Vicky chorava silenciosamente no seu leito, abafando os gemidos com as dobras do lençol e vertendo grossas lágrimas que lhe deslizavam pelas faces, encharcando as roupas da cama.
Já não ouvia o ruído produzido pelas patas do cavalo. Nunca mais voltaria a ouvi-lo. Sabia que o homem não mais regressaria.
Anita continuava a selecionar as ervas. A permanência na montanha tinha sido bastante proveitosa. Pelo menos conseguira fazer farta colheita de plantas medicinais. Mas nenhuma delas tinha o condão de curar o amor.
O amor não pode curar-se, a não ser com amor. As chagas abertas na alma só cessam de fazer sofrer quando se abre outra chaga.
Já não ouvia o ruído das patas do cavalo, mas continuava a ouvir o pranto suave e silencioso da menina que padecia. Tinha começado a chorar no momento preciso em que o ruído do cavalo se perdeu na noite e da distância.
A rapariga sabia, ou devia pressentir, que o homem não mais voltaria. Adivinhava-o vagamente. O coração devia ter-lho segredado.
Anita não tinha ilusões. Anita sabia que os homens que partem nunca mais regressam.
Frederick Wheeler não pensou, nem por um momento, em ficar. A sua maneira de proceder tinha muito de parecido com uma fuga. Apesar de tudo era-lhe desagradável ter de abandonar aquele lugar por diversas razões. Mas não quis refletir. Se o fizesse, tudo se transformaria em tragédia. Um proscrito não tem direito de pensar, nem de ter sentimentos.
Agradava-lhe o ruído produzido pelos cascos do cavalo. Soava-lhe a liberdade, falava-lhe de outros horizontes, do céu e da vida. Era um excelente animal. Não quis ir ao rancho buscar o seu. Fazia presente dele a Blaise Stiles, já que lhe não era possível fazer outra coisa como pagamento ou agradecimento por todos os seus desvelos.
Acabou de descer a montanha e a planície de Springfield surgiu na sua frente, banhada pela luz prateada da lua, envolta em paz e em silêncio. As patas do cavalo submergiram-se na sálvia adormecida, mas, subitamente, Frederick pressentiu uma espécie de movimento.
Retesou as rédeas e ficou na expectativa. Das bandas do Oeste, onde morriam os pequenos montículos que constituíam a serra, surgiam umas sombras furtivas caminhando pelo desfiladeiro. Encontravam-se ainda muito distantes e foi-lhe um tanto difícil identificá-las.
Quando adquiriu a certeza de que eram homens, ficou muito surpreendido. Apenas um deles montava a cavalo, seguindo os demais na retaguarda, caminhando a pé. Quase todos empunhavam armas, o que era uma prova flagrante das suas malévolas intenções.
Perguntou a si mesmo o que pretendiam e a verdade acudiu imediatamente ao seu cérebro. Relacionou aqueles homens com os que o haviam atacado na montanha e que, por sinal, também não tinham cavalos.
Era, de todo o ponto de vista, muito significativo. Tinham certamente estudado bem todo o terreno, para assaltarem o rancho de Stiles e apoderarem-se das montanhas. Era um assalto audacioso que proporcionaria a posse de um cavalo a cada um deles, além de uma magnífica manada para negociar. Não restavam dúvidas que pretendiam assaltar Stiles.
Pensou que seria aquela a oportunidade que se lhe deparava para pagar a dívida contraída para com o pai de Vicky, reconhecendo embora que também o fazia em seu proveito. Vários motivos existiam, na realidade, para isso, e entre eles, havia o de o seu cavalo negro se encontrar no rancho.
Retrocedeu. A sua presença devia ter passado despercebida, mas não era conveniente manter-se diante deles. Estudou rapidamente a situação, traçou um plano e decidiu dar meia volta ao cavalo e rodear as faldas da montanha.
A partir da retirada de Diogo, o rancheiro tinha colocado uma sentinela na parte debaixo, deixando à sua guarda toda a planície e aquela parte da montanha.
