para evitar aborrecimentos.

Diante da porta da cabana viam-se soldados e picadores olhando para o interior. Esse facto trouxe-lhe um pressentimento.

— Que se passou aqui? — perguntou.

— Demos uma batida aos bandoleiros. Eram bastantes, mas conseguimos dizimá-los sem sofrer qualquer baixa da nossa parte... E sabemos que tudo foi possível, devido à sua pessoa. Foi-nos muito grato presenciar uma façanha de tanta audácia e de tanta valentia. Um acto quase suicida.

Acabou de se levantar. Reparou que mantinha o revólver na pistoleira. O cabo e o soldado afastaram-se para lhe dar passagem. Não era então considerado prisioneiro? Como continuasse parado, o cabo prosseguiu a conversa:

— Fazemos parte de uma patrulha comandada pelo capitão Ramsay. Chegávamos do Kansas com destino a Lamar, quando ouvimos o tiroteio.

Fred curvou a cabeça. Não havia meio de compreender. Talvez fosse verdadeiro aquilo de que começava a suspeitar. Se os soldados vinham do Kansas, era natural que o não reconhecessem pelas feições, ainda que o seu nome e a ordem de prisão fossem do seu conhecimento.

Subitamente, e sem que ninguém o esperasse, apresentou-se um picador trazendo pela rédea um cavalo negro convenientemente selado e que Fred logo reconheceu. Era o seu cavalo. Parou diante do proscrito, dizendo:

— Manda dizer o patrão que se apresse a desempenhar-se da missão que lhe recomendou. Quando regressar, falarão sobre o assunto.

Fred compreendeu. Stiles preparava-lhe a fuga. Era indubitável que os soldados o não haviam reconhecido e o picador oferecia-lhe uma oportunidade de se escapar, antes que um qualquer descuido alertasse os militares. Pegou nas rédeas e sorriu-se, agradecido.

— Onde se encontra o patrão?

— Dentro da cabana com o capitão Ramsay. Vicky encontra-se doente.

O coração de Fred sobressaltou-se. Analisou a situação. Talvez com um pouco de sorte e de audácia lhe fosse possível despedir-se e desaparecer em seguida.

Entregou as rédeas à guarda de um dos picadores e penetrou na cabana. Todos se afastaram discretamente. Dentro do quarto, onde Vicky repousava, encontravam-se, além de seu pai, o capitão confederado e o doutor Clifford.

Entrou, e todos os presentes o encararam em silêncio. Havia mágoa nos olhos do picador, cumplicidade nos do médico e surpresa nos do capitão e de Vicky...

No rosto de Vicky estampavam-se a dor e a alegria, a morte e a vida. A sua carinha de porcelana emergia por entre as dobras do lençol. Olhou para o homem com um brilho intenso nas suas pupilas azuis.

— Fred... — murmurou impercetivelmente.

O capitão não ouviu. Começava a falar, no momento em que Vicky pronunciava o seu nome como um gemido.

— Ainda que a ocasião não seja a mais indicada — disse o federal — desejo felicitá-lo. O senhor comportou-se de uma forma como nenhum outro homem seria capaz de se comportar.

— Obrigado, capitão.

—E sulista?

— Sim, sou sulista.

— Com uma dúzia de homens da sua têmpera, talvez a vitória lhes tivesse sorrido.

O militar era um homem agradável, não por virtude dos elogios, mas porque tratava os vencidos com respeito e com nobreza. Não quis prolongar a conversa porque se apercebeu de que Wheeler não manifestava desejos de o ouvir e, além disso, porque a ocasião não era propícia.

Fred olhou para a jovem e em seguida para o médico.

— Como está a doente? — perguntou.

Clifford meneou a cabeça com tristeza.

— Não sei bem...

O capitão interveio:

— O doutor está convencido de que está doente de amor. Revelou-o discretamente porque, naturalmente, receou que eu zombaria dele, quando a verdade é que eu já fui testemunha de um caso muito semelhante.

— Também um caso de amor?

— Sim. Chegou a ter delírio. Chamava por um tal Fred Wheeler, um proscrito perseguido pela Justiça, acusado de um duplo assassínio. O senhor Stiles garante que não sabe de coisa alguma e é possível que assim seja... Ainda bem que assim é, porque juro, que, se o descobrisse, o mataria com as minhas próprias mãos!

