Açodado e ofegante pela vertiginosa cavalgada, acabava de chegar um dos assalariados da herdade junto de Blaise Stilles.
— Patrão... Vêm ali os soldados.
Blaise largou os ferros com que estava marcando o gado e olhou, preocupado, à sua volta. Fez um sinal ao homem que lhe servia de capataz e confidenciou-lhe:
— É necessário fazer desaparecer o cavalo negro de forma que não seja possível encontrá-lo. Avisa depois as minhas filhas para que fechem bem as portas, e diz-lhe que tratem da vida da casa com a maior naturalidade. Se chegam a descobrir a presença do homem, ainda vamos passar algum mau bocado.
Pensou em se dirigir ao encontro dos militares, mas, vendo as coisas com mais serenidade, resolveu pegar novamente nos ferros e prosseguir na faina.
— Segurai bem o animal! Cuidado!
Voltou-se e olhou para os dois soldados, por entre o fumo com cheiro a carne queimada. Os soldados conversam a certa distância com um dos seus empregados, que, estendendo um dos braços, apontava para o lado onde ele se encontrava. Mandou soltar o potro acabado de marcar, correndo este a refugiar-se junto da mãe, uma égua branca de bela estampa.
Os visitantes eram um cabo e um soldado. Pararam seus cavalos junto do picador, mas não desmontaram.
— O senhor é que é o dono do picadeiro?
— Para os servir.
— Procuramos um homem.
— Existem aqui bastantes.
— Trata-se de um proscrito, de um assassino.
— Entre os meus, homens não há nenhum assassino.
— Descobrimos um charco de sangue no caminho que qui nos conduziu.
— E foi isso que os convenceu de que o homem se encontra em minha casa?
— Naturalmente. Temos fundadas suspeitas...
Os soldados eram ianques. Os ianques são todos receosos e falam com timidez, de maneira que a única forma de aparentarem valentia era falar em tom arrogante, o que lhes acarretava o ódio de toda a gente. Dois dos serventuários do rancho colocaram-se junto deles, demonstrando claramente que a sua presença ali não era nada agradável.
— Voltaremos acompanhados de um pelotão — garantiu o cabo.
— Podem trazer, até, o regimento inteiro. Os senhores poderão ser os donos de tudo isto, mas quem manda em minha casa sou eu — ripostou o picador com firmeza.
—Procederemos a uma busca... a não ser que consinta que dêmos já uma vista de olhos — acrescentou o cabo, amenizando a sua atitude.
— Não consinto seja o que for. E aconselho-os a que se retirem antes que algum dos cavalos tome o freio nos dentes.
O cabo compreendeu que se achava em presença de um homem voluntarioso. Murmurou qualquer coisa entre dentes e apossando-se das rédeas, disse em ar de despedida:
— Não perderá pela demora... e peça a Deus que o não encontremos em falta... Garanto-lhe que passará um mau bocado!
Passava já de mela dúzia de homens que rodeavam os soldados, acabando estes por compreender que o mais aconselhável seria retirarem-se dali. Deram meia-volta e afastaram-se sem proferir mais palavra.
Apenas desapareceram na volta do caminho, Blaise apressou-se a ir ao encontro de suas filhas.
— O ferido não pode continuar aqui — disse ele.
Madalena demonstrou apenas contrariedade, mas Vicky revelou imediatamente a angústia que a notícia lhe causara. Seguidamente, Blaise acercou-se de Fred que o olhava com expressão indefinida.
— Vai ser transportado daqui para outro lado — disse ele, na convicção de que o ferido o não compreenderia. — Vamos levá-lo para uma cabana situada no alto da montanha; faz parte também da minha propriedade, e ninguém se lembrará de ir lá incomodá-lo. Reside lá um casal de mexicanos que são os guardas das pastagens, e que estão ali à minha disposição para tudo o que for preciso.
Vicky puxou por um braço de seu pai.
— Acha que estará bem na cabana? — perguntou.
— Diogo é um homem de confiança. Não tenhas receio.
— Não poderei acompanhá-lo? — implorou Vicky.
— Não podemos ir as duas? — perguntou Madalena.
— Não. Vocês têm de ficar aqui — respondeu o pai. — É conveniente não levantar suspeitas. Dentro em breve aparece por aí algum pelotão com ordem de passar uma revista a todo o rancho e é indispensável que estejamos todos presentes. O que é necessário, é fazer desaparecer todos os vestígios da presença do ferido.
As duas jovens conformaram-se. Uma hora depois, Frederick Wheeler, envolto em lençóis e cobertores, era transportado num carro carregado de palha e de feno, em direção ao alto da montanha.
As horas decorriam com impressionante lentidão para Frederick. O médico visitava-o uma vez por dia e sempre quase ao anoitecer. Meia hora antes de chegar, começava logo a ouvir-se o rangido das rodas do carro que o transportava.
Quatro dias depois, o médico, visivelmente, satisfeito, anunciou-lhe que se encontrava livre de perigo e que, para evitar que o seu paradeiro fosse descoberto, só ali voltaria decorridos cinco dias.
Autorizou-o a comer e a beber toda e qualquer espécie de alimentos e de bebidas e até sentar-se na cama, se isso lhe agradasse.
A monotonia da sua convalescença era amenizada pela presença do médico, do mexicano e da mulher deste, uma mulher roliça, de pele avermelhada, com um sorriso permanente estampado no rosto.
Caminhava bamboleando o seu enorme corpanzil, com certa graça e até com seu quê de malícia. De cada vez que soltava uma gargalhada, abria a boca de tal forma que abrangia toda a cara de orelha a orelha. Mas o seu riso era alegre e contagioso o que era muito do agrado do mancebo.
Diogo quis presenteá-lo com um enorme pistolão pari que ele pudesse defender-se na sua ausência, mas Fred preferiu ficar de posse do seu «Walter» que o tinha acompanhado juntamente com as suas roupas.
O casal estava sempre ausente durante toda a manhã, mas após o regresso e depois de preparada a refeição não voltavam a sair senão no dia seguinte. Todos os dias um portador de confiança vinha saber notícias do convalescente, trazendo consigo tudo aquilo de que pudesse necessitar.
— Gostaria de ver «mister» Stiles para lhe agradecer tudo que tem feito por mim — disse Fred em certa ocasião.
— O patrão é o melhor dos homens — disse o rapaz — e era capaz, só por si, de fazer quanto tem feito até agora, mas a menina Vicky está constantemente a pedir-lhe que o não abandone.
Frederick sentiu uma enorme gratidão para com a rapariga que, decorridos cinco dias, se apresentou de visita à cabana. Entrou com as maiores cautelas e olhou-o com a maior angústia, como se fosse ela própria a padecente.
Fred sorriu-se e ela sorriu-se também, com um suspiro de alívio e de satisfação.
— Como se sente?
— Bem. Penso que estou curado por completo.
— Está muito magro — disse ela com brandura, aproximando-se do leito.
— Brevemente estarei recomposto..., mas tudo isto o devo exclusivamente a ti... não é verdade?
A jovem meneou negativamente a cabeça. Sentou-se próximo dele, sobre um banco tosco, olhando fixamente para os seus olhos.
— Tenho sofrido muito por sua causa.
— Mas não devias tê-lo feito. Sabes, porventura, quem eu sou?
— Fred.
— Sim, mas um Fred perseguido pela Justiça como autor de diversos crimes de assassínio.
— Mas sei que é bom.
— E que importância tem isso, se a minha sorte é sempre a mesma? Receio bem que o teu sofrimento tenha sido inútil.
A jovem entristeceu-se ainda mais, mas Fred acrescentou:
— Sei perfeitamente que te devo a vida, mas tenho esperança de que um dia te poderei pagar tudo isto.
— Oh! Não se trata de nada disso!... Eu... bem... eu quero apenas que se ponha bom e...
Inclinou a cabeça. Nunca existiu um «e...» venturoso. Renascia, para voltar a enfrentar a morte. Em qualquer lugar a encontraria, certamente, e agora com mais probabilidades do que antes, porque juntara mais um crime à sua lista negra e tinha há muito a sua cabeça a prémio.
Olhou para ela. Era uma linda rapariga. Fizera dezoito anos, mas não o parecia. Concorria para isso a forma do seu penteado todo aos caracóis, a sua pele aveludada e pálida, o azul-claro dos seus olhos e o rubor das suas faces.
Fred achou que era insuportável saber que Lou Marty a tivesse cingido nos braços e felicitou-se por lhe ter tirado a vida.
Quando ela ergueu os olhos e o seu olhar se cruzou com o dele, baixou a cabeça pressurosamente. Sentiu-se envergonhada e pretendeu disfarçar o seu acanhamento entabulando uma conversação.
— Vim aqui saber se necessita de alguma coisa... Não precisa de nada?
— Não, Vicky; não preciso seja do que for. Sinto-me, até, muito bem. Bem hajas.
— Bom...
Levantou-se do assento. Fred tentou baldadamente arranjar um pretexto para a demorar mais um pouco, mas não o conseguiu.
— Vais-te embora?
— Meu pai espera-me. Ele não queria que aqui viesse.
— Então não o faças esperar; bem hajas pela tua visita, Vicky, e, se fosse possível, gostaria de tornar a ver-te se o risco não for demasiado.
— Deveras? Queres que eu volte aqui?
Os seus olhos iluminaram-se.
— Desejo-o ardentemente.
Dirigiu-se para a porta. Voltou-se, sorriu-se timidamente e saiu com certa precipitação. Fred entregou-se aos seus pensamentos, de que foi arrancado pela voz do mexicano.
—Bonita, hem! Aquilo é mesmo urna florinha do deserto. Chega a parecer inacreditável que Deus faça coisas tão... tão... Compreende, não é? Que ele faça mulheres como a minha, não terá muito mérito, mas é normal, é lógico, é o que acontece todos os dias. Não é necessário mais do que fazer uma coisa e pôr-lhe uma boca para que essa coisa coma, como acontece a minha mulher..., mas uma criança tão bela, tão perfeita, tão... tão...
Falava pelos cotovelos, Fred tinha por vezes de o ouvir durante horas seguidas. Mas era a única companhia que tinha e a alma do mexicano era de tal maneira simples que aliviava os seus padecimentos espirituais.
— Conhece a irmã dela?
— Quem? Madalena? Conheço, mas como há já muito tempo que saí de lá de casa... Suponho que a vi debruçada sobre mim, através das névoas com que a febre cobria os meus olhos.
—É também muito perfeita. Tem qualquer coisa que esta não tem... qualquer coisa que perturba os homens. Quando se sorri... — passou as costas da mão pela boca. - Bom, quando entreabre a boca num sorriso... faz-nos cair a alma aos pés. Tem uma boquinha... e um corpinho... benza-a Deus... Bem, compreende, não compreende?
— Perfeitamente.
— É claro que Madalena também foi feita por Deus. E porque é que não fez Adela com os mesmos encantos?... E claro que, se assim fosse, Adela não viria a pertencer a Diogo. Digo eu isto...
Frederick sorriu-se. Adela chamou pelo marido e o enfermo tornou a ficar sozinho.
Concentrou de novo o seu pensamento em Vicky. Vicky ajudava-o a esquecer sua irmã e até o seu próprio drama. Pensando nela chegava a sentir renascer as antigas ilusões, a notar certa ansiedade imprópria de si, pelo menos nas circunstâncias em que se encontrava. Disse lã com os seus botões que era muito natural que viesse a enamorar-se dela, mas recusou-se a acreditar que assim fosse. Vicky não passava de um bebé quando ele partira; se tinha crescido, tinha sido...
A verdade, porém, é que estava uma autêntica mulher e que a sua maneira de olhar, apesar de toda a sua ingenuidade e de ter uma pureza angelical, não deixava de ser um olhar de mulher. Baniu aquelas ideias da cabeça. Que ele fosse capaz de se enamorar e até de se apaixonar pela rapariga, nada tinha de extraordinário; extraordinário seria que ele alimentasse esperanças de vir a gozar aquele amor.
Viu o rosto da jovem entre sonhos e deliciou-se. Viu-a chorando e rindo; viu-a radiante e viu-a triste. E depois destes sucessos, convenceu-se a si mesmo de que vivera toda a vida a seu lado.
Acreditou que estava a ouvir a sua voz; aquela voz de timbre tão suave que era como um bálsamo para a sua atribulada alma.
E entre sonhos e pensamentos, as horas escoaram-se. A noite descera sobre a Terra. Diogo e Adela tinham discutido e ralhado. Acabada a discussão, o mexicano tinha saído com o seu velho cavalo. Fred estava convencido de que ele fora em busca de qualquer coisa, mas o tempo decorria e o homem nada de aparecer.
Frederick estava disposto a perguntar qualquer coisa a Adela, mas a mulher não lhe apareceu no quarto durante toda a tarde.
o resto do tempo a pensar em Vicky. Pensou como poderia ser feliz se não fora a sua triste situação de proscrito reclamado pela Justiça; se tudo continuasse a ser tão simples com era antes da guerra...
Baniu outra vez aquelas ideias da sua cabeça. Não era possível...
Voltou a fixar o pensamento na jovem, com os olhos fortemente cerrados... ouvindo até o som da sua voz.
Subitamente pareceu-lhe ouvir um vago ruído vindo do exterior, uma coisa parecida com o longínquo resfolegar de um cavalo.
Apurou os sentidos. Deu conta de que alguma coisa se movia; alguma coisa que, cuidadosamente, se agitava sobre o terreno amolecido, atapetado de relva e de sálvias cheirosas.
Eram passos. E passos cautelosos.
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