Na madrugada seguinte, um dos trabalhadores da herdade encaminhou-se para a montanha, a levar as habituais provisões a Diogo. Cá em baixo a vida decorria com toda a normalidade.
Blaise gostava de estar presente a todos os trabalhos. Sentia um prazer especial em proceder à marcação dos cavalos, como se o ferro aplicado pela sua mão fosse menos doloroso para os animais. Suas filhas assistiam com frequência àquele espetáculo empoleiradas nos ramos das árvores ou sobre uma pilha de troncos.
Blaise, apesar da sua idade, conservava ainda toda a sua agilidade e o seu vigor. Muitas e muitas vezes montava os cavalos quando era necessário amansá-los e era quase sempre ele o primeiro a cavalgar qualquer potro bravo acabado de capturar, fazendo alarde dos conhecimentos que possuía acere das manhas dos indómitos animais e mantendo-se firme na sela com a maior galhardia. Em determinado momento viu um dos seus assalariados encaminhar-se para ele.
— A égua emparelhou com o cavalo negro de Wheeler — disse o homem todo satisfeito.
O rosto de Blaise iluminou-se. Tinha verificado que aquele cavalo era o melhor que vira em dias de sua vida e sendo, por sua vez, a égua em referência o mais belo exemplar que possuía, tinha necessariamente de resultar uma excelente cria de um tal cruzamento.
— Será para ti — disse ele, dirigindo-se a Vicky, que se encontrava a seu lado.
Vicky não se entusiasmou. Talvez isso fosse possível em outra qualquer ocasião. Blaise adivinhou que o pensamento da jovem estava muito longe dali; estava junto do homem ferido, escondido na cabana do alto da montanha.
— E para mim, não há nada? — protestou Madalena. — A égua já é tua.
A égua era uma prenda que Blaise tinha oferecido a sua filha mais velha, mas era um animal tão apreciado e estimado que nunca a deixava afastar-se mais do que um ou dois quilómetros. Era quase sempre Blaise que a montava todas as manhãs, para que o animal se desentorpecesse.
— O mais certo é sair todo preto. Seria o primeiro animal que teríamos dessa cor... Quase me não convenci ainda de que ele não seja tingido. Nunca tinha visto nenhum assim — disse o rapaz.
— Tive eu um assim há bastante tempo. Foi morto pelos índios.
— Voltamos a acasalar o negro? — voltou a perguntar o rapaz, olhando para o patrão.
Blaise sorriu-se.
— Estamos abusando da confiança de Wheeler, aproveitando-nos da sua ausência. É necessário pedir-lhe autorização.
Mandou um dos seus homens buscar cerejas, enquanto ele se dedicava a fazer o curativo da pata de um potro que apresentava um ferimento de feio aspeto.
Dentro do cercado, um dos picadores castigava um cavalo rebelde que não se deixava domar. Um pouco mais abaixo, uma manada composta de umas vinte e cinco a trinta cabeças pastava tranquilamente, cuidadosamente vigiada por quatro guardas montados.
— Patrão! — ouviu-se uma voz chamar.
Blaise procurou com os olhos a pessoa que o chamava. Reparou que todos os seus homens estavam de costas voltadas, com exceção de um que apontava para o caminho que conduzia à montanha.
Envolto por uma nuvem de poeira vermelha, avançava um cavaleiro com o corpo quase colado ao pescoço do animal. Avançava num galope desenfreado, como se fosse perseguido por uma legião de demónios. Vinha ainda a uma relativa distância, mas, pela sua maneira de cavalgar, fácil foi reconhecer o homem que se aproximava.
— É Greg — disse uma voz.
Blaise suspeitou que qualquer coisa de grave se tinha passado. Fosse o que fosse, a coisa parecia urgente. De contrário, o cavaleiro não se teria lançado tão desvairadamente pela ladeira abaixo.
— Quem quiser acompanhar-me, pegue nas armas e siga-me — disse Blaise.
Vicky agarrou-se angustiada ao braço de seu pai.
— Será por causa de Wheeler, papá?
— Receio bem que assim seja.
Um dos homens entregou-lhe uma carabina. Pegou-lhe sem olhar para ela. Olhou à sua volta, a ver se alguém queria acompanhá-lo. Todos os que tinham ouvido o seu apelo se encontravam já a postos, a cavalo e munidos das respetivas armas.
Greg entrou na cerca como um furacão, sem se dar ao cuidado de abrandar a sua veloz carreira. Largou as rédeas da mão e deu um salto para o chão, sem deixar que o cavalo se detivesse. Deu meia dúzia de tropeções até que, finalmente, conseguiu equilibrar-se com espantosa e surpreendente agilidade e foi parar a dois passos do patrão.
— Houve ontem uma tentativa de assassínio contra Frederick Wheeler — disse o homem sem mais considerações.
Fez-se um silêncio pesado. Todos os olhos se cravaram no velho picador. Vicky agarrou-se com mais força ao braço de seu pai.
— E quem podia ter sido?
— Diogo arregimentou dois amigos seus. A sua intenção era certamente matá-lo e repartir a recompensa prometida, por todos três.
—E que se passou, afinal?
— Wheeler é o diabo em pessoa: matou os dois assaltantes e pregou um tal susto a Diogo, que este desapareceu com a mulher sem se saber para onde.
— Continua vivo?
— Felizmente, mas o ferimento voltou a abrir-se. Fui dar com ele em cima da cama, todo coberto de sangue. Estava com os olhos abertos e pediu-me por tudo que não dissesse nada ao patrão, mas eu...
— Monta num cavalo folgado e vai chamar, quanto antes, o doutor Clifford. Diz-lhe que é minha filha que está doente, mas leva-o diretamente para a cabana.
— Faz reunir aqui toda a gente — disse Blaise dirigindo-se a um servidor.
Não proferiu qualquer palavra enquanto esperava que todos estivessem reunidos, nem sequer olhou para sua filha, mas apertou-lhe, silenciosa e carinhosamente a mão, a fim de a sossegar e infundir ânimo.
Apenas acabaram de se reunir em torno dele, no meio de um profundo silêncio, subiu para um montículo de terra e disse:
— Acabo de ser atraiçoado por Diogo. De comum acordo com dois amigos seus, tentou matar o homem a quem dei a minha proteção. Caber-lhe-iam uns dólares pela façanha. Não me convenço que valha a pena ganhar dinheiro de uma forma tão miserável. Se algum de vós alimenta semelhante ideia, peço-vos com toda a sinceridade que mo diga. Eu próprio darei esses dólares da minha algibeira. Mas se não tiver a franqueza de o dizer e se propõe fazer o mesmo que Diogo, matá-lo-ei como se mata um cão. Esperou.
A sua volta a imobilidade era absoluta. Desceu do montículo e dirigiu-se para casa, acompanhado de Vicky. Como se não desse pela presença de sua filha, serviu-se de uma boa dose de uísque. O álcool é, muitas, vezes, o melhor remédio para os desgostos.
—Papá! — Pegou-lhe na mão e apertou-lha em silêncio. — Papá... deixa-me ir...
— À cabana?
— Sim.
— Queres dizer que é para lá ficares?
— Sim, papá.
Olhou para a rapariga. Havia um brilho intenso nos seus olhos azuis e uma tremura quase impercetível nos seus lábios rubros e carnudos.
— Vicky... Vicky... — Apertou com força, entre as suas, a pequenina mão de sua filha. — Estás enamorada, não é verdade?
Cerrou as pálpebras e inclinou a cabeça.
— Sim — respondeu quase num murmúrio.
— És uma rapariga muito sensível. Compreendi isso mesmo quando o viste cair por terra; quando o atacavam depois de ter acabado de matar Lou.
—Não pude impedi-lo, papá... só sei que o amo... que lhe quero muito. Mais do que a mim própria. Se, por acaso, lhe acontecesse alguma coisa...
Blaise sentiu-se sinceramente condoído. Teve a sensação de que ia perder uma filha e, intimamente, arrependeu-se de ter dado asilo ao proscrito em sua própria casa.
A paixão de sua filha era um caso sem solução. Wheeler viria a ser preso, mais tarde ou mais cedo, e enforcado como qualquer criminoso vulgar. E, quem sabe? Talvez os ianques fossem um pouco cavalheirescos e decidissem fuzilá-lo, tornando assim a sua morte mais honrosa. O que não queria dizer que não fosse também a morte.
Olhou para sua filha. Perguntou a si mesmo que ideia faria ela acerca daquele amor. Ela tinha de saber que nunca viria a gozar a paz e a felicidade e que era absolutamente inútil amar um homem naquelas condições.
— Estás ainda muito a tempo de esquecer, Vicky. Não compreendes que fazes a ti própria um mal irreparável, se persistes em alimentar esse amor?
— Não quero pensar em coisa alguma, papá. Sei apenas que o amo.
— Mas...
— Não peço nada em troca. Nem sequer que ele sinta amor por mim. Eu não posso impedir que lhe queira mais do que à própria vida. Limito-me apenas a isso; apenas a amá-lo.
Blaise compreendeu. Talvez fosse ele até, o único, a compreender um amor assim e isso porque conhecia muito bem a sua filha. Mas também sabia que, ainda que nada exigisse em troca, não poderia suportar a sua separação de Wheeler, quando, pela vida adiante, tivesse de ir em procura de outros ares mais desanuviados... E ainda menos poderia suportar o triste futuro que o aguardava.
— Estás para sofrer muito, Vicky. Deixa-me que te aconselhe e que te guie.
— Já estou sofrendo, papá... Eu já vivia desassossegada e tu bem o deves ter notado, e agora, depois daquilo que aconteceu, que não foi, afinal, mais do que uma advertência, menos sossegada viverei ainda.
— Nada te é possível fazer por ele. n um proscrito e terá de responder por isso.
— Estar a seu lado para mim é suficiente... e morrer a seu lado...
— Vicky!
Duas grossas lágrimas rolaram dos seus olhos azuis. Deslizaram pelas faces abaixo, acabando por parar nos seus lábios.
Blaise cingiu-a a si e apertou-a contra o peito. As dores de sua filha eram as suas próprias dores, mas ceder aos seus desejos seria tão perigoso como se recusasse. Tentou achar uma saída.
— Tu não podes ficar ali sozinha.
— Manda outro homem em substituição de Diogo e a Anita pode também fazer-me companhia.
— E esta gente que irá pensar?
— Mandaste dizer por Greg que me encontrava doente... de maneira que, assim ninguém estranhará a minha ausência.
— Vicky, por Deus! És capaz de convencer-me.
— Quero-lhe muito, papá. Não compreendes?
Compreendia-a perfeitamente. Sobretudo, depois de ver que novas lágrimas humedeciam os mesmos sulcos deixados pelas primeiras. Voltou a abraçar, a rapariga. Depois, chegando-a muito ao coração, disse:
— Está bem. Deixar-te-ei ir, mas...
Não concluiu. Estava emocionado. Voltou a cabeça para o lado e ficou imóvel. Foi assim que Madalena os encontrou, quando entrou na sala.
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