Empreendeu o galope naquela direção. Avistou a sentinela diante de uma fogueira, apontando-lhe a carabina. Ergueu a mão, mas não afrouxou a carreira. Puxou as rédeas quando faltavam apenas vinte metros para chegar.
— Um grupo de homens vem assaltar o rancho
— gritou. O outro, um pouco surpreendido, procurava descobrir-lhe os traços fisionómicos ocultos quase completamente pelas abas do chapéu. Fred levantou-o para que o luar lho iluminasse. O homem não o reconheceu, mas perguntou:
— É o senhor, Fred Wheeler?
— Em pessoa. Ia a retirar-me quando descobri, pelo menos, vinte e cinco homens armados que se dirigem para aqui.
— Vinte e cinco?
O rosto da sentinela perturbou-se.
— Não vêm a cavalo, mas antes de uma hora chegarão ao rancho.
O outro, porém, não estava ainda convencido. Olhava insistentemente para Wheeler, pretendendo adivinhar os seus pensamentos.
— Supõe que eles vêm atacar-nos?
— Sem dúvida!
— E que pensa fazer?
— Dizer-lhe que corra a avisar Stiles.
— E se eu não quiser?
— Dentro em pouco estarão aqui e meio cento de pés passarão por cima do seu cadáver.
O homem, sem se deixar comover, olhou bem de frente para Wheeler e para a sua retaguarda.
— Suba a ladeira até mais acima — disse Fred — e poderá certificar-se.
O homem obedeceu. Convenceu-se da verdade, voltou a descer e perguntou:
— Faz ideia de quem sejam?
— Faço; são da mesma cepa dos que me vi obrigado a matar. Uns homens sem consciência, uns miseráveis.
A sentinela acabou por se decidir e encaminhou-se para o cavalo que tinha sempre arreado.
— Passe-me a carabina — pediu Fred.
— Para quê? Porque vou necessitar dela.
O outro olhou-o, desconfiado.
— Não pretenderá...?
Não concluiu a pergunta. Fred apontou-lhe o seu revólver.
— Se quisesse matá-lo, já o teria feito há muito tempo. Tive já diversas oportunidades e esta é mais uma delas.
Guardou novamente a arma e acrescentou:
— Vou barrar-lhes a passagem. É preferível que Stiles se desembarace deles aqui, do que no rancho. Os animais poderiam espantar-se e seria um perigo.
— Atreve-se a defrontar-se com vinte e cinco homens?
— Porque não? Enfrentar vinte e cinco, ou enfrentar um, vale tudo o mesmo. Não é possível morrer mais do que uma vez.
O picador modificou o seu parecer acerca do cavaleiro.
—E que o leva a fazer semelhante coisa? Porquê?
— Porque contrai uma dívida com o seu patrão e de alguma forma deverei pagá-la. Vá, não perca tempo.
A sentinela entregou-lhe a carabina e o cinturão-cartucheira que tinha dependurado na sela do cavalo.
Fred apossou-se dos objetos e olhou para o homem que se afastava. Verificou que a arma se encontrava carregada, meteu-lhe uma segunda carga e, abandonando o seu cavalo, trepou pela ladeira.
Chegado ali, examinou o terreno. Calculou o lugar por onde deviam chegar os homens de Stiles e o caminho que seguiriam os assaltantes para se dirigirem ao rancho. Era necessário barrar-lhe o avanço.
Não tinha ilusões acerca do risco que corria, nem sequer abrigava a esperança de que Stiles chegasse a tempo. O que sabia era que podia deter a marcha dos homens, até ao ponto de permitir que o rancheiro tivesse tempo de reunir os seus homens, a fim de colaborar com ele no ataque decisivo.
Ocultou-se por detrás de um rochedo e sorriu-se. Achou imensamente divertido que acabasse por morrer assassinado por um grupo de ladrões, de uns miseráveis malfeitores que nada sabiam a seu respeito, enquanto os soldados do exército ianque o procuravam afanosamente por toda a parte.