Falava com calor enquanto contemplava o pálido rosto da jovem.

— O mais provável é tê-la seduzido e desaparecido a seguir — disse ele em voz baixa, de forma a não poder ser ouvido pelo pai de Vicky.

Madalena chorava, sentada num recanto do aposento. Levantara um pouco a cara durante um momento, mas voltou a escondê-la entre as mãos. Fred reconheceu que a situação era perigosa, sobretudo pelo caminho que a conversa tomava. Aproximou-se do leito e pegou com fingida indiferença nas mãos da enferma.

— Tenho de ir desempenhar-me de uma missão —disse. — Depois voltarei.

Apertou-as com ternura e perfilou-se. Olhou silenciosamente para os circunstantes em muda despedida e saiu do aposento. Apenas saiu da cabana entregaram-lhe as rédeas da montada — do seu cavalo negro.

Colocou um pé no estribo e montou sem mostrar pressa. O cabo e o soldado aproximaram-se para se despedirem. Todos os restantes o contemplavam em silêncio. Deu com os calcanhares uns leves toques nos flancos do animal e empreendeu a marcha.

Desceu a ladeira vagarosamente. Antes de perder a cabana de vista, voltou-se para trás. Todos o seguiam com os olhos.

Cravou-lhe suavemente as esporas e o animal iniciou um trote moderado. Atingiu rapidamente a planície de Springfield, àquela hora banhada pela luz crepuscular com um misterioso tom arroxeado; a sálvia movia-se ao sabor da brisa, formando uma suave ondulação, e as nuvens cinzentas do céu começaram a dissipar-se lentamente até acabarem por desaparecer, eliminadas pela claridade do sol nascente.

Parou o cavalo sobre uma pequena elevação e explorou o horizonte. Ao Norte, a muitas jornadas de distância, ficava Wyoming, com aquela parte do desfiladeiro selvagem completamente deserta, dispondo de milhares de abrigos que lhe ofereciam seguro refúgio; e também ali ficava Nebraska, mas essa não o seduzia.

Ao Sul ficava o Novo México ou o território índio, onde não podia entrar qualquer homem de raça branca e que, devido a essa circunstância, lhe assegurava muito maior impunidade do que qualquer outra região (1).

A Oeste, o Kansas; excessivamente povoado, repleto de soldados, todos eles conhecedores da ordem de prisão que pendia sobre a sua cabeça; o lugar onde, porventura, ele era mais conhecido.

A Leste...

Ao erguer os olhos para ali, viu a montanha. Não distinguiu a cabana; estava muito afastado, mas teve a sensação de que a via, e que ali via o pálido rosto que pronunciava o seu nome. Doente por amor...

Voltou o rosto para o Norte. Ansiava por liberdade, por viver e gozar a liberdade. Ao seu espírito voltou a imagem daquela carita pálida que o olhava com infinita angústia e com infinito amor. Talvez Vicky estivesse a morrer. Olhou para o campo de sálvias. A brisa tinha cessado e a verdura permanecia imóvel, evolando o seu doce e suave perfume. O céu era um imenso lago azul; o sol despontava por detrás da colina distante. Puxou pelas rédeas da montada.

— Vamos, amigo. Não nos é possível fugir. Vicky está morrendo... e morrendo por mim.

Lançou um derradeiro olhar para o Norte, para o Oeste e para o Sul. Acabou por se encaminhar para Leste, na direção da montanha, na direção da cabana, onde uma alma santa morria por ele.

Lamar ficava na retaguarda. Em Lamar repousava o cadáver de um homem que tinha morrido por abandonar uma mulher.

O cavalo negro empreendeu um animado trote pela ladeira acima. As suas negras crinas espanejavam-se ao vento, alegremente e o ruído produzido pelas suas patas era festivo. No coração do homem havia amargura, mas uma doce calma ia-o invadindo pouco a pouco.

A satisfação de cumprir um nobre dever mitigou-lhe as últimas dores. Era livre, podia escolher o seu destino e já o tinha escolhido. Regressava.

 

(1) Oklahoma que, 25 anos depois, aproximadamente, seria aberta à colonização.

 

 

 

FIM 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário