Quando Fred abriu os olhos, estava estirado, de braços abertos em cruz, sobre um tapete de frescas sálvias.
Era ainda de noite, mas as primeiras luzes da aurora começavam a despontar no horizonte.
Olhou em redor e viu-se rodeado de um sem-número de pernas. Quatro das pernas calçavam botas militares: ergueu os olhos e viu um cabo e um soldado federal. Notou que o seu coração pulsava desordenadamente e voltou a fechar os olhos.
Pensou que estava perdido; que, depois de tudo o que ocorrera, os seus esforços tinham resultado inúteis.
Havia, porém, mais homens ali. Tratava-se de picadores do rancho de Stiles que olhavam para ele com ar inexpressivo. Moveu-se. O cabo debruçou-se sobre ele e perguntou com amabilidade:
— Então como se encontra?
Sacudiu a cabeça e levou as mãos à testa.
— Suponho que estou bem — respondeu, um tanto surpreendido pelo suave tom com que o tratavam.
Ajeitou-se até ficar sentado e reparou que se não encontrava no mesmo lugar onde tinha caído. Olhou à sua volta e viu então que estava mesmo em frente da cabana onde tinha passado a sua convalescença.
Era evidente que o tinham deitado na relva para que recuperasse os sentidos. A não ser por esse motivo, qualquer outro seria muito de recear.
Pensou em Vicky e em Blaise Stiles. Parecia-lhe estranho que se não encontrassem a seu lado, salvo se ele se encontrasse sob prisão e tivessem proibido a sua presença para evitar aborrecimentos.
Diante da porta da cabana viam-se soldados e picadores olhando para o interior. Esse facto trouxe-lhe um pressentimento.
— Que se passou aqui? — perguntou.
— Demos uma batida aos bandoleiros. Eram bastantes, mas conseguimos dizimá-los sem sofrer qualquer baixa da nossa parte... E sabemos que tudo foi possível, devido à sua pessoa. Foi-nos muito grato presenciar uma façanha de tanta audácia e de tanta valentia. Um acto quase suicida.
Acabou de se levantar. Reparou que mantinha o revólver na pistoleira. O cabo e o soldado afastaram-se para lhe dar passagem. Não era então considerado prisioneiro? Como continuasse parado, o cabo prosseguiu a conversa:
— Fazemos parte de uma patrulha comandada pelo capitão Ramsay. Chegávamos do Kansas com destino a Lamar, quando ouvimos o tiroteio.
Fred curvou a cabeça. Não havia meio de compreender. Talvez fosse verdadeiro aquilo de que começava a suspeitar. Se os soldados vinham do Kansas, era natural que o não reconhecessem pelas feições, ainda que o seu nome e a ordem de prisão fossem do seu conhecimento.
Subitamente, e sem que ninguém o esperasse, apresentou-se um picador trazendo pela rédea um cavalo negro convenientemente selado e que Fred logo reconheceu. Era o seu cavalo. Parou diante do proscrito, dizendo:
— Manda dizer o patrão que se apresse a desempenhar-se da missão que lhe recomendou. Quando regressar, falarão sobre o assunto.
Fred compreendeu. Stiles preparava-lhe a fuga. Era indubitável que os soldados o não haviam reconhecido e o picador oferecia-lhe uma oportunidade de se escapar, antes que um qualquer descuido alertasse os militares. Pegou nas rédeas e sorriu-se, agradecido.
— Onde se encontra o patrão?
— Dentro da cabana com o capitão Ramsay. Vicky encontra-se doente.
O coração de Fred sobressaltou-se. Analisou a situação. Talvez com um pouco de sorte e de audácia lhe fosse possível despedir-se e desaparecer em seguida.
Entregou as rédeas à guarda de um dos picadores e penetrou na cabana. Todos se afastaram discretamente. Dentro do quarto, onde Vicky repousava, encontravam-se, além de seu pai, o capitão confederado e o doutor Clifford.
Entrou, e todos os presentes o encararam em silêncio. Havia mágoa nos olhos do picador, cumplicidade nos do médico e surpresa nos do capitão e de Vicky...
No rosto de Vicky estampavam-se a dor e a alegria, a morte e a vida. A sua carinha de porcelana emergia por entre as dobras do lençol. Olhou para o homem com um brilho intenso nas suas pupilas azuis.
— Fred... — murmurou impercetivelmente.
O capitão não ouviu. Começava a falar, no momento em que Vicky pronunciava o seu nome como um gemido.
— Ainda que a ocasião não seja a mais indicada — disse o federal — desejo felicitá-lo. O senhor comportou-se de uma forma como nenhum outro homem seria capaz de se comportar.
— Obrigado, capitão.
—E sulista?
— Sim, sou sulista.
— Com uma dúzia de homens da sua têmpera, talvez a vitória lhes tivesse sorrido.
O militar era um homem agradável, não por virtude dos elogios, mas porque tratava os vencidos com respeito e com nobreza. Não quis prolongar a conversa porque se apercebeu de que Wheeler não manifestava desejos de o ouvir e, além disso, porque a ocasião não era propícia.
Fred olhou para a jovem e em seguida para o médico.
— Como está a doente? — perguntou.
Clifford meneou a cabeça com tristeza.
— Não sei bem...
O capitão interveio:
— O doutor está convencido de que está doente de amor. Revelou-o discretamente porque, naturalmente, receou que eu zombaria dele, quando a verdade é que eu já fui testemunha de um caso muito semelhante.
— Também um caso de amor?
— Sim. Chegou a ter delírio. Chamava por um tal Fred Wheeler, um proscrito perseguido pela Justiça, acusado de um duplo assassínio. O senhor Stiles garante que não sabe de coisa alguma e é possível que assim seja... Ainda bem que assim é, porque juro, que, se o descobrisse, o mataria com as minhas próprias mãos!
Falava com calor enquanto contemplava o pálido rosto da jovem.
— O mais provável é tê-la seduzido e desaparecido a seguir — disse ele em voz baixa, de forma a não poder ser ouvido pelo pai de Vicky.
Madalena chorava, sentada num recanto do aposento. Levantara um pouco a cara durante um momento, mas voltou a escondê-la entre as mãos. Fred reconheceu que a situação era perigosa, sobretudo pelo caminho que a conversa tomava. Aproximou-se do leito e pegou com fingida indiferença nas mãos da enferma.
— Tenho de ir desempenhar-me de uma missão —disse. — Depois voltarei.
Apertou-as com ternura e perfilou-se. Olhou silenciosamente para os circunstantes em muda despedida e saiu do aposento. Apenas saiu da cabana entregaram-lhe as rédeas da montada — do seu cavalo negro.
Colocou um pé no estribo e montou sem mostrar pressa. O cabo e o soldado aproximaram-se para se despedirem. Todos os restantes o contemplavam em silêncio. Deu com os calcanhares uns leves toques nos flancos do animal e empreendeu a marcha.
Desceu a ladeira vagarosamente. Antes de perder a cabana de vista, voltou-se para trás. Todos o seguiam com os olhos.
Cravou-lhe suavemente as esporas e o animal iniciou um trote moderado. Atingiu rapidamente a planície de Springfield, àquela hora banhada pela luz crepuscular com um misterioso tom arroxeado; a sálvia movia-se ao sabor da brisa, formando uma suave ondulação, e as nuvens cinzentas do céu começaram a dissipar-se lentamente até acabarem por desaparecer, eliminadas pela claridade do sol nascente.
Parou o cavalo sobre uma pequena elevação e explorou o horizonte. Ao Norte, a muitas jornadas de distância, ficava Wyoming, com aquela parte do desfiladeiro selvagem completamente deserta, dispondo de milhares de abrigos que lhe ofereciam seguro refúgio; e também ali ficava Nebraska, mas essa não o seduzia.
Ao Sul ficava o Novo México ou o território índio, onde não podia entrar qualquer homem de raça branca e que, devido a essa circunstância, lhe assegurava muito maior impunidade do que qualquer outra região (1).
A Oeste, o Kansas; excessivamente povoado, repleto de soldados, todos eles conhecedores da ordem de prisão que pendia sobre a sua cabeça; o lugar onde, porventura, ele era mais conhecido.
A Leste...
Ao erguer os olhos para ali, viu a montanha. Não distinguiu a cabana; estava muito afastado, mas teve a sensação de que a via, e que ali via o pálido rosto que pronunciava o seu nome. Doente por amor...
Voltou o rosto para o Norte. Ansiava por liberdade, por viver e gozar a liberdade. Ao seu espírito voltou a imagem daquela carita pálida que o olhava com infinita angústia e com infinito amor. Talvez Vicky estivesse a morrer. Olhou para o campo de sálvias. A brisa tinha cessado e a verdura permanecia imóvel, evolando o seu doce e suave perfume. O céu era um imenso lago azul; o sol despontava por detrás da colina distante. Puxou pelas rédeas da montada.
— Vamos, amigo. Não nos é possível fugir. Vicky está morrendo... e morrendo por mim.
Lançou um derradeiro olhar para o Norte, para o Oeste e para o Sul. Acabou por se encaminhar para Leste, na direção da montanha, na direção da cabana, onde uma alma santa morria por ele.
Lamar ficava na retaguarda. Em Lamar repousava o cadáver de um homem que tinha morrido por abandonar uma mulher.
O cavalo negro empreendeu um animado trote pela ladeira acima. As suas negras crinas espanejavam-se ao vento, alegremente e o ruído produzido pelas suas patas era festivo. No coração do homem havia amargura, mas uma doce calma ia-o invadindo pouco a pouco.
A satisfação de cumprir um nobre dever mitigou-lhe as últimas dores. Era livre, podia escolher o seu destino e já o tinha escolhido. Regressava.
(1) Oklahoma que, 25 anos depois, aproximadamente, seria aberta à colonização.
FIM
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