quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

BUF145.02 O proscrito vinga a honra ferida da irmã


Aloísio Marty tomou entre as suas a mão de Vicky e olhou, fixamente, para a jovem, ao mesmo tempo que esta baixava os olhos entre envergonhada e emocionada.

O homem notou o nervosismo daquelas pequeninas mãos e o súbito calor que as aquecia. Ficou a saber que Vicky esperava, ansiosamente, as suas palavras. Palavras que não podiam deixar de ser proferidas porque, depois daquela tarde maravilhosa, constituía isso quase uma obrigação.

— Vicky... amo-te!

A declaração de amor foi simples. Tão simples como desnecessária, pois, ao longo de toda a tarde, já os factos a tinham revelado.

— Amo-te acima de todas as coisas, Vicky.

A jovem envergava um vestido de tafetá azul, que lhe assentava, maravilhosamente. Não era um vestido decotado, mas ajustava-se ao seu corpo de tal maneira que lhe realçava todas as suas formas. Pela extremidade da longa fímbria, espreitavam as biqueiras de uns sapatinhos de verniz.

Era uma jovem de baixa estatura, de aspeto insignificante, ainda que muito bonita. Tinha um lindo cabelo comprido, todo às ondulações, mostrando ainda o jeito dos caracóis das tranças que havia, justamente, um ano, libertara das canoas e dos alfinetes de celuloide. Não devia exceder a idade de dezoito anos e, embora se tratasse de uma moça casadoira, aparentava um ar tímido e acanhado.

Aloísio sabia que a tinha conquistado por completo. E o pior era que ele também se deixara enfeitiçar por ela. Reconhecia que a amava como jamais amara qualquer outra, apesar de ter desfrutado muitas raparigas galantes.

Ele um homem alto e desempenado, sabendo vestir-se, elegantemente, sempre à última moda, destacando-se por isso das demais pessoas. Tinha estudos, falava de maneira fluente e, bastante conhecedor da alma humana, tinha artes de conquistar quantos o escutavam.

Vicky ergueu a cabeça e os seus olhos, de um azul-claro como o céu, olharam-no, ardentes e ansiosos. Aloísio inclinou a cabeça, procurando com os seus lábios a fresca boquita da jovem que se lhe ofereceu como uma fruta fresca. O beijo foi curto e suave. Apertada nos braços do homem, a rapariga estremeceu.

— Diz-me que me queres, Vicky... — pediu ele, meigamente.

Ela afastou-se e inclinou a cabeça, tímida e ruborizada. O seu cabelo escondeu a intensa vermelhidão das suas faces. Contemplou, distraidamente, as biqueiras dos seus pequeninos sapatos. Aloísio cingiu-a pela cintura, obrigando-a a fitá-lo bem nos olhos.

— Responde-me, Vicky. Diz-me que tu, também, me queres tanto como eu te quero.

— Oh! Lou!... Tudo isto foi tão rápido, tão...

— Uma tarde é suficiente, Vicky... eu, pelo menos, fiquei a saber que te amo, loucamente, e que jamais poderei passar sem ti.

Voltou a inclinar a cabeça, fechando os olhos. Era aquele o primeiro homem que a tinha beijado; o primeiro que lhe dizia coisas tão bonitas; o primeiro homem que se rendia aos seus encantos.

Estavam num recanto da rua Maior, de Lamar, num ângulo formado por dois edifícios. O armazém de Wilson, onde se realizara o baile daquela tarde, tinha já fechado as suas portas e as duas lanternas que iluminavam a fachada estavam apagadas. Até eles, apenas chegava a luz mortiça de uma lâmpada de petróleo, suspensa de uma parede no passeio contrário.

Aloísio sentiu-se na obrigação de dirigir algumas fingidas recriminações à rapariga.

— Ah! Tu também acreditas nas fantasias que se contam a meu respeito?

— Oh, não, Lou! Que ideia! Pois se eu mal tinha ouvido falar a teu respeito... é esta a primeira vez que saio... Não sei que ideia farão meu pai e minha irmã.

— Não te apoquentes... eles vão gostar, certamente, dos nossos projetos.

— Está bem, mas...

— Dá-me outro beijo.

Colocou-lhe a mão sob o queixo delicado e obrigou-a a levantar a cabeça, beijando-a nos lábios com a maior ternura. Achou um sabor extraordinário, nunca sentido até ali.

A boca de Vicky era uma rosa fresca; tão fresca e viçosa como ela. Com a diferença de que vibrava de emoção e escaldava como brasas vivas.

Aloísio verificou que tinha na sua frente uma rapariga sem vontade própria, suscetível de se deixar dominar pela sua avassaladora paixão.

Cingiu a si o seu frágil corpito, sentindo-se dominado por uma íntima alegria ao notar a fragilidade e ingenuidade dos seus movimentos e a sua débil resistência...

E voltou a beijá-la, sofregamente, apaixonadamente, colando os seus lábios àquela frágil boquita, como se nela quisesse gravar uma tatuagem indelével, para que Vicky jamais pudesse pertencer a outro homem.

— É tarde, Lou — exclamou ela, arquejante.

— Amo-te...

—Meu pai e minha irmã Madalena, esperam-me...

— Adoro-te, Vicky...

Tentou estreitá-la ainda mais contra si, mas ela, como se fosse uma serpente coleante, conseguiu escorregar-lhe dos braços, furtando-se aos seus beijos.

— Devem estar já impacientes...

Aloísio acabou por compreender, e cedeu. Largou a jovem e disse:

— Vai. Vai para junto deles, mas já te previno que virei visitar-te amanhã ou depois para pedir a teu pai que me conceda a tua mão.

A jovem não respondeu. Começava a sentir-se inquieta por causa dos seus e sentia-se incapaz de reagir. Separou-se do homem sem proferir mais palavra e, uma vez chegada a Main Street, deitou-se a correr com o suave rocegar do vestido de tafetá e o bater dos pequeninos pés sobre a madeira do passeio.

Blaise Stiles e a sua filha Madalena viram chegar a rapariga e ergueram os braços num aceno amigo.

Vicky abeirou-se deles, ofegante. Aloísio contemplava-a, pensativo.

— Florinha do deserto — murmurou.

Meneou a cabeça, esboçou um sorriso e encaminhou--se para o lugar onde se encontrava o seu cavalo. Não tinha comparecido ainda nenhum dos homens que o tinham acompanhado e a ideia de se dirigir sozinho para o rancho não o seduzia.

Apoderou-se do cinturão-cartucheira que tinha deixado no arção da sela e afivelou-o à cintura. Pensou dirigir-se a um botequim, mas a presença de um homem que o encarava, apoiado a um dos pilares de madeira do alpendre, fê-lo estacar.

Olhou para ele com a maior atenção e reconheceu, vagamente, aquelas feições, apesar de não ser capaz de se recordar da dureza e do olhar glacial daqueles pequenos olhos negros.

— Olá, Lou — disse o desconhecido.

—Quem é que me fala?

— Um espião. Assisti à tua avassaladora maneira de manifestar o teu amor. Linda cachopa, hem?

—Não lhe admito que se refira à jovem dessa forma.

— Conheci-a quando era ainda uma criancinha. Teria eu os meus doze anos quando daqui saí, mas recordo-me de que prometia já ser tão formosa como o é neste momento.

— Não quero que fale dela.

— Seria capaz de morrer em sua defesa?

— Sou capaz até de o matar a você, se for preciso!

O desconhecido desencostou-se do pilar a que se apoiava e caiu de um salto sobre a poeira vermelha da rua.

— Deixemo-nos de parvoíces, Lou; deveras, deveras, não me conheces?

Havia qualquer coisa naquele tipo que lhe era familiar, mas não sabia o quê. Enfeitava-se com um chapéu do Texas, de abas largas e desbotado pelo sol. Vestia uma camisa amarela com lantejoilas de metal cheias de verdete pela água das lavagens, calções azuis, muito ajustados às coxas, e botas de bezerro debruadas, com esporas muito grandes, tão oxidadas como os enfeites da camisa. Vestia com limpeza, mas havia nele o quer que fosse, que...

— Não. Não tenho o gosto de o conhecer.

— Sou o irmão de Elsie, a mulher que se deixou embalar pelas mesmas promessas que acabas de fazer a Vicky Stiles.

Aloísio começara a empalidecer, progressivamente. Todo o seu sangue lhe havia desaparecido do rosto quando Frederick Wheeler cessou de falar e o olhou com profundo desprezo.

—Wheeler...

Baldadamente, Marty tentava descobrir no meio da escuridão, as feições, agora empedernidas, do homem que um dia marchara para a guerra; daquele rapagão forte, embora um pouco tímido, mesquinho e indeciso.

Era inegável que a experiência da vida o tinha endurecido, a não ser assim nunca se teria atrevido a falar daquela maneira. Nunca se convencera que tivesse de o defrontar um dia. Reconhecia, no entanto, que o facto era absolutamente lógico. Convencera-se, sim, de que ele jamais regressasse porque a guerra não terminara ainda para Frederick Wheeler. A guerra para ele continuaria até ao último dia da sua vida. A um proscrito não é dado nunca conhecer a paz.

— E que pretendes? — perguntou.

— Fizeste uma promessa a minha irmã...

— Sim. E verdade que a fiz.

— Não estás disposto a cumpri-la?

— Estou disposto a isso.

— Parto desse princípio. Todo tu és um cavalheiro, Lou. Mas... quando? Como?

— Meu pai nunca o teria consentido. Ele não tem conhecimento de nada...

— Se ele o impede, talvez que, matando-o...

— Cala-te!

— Então matar-te-ei a ti, Lou. Bem o mereces...

— Escuta-me, Fred. Tens de me compreender...

— Compreendo-te, perfeitamente, rapaz. Finges estar apaixonado por Vicky, para depois casares com minha irmã. Sim, é o mais natural — ironizou o proscrito com amargura. — Vejo-me obrigado a reconhecer que serias tu o primeiro homem que, arrancando a flor da roseira a lançasse para o deserto, para depois ires em sua procura.

— As minhas intenções...

Aloísio compreendeu que aquele homem o não acreditava. Distinguiu o sinistro fulgor dos seus olhos negros e o retesamento dos músculos do seu corpo alto e nervoso.

Não fazia ideia da habilidade de Fred no manejo das armas; lembrava-se, porém, de que, em tempos recados, ele lhe levava vantagem.

A guerra não ensina a manejar o revólver com rapidez; ensina, simplesmente, a matar. Dispôs-se a fazer-lhe frente.

— Tenho direito a escolher a vida que me apeteça — respondeu com rudeza.

Deixou descair a mão direita e os seus dedos indicador, médio e anelar, acariciaram o coldre em que guardava o revólver. Bastava, apenas, abri-lo e deixar um vão onde se ajustasse a coronha. Era o suficiente...

Fred, o único homem que podia fazer-lhe mal... morreria... e ele passaria a ser considerado um herói por ter eliminado um proscrito declarado inimigo público.

Não pensou no duplo desgosto que iria causar a uma jovem e a uma anciã. Não pensou em nada sentimental, mas, simplesmente, no prazer que aquela façanha iria proporcionar-lhe. E da defesa passou ao ataque.

— Só eu tenho direito a escolher o meu destino, e tudo quanto tenho feito, entendo que está bem feito.

—E eu tenho pleno direito a arrancar-te a vida, Lou... e é por isso mesmo que aqui estou.

—Não passas de um estúpido: sabes que não podes ter salvação... e quiseste armar em valente, em herói..., mas pouco faltará para que tua mãe e tua irmã chorem a tua morte na sua imunda cabana...

Enquanto proferia estas palavras, levantara, impercetivelmente a mão. Agarrou, rapidamente, a coronha da arma e puxou por ela.

Tudo fez parte do mesmo e único movimento. Introduziu o indicador no guarda--mata ao mesmo tempo que, com o polegar, levantava o percutor e visava o corpo do seu inimigo.

Curvou o dedo, mas não teve forças para apertar o gatilho. Preparava-se para o fazer no momento preciso em que um pequeno objeto, ardente e doloroso, se lhe introduzia em pleno peito e aos seus ouvidos chegava o estampido de uma longínqua detonação.

Fora Fred, afinal, quem disparara. Via-o diante de si, com o revólver fumegante e aquele olhar gelado nas pupilas aceradas. Sentiu um estranho enervamento, um torpor...

Qualquer coisa se ia apagando no seu cérebro. Levantou a mão, no intuito de vingar a sua própria morte. Mas não foi ele quem disparou ainda desta vez.

Frederick apertara, novamente, o gatilho do seu «Walter» e Aloísio recebeu a bala em pleno coração. Largou a arma e cambaleou, vacilante, reagindo à ideia de cair e de se deixar morrer. Dobrou um joelho e, completamente, incapaz de manter o equilíbrio, estatelou-se no solo, fitando pela última vez o negro céu da derradeira noite da sua vida.

— Acabam de matar Lou! — gritou alguém.

Frederick reagiu, imediatamente. Deixou de contemplar o cadáver e lançou um olhar por toda a rua. Dois homens corriam na sua direção. Vaqueiros do rancho Marty, sem dúvida alguma.

Um deles disparou a arma. Fê-lo com precipitação e errou o alvo. Frederick, muito mais calmo, acertou em cheio e o vaqueiro, dando uma volta sobre si mesmo, rolou pelo solo enquanto o seu companheiro se detinha indeciso.

Wheeler deitou-se a correr e alcançou o passeio do lado oposto. Continuou a correr, apercebendo-se, entretanto, de que mais quatro vaqueiros, vindos de lados diferentes da rua, se reuniam ao outro.

Montou de um salto para a garupa do seu cavalo negro que esporeou com violência, empreendendo o nobre animal um velocíssimo galope. Um dos «cowboys» fincou um joelho em terra, ergueu a espingarda e apertou o gatilho.

Frederick levantou os braços e o cavalo prosseguiu a sua marcha; quis manter o equilíbrio, mas resvalou da sela, caindo sobre a poeira da estrada. Apesar de tudo não se considerou vencido.

Arrancou o revólver da pistoleira. Ouviu um grito de mulher que acabava de cair junto de uma carruagem, deparando-se-lhe o formoso rosto de Vicky que o encarava espantada.

— Esconde-te, Vicky! — ordenou-lhe seu pai.

— Ele está ferido, papá.

— Agacha-te!

O homem da espingarda ergueu-se, na íntima convicção de que atingira, gravemente, o fugitivo, mas, apenas, se encontrou ao alcance da bala, o «Walter» de Fred Wheeler cantou, e o outro largou a arma levando as mãos ao peito.

O cavalo negro, que ficara sem cavaleiro, retrocedeu até ficar muito próximo do dono que, caldo por terra, se dispunha a defender, desesperadamente, a vida. Diversas balas demandaram o alvo do seu corpo sem terem a sorte de o encontrar.

Wheeler voltou a disparar e outro dos vaqueiros mordeu o pó. Caiu sobre o passeio para o meio da rua, onde ficou imóvel após um curto lamento.

O cavalo aproximou-se mais e Frederick agarrou-se com ânsia a um dos estribos. Os seus inimigos tinham abrandado a fúria inicial e ele pôde saltar para a garupa com um esforço titânico.

Sem ser necessário esporeá-lo, o nobre animal empreendeu, novamente, o galope. As balas continuaram a chover à sua volta, não conseguindo mais do que roçá-lo de leve. Instantes depois, iniciava-se a perseguição. Mas cavalo e cavaleiro tinham já desaparecido nas trevas.

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