Os homens já se encontravam ao alcance de tiro, mas Fred preferiu aguardar. Acachapado atrás do penedo contemplou o avanço. Não se recordou das misteriosas reminiscências que aquela cena lhe trazia à ideia, mas convenceu-se de que já alguma vez tinha visto aquele batalhão, um batalhão de infantaria comandado pelo seu capitão que montava, por sinal, um magnífico alazão.
Iluminados pela luz prateada, tinham qualquer coisa de irreal, assim como se um Napoleão ali manifestasse a sua presença. Esperou mais alguns minutos; apoiou o cano da arma sobre o rochedo e apontou cuidadosamente para o cabecilha.
Quando o ponto de mira visava o peito do cavaleiro, apertou o gatilho. Simons ergueu os braços e soltou um grito. Levantou-se, suspenso dos estribos, e tombou sobre a sela; perdeu o equilíbrio e caiu de costas para o chão. Um dos seus pés ficou preso num estribo enquanto o cavalo prosseguia na sua marcha arrastando o cadáver, até que acabou por ser detido por um dos homens.
Todos os outros se lançaram por terra, ficando na expectativa, mas as detonações não se repetiram.
Perplexos, aguardaram que uma voz de comando os orientasse, que os conduzisse. Decorreu algum tempo até que um deles se arvorou em chefe, declarando que, uma vez que se tinham lançado na aventura, já não podiam recuar. Mandou que a marcha prosseguisse e todos obedeceram.
Fred voltou a disparar. Fê-lo por duas vezes e mais dois inimigos morderam o pó que mais tarde havia de cobri-los. Várias balas foram disparadas contra ele, mas todas elas ricochetearam nos rochedos produzindo silvos agudos ao serem desviadas do seu destino.
Fred mudou de posição, procurando outra clareira no meio da encosta, na disposição de deter a avançada dos assaltantes que se lançavam em correria pela rampa acima.
— É unicamente um homem! — gritou uma voz.
Não foi das melhores coisas para Fred que aquele facto fosse conhecido. Era evidente que não recuariam em semelhantes condições. Preparou a arma e disparou.
Não cessou o tiroteio sem despejar toda a carga, mas apenas conseguiu ferir dois deles. No entanto, semeara a confusão entre todos. De novo uma chuva de balas chocou raivosamente nos rochedos, passando outras por sobre a sua cabeça.
Quando voltou a ter a arma em condições de continuar a disparar, já os bandidos se encontravam a pequena distância. Trepando, parte deles, pela ladeira, e fazendo os outros um largo desvio, preparavam-se para o cercar.
Um hábil cavaleiro, curvado sobre a montada e praticamente colado ao pescoço do animal, lançava-se de modo suicida na sua direção. Fred não hesitou nem um segundo. Ainda que, com certa pena, visou a cabeça do corcel e desfechou o gatilho. O animal estacou as patas dianteiras e erguem as traseiras. O cavaleiro foi cuspido pelo ar, e foi em voo que Fred o «caçou» com um tiro certeiro. Caiu soltando uma exclamação, quis ainda reagir, mas voltou a estatelar-se.
Conhecida a sua nova posição, os tiros começaram a chover, perigosamente, à sua volta.
Voltou a mudar de lugar. Quando se preparava para prosseguir na luta, ouviu uma detonação do seu lado esquerdo e o chapéu voou-lhe da cabeça.
Voltou-se no mesmo instante e viu um homem de carabina assestada na sua direção. Disparou raivosamente por três vezes até que o viu dobrar-se pela cintura e rolar pelo talude. Vários outros homens dispararam do mesmo lado.
Fred arrojou-se ao chão e permaneceu imóvel, tentando descobrir os seus inimigos. Acabou por consegui-lo, mas nada pôde fazer. Ao menor movimento que fizesse, seria crivado por meia dúzia de balas.
Rajadas consecutivas varriam o solo à sua volta, mas nenhuma o encontrou no caminho. Não deviam faltar-lhes munições, a deduzir pela forma como eles as desperdiçavam contra um único adversário.
Fred calculou que Stiles deveria estar já a caminho, mas a situação era de tal forma apurada que ele não podia contar de forma alguma com a sua ajuda. Pôs a espingarda à cara com o maior cuidado, a fim de que o metal não despedisse reflexos que, certamente, denunciariam a sua presença.
Apontou a um dos inimigos e disparou. Não firmou bem a sua pontaria. Deixou-se cair para o lado e, segundos depois, o lugar em que se encontrava antes era metralhado por uma violenta descarga.
Voltou a disparar, expondo o peito por completo, mas rodeou-se de todas as cautelas. Fora demasiado. Os salteadores não estavam acostumados a lutar com um homem daquela espécie pelo que, os que ainda não estavam feridos, se apressaram a ocultar-se cheios de pavor.
Fred, porém, não se deu por satisfeito. Não lhe agradava ter inimigos de ambos os lados, pela frente, e quem sabe se também pela retaguarda. Retrocedeu olhando para todos os lados e carregando ao mesmo tempo a espingarda.
Conseguiu aproximar-se do sítio onde deixara o cavalo, montou-o de um salto e esporeou-o com fúria. O animal empreendeu um galope furioso, perseguido pelas balas que o alvejavam por todos os lados.
— Matai-o! — gritou uma voz.
Uma rajada de chumbo disparada simultaneamente ecoou estrondosamente pela montanha. Uma das balas foi atingir Fred, de raspão, ferindo-o no pescoço. Sentiu uma espécie de queimadura, mas não se deteve.
O animal pareceu ter ficado também ferido, pelo movimento que fez, mas continuou galopando. Continuou a subir a rampa e logo que atingiu um lugar propício, Fred deixou-se cair no solo disposto a continuar a flagelar os inimigos.
A certa altura notou que uma larga mancha negra se movia na sua direção. Encostou o ouvido ao terreno e ouviu nitidamente o galope de muitos cavalos. Não deveriam ser menos de doze e parecia não haver dúvidas de que pertenciam a Stiles.
Sorriu-se com satisfação. Ergueu a cabeça acima dos matagais que o cercavam, reparando que um dos salteadores, tendo gatinhado pelas escarpas, se apresentava na sua frente.
Apontou-lhe à cabeça e apertou o gatilho. E todo ele se deliciou ao vê-lo rolar pelo declive, até acabar de se estatelar ao fundo do barranco.
Procurou colocar-se por detrás de um parapeito. O matagal não impedia o avanço das balas. Começou a ouvir, com surpresa, o galope de cavalos que não pertenciam à manada de Stiles. Vinham de lado diferente.
Observou com as maiores precauções e, quando se encontravam mais próximos, verificou que se tratava de soldados. Era natural que tivessem ocorrido ali, atraídos pelo ribombar dos tiros, mas compreendeu que não lhe seria nada agradável um encontro com eles.
Era pouco invejável a sua situação. Os salteadores cercavam-no pela frente e pelos flancos e agora surgiam--lhe os soldados pela retaguarda.
Um pouco mais acima, no topo da rampa, situava-se a cabana onde Vicky estaria certamente rezando por ele, em face do tiroteio que lhe chegava aos ouvidos. Não hesitou um momento. Retrocedeu e voltou a montar a cavalo. Nada mais lhe era possível fazer.
Os bandoleiros estavam agora entre dois fogos e não havia lugar para dúvidas: os soldados e os picadores encarregar-se-iam de os exterminar.
Ser-lhe-ia muito agradável despedir-se do picador, mas um acto desses não deixaria de apresentar certos laivos de vaidade. Era melhor assim. Era indubitável que o pai de Vicky devia dar-se por muito satisfeito.
Curvou-se sobre o pescoço da montada e cravou-lhe as esporas nos ilhais. O animal deu um salto para a frente. Soou uma descarga cerrada; o cavalo dobrou as pernas dianteiras e foi bater com o focinho no chão.
Fred, por sua vez, voou por cima da cabeça do animal. Não tinha ficado ferido, mas, apanhado de surpresa, não pôde evitar a desastrosa queda, indo bater com a cara num penhasco. Tentou levantar-se, mas não lhe foi possível. Caiu para o lado, no momento preciso em que se iniciava o ataque por parte dos soldados e dos picadores.
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