Simons era o que podia chamar-se um homem indesejável sob todos os aspetos. Usava um chapéu seboso, de abas quase quadradas e disformes que lhe cobria as orelhas e os olhos.
Quando estava embriagado, entortava os olhos... e estava permanentemente bêbedo.
Trazia a barba crescida de muitos dias, suja e sempre molhada de saliva e de tabaco. Bastante gordo, o seu tronco fazia lembrar uma mulher de seios flácidos que se adivinhavam por debaixo da camisa amarela e já desfiada e, ainda por cima, bastante curta.
Por sob a camisa, exibia uma barriga proeminente, coberta por uma camisola cinzenta, cheia de pó e de suor. Não podia afivelar o cinto com que segurava os calções, nem sequer apertar estes que, se conseguiam aguentar-se, era devido ao cinturão-cartucheira a que tinha acrescentado um pedaço de pele de búfalo. Suspenso do cinturão usava um velho e enferrujado pistolão «45».
— Temos de nos organizar — disse ele.
Olhou em toda a volta. Vinte e cinco homens, pelo menos, encontravam-se no acampamento, comendo carne assada e bebendo cervejas roubadas num armazém. Quase todos se encontravam embriagados, o que, para Simons, era uma prova de que sabiam ser homens.
— Temos de nos organizar — repetiu.
Sentia-se rei de uma tribo, ou, mais romanticamente capitão de um exército. Dizia-se sulista, se bem que não tivesse ideal algum, e a maioria dos outros homens dizia também o mesmo, apesar de entre eles haver muito: ianques.
Sentia-se orgulhoso. Ele não tinha pretendido formar uma guerrilha, nem um bando de malfeitores. Apenas se tinha dedicado à pilhagem, de parceria com dois tolos que lhe obedeciam cegamente. A fome, ou outra coisa que fosse, atraiu muitos outros indesejáveis e todos eles, se rendiam incondicionalmente às suas ordens.
Agora a coisa era outra e muito diferente: não se tratava simplesmente de dar ordens a dois palermas para que fossem roubar galinhas. Agora tinha sob o seu comando um quarteirão de homens, com os quais podia tentar as maiores aventuras. A perspetiva do roubo de gado abria-se ambiciosamente diante dele. Nenhum rancho das redondezas dispunha de um tão numeroso grupo de homens como o dele e, além disso, aguerridos, audazes e destemidos.
— Temos de nos organizar...
Tinham de se organizar. Mas não tinham cavalos, nem armamento, nem nada. Nem ao menos aquele ideal que, às vezes, até o mais ínfimo salteador possui.
— «Roubamos para bem da causa». Não fazia ideia do que aquilo queria dizer, mas soava a justificação, a pretexto, a desculpa, e tinha uma certa entoação heroica. Tinha ouvido aquela frase, se bem que já se não lembrasse aonde. Melhor era assim. De contrário pareceria que a tinha copiado e imitado. Assim, era original e era sua.
— Necessitamos de cavalos.
A sua inteligência levara-o, pelo menos, a considerar que necessitavam de cavalos. Não devia ser nada cómodo começar a roubar gado e correr atrás dele a empurrá-lo com as mãos.
— Cavalos — murmurou.
Chamou dois homens. Apelidavam-se Dicken e Robin; nomes muito agradáveis que nada tinham que ver com as suas caras patibulares. Dicken era alto e esquelético; Robin era esquelético e baixo, não devendo o seu peso ir além de quarenta e cinco quilos. Trazia à cinta um par de revólveres que, era muito possível, serem mais pesados do que ele.
— Que há, chefe?
Simons empertigou-se. Gostava da disciplina, mas, acima de tudo, da submissão e da obediência. Submissão, por parte dos seus homens, mas não pela parte dele.
— De armamento estaremos mais ou menos servidos. O que nos falta são cavalos.
— Sim, chefe.
Era uma conclusão inteligente. Mas o cérebro de Simons era suscetível de ir muito mais longe.
— É forçoso assaltar um rancho próximo ou distante. Isso pouco importa. Mas assaltá-lo de forma que não fique nenhum vaqueiro com a cabeça inteira. Dessa maneira conseguiremos: primeiro, apoderarmo-nos dos cavalos; segundo, apossarmo-nos das armas de todos os homens que matarmos; terceiro, granjear todos os alimentos que possuam; quarto... quarto... bem, para agora é o suficiente. Com estas três coisas poderemos começar a trabalhar.
— Sim, chefe!
— Fica ao vosso cuidado descobrir a oportunidade!
Que inteligente era um tal chefe!
Ambos os pacóvios se sentiam envaidecidos por o seu chefe depositar neles tanta confiança.
Houve, porém, alguém que presenciou a conversa. E esse alguém por muito pouca inteligência que tivesse entendeu que devia intervir.
— Escuta, «Simão» — chamava-o assim porque não acreditava que ele fosse inglês ou americano. —Porque hão-de ser eles a desempenhar-se da missão? Lembra-te de que arriscamos as nossas vidas e não devemos deixá-los entregues a idiotas dessa força.
Falou suficientemente alto para que muitos outros o ouvissem e imediatamente se formou à sua volta um grupo de homens, de rostos carrancudos.
—Porque são os homens da minha confiança — respondeu Simons.
— Tu poderás confiar neles, mas não nenhum de nós.
— Mas eu sou o chefe.
— E porque és tu o chefe?
— Pois, porque...
Diabo! Aquilo era uma verdade, ou, pelo menos, uma provocação. Teria podido dizer-lhes que os não tinha chamado para ali e que cada um era senhor de fazer o que quisesse. Mas não disse coisa alguma por que isso era tirar a autoridade a si próprio. Resolveu empregar outro sistema; o sistema militar, que era certamente mais estúpido, por ser menos razoável.
— Porque sou eu quem manda, e o que manda é chefe.
— Também eu posso ser o chefe.
Simons encarou-o, intrigado, carregando o sobrolho, um pouco desconcertado por aquela insubordinação. Aquilo era também uma verdade.
— E porque podes sê-lo tu?
— Porque sou mais inteligente do que tu, disparo muito melhor do que tu e sou muito mais ambicioso do que tu.
Simons transigiu com as duas últimas partes, mas não concordou com a primeira, se bem que se tivesse abstido de o dizer. Qualquer coisa no seu íntimo o aconselhou a que se calasse. Resolveu então revestir-se da pele do cordeiro.
— É indispensável encontrar uma solução. Temos de escolher um bom chefe, um homem que não possa vir a ser vencido nem enganado.
O outro olhou para Simons, desconfiado, mas como a oportunidade era excelente, disse:
— Vamos proceder a uma votação?
— Concordo — respondeu Simons.
Então o outro, alimentando a ideia de que poderia vir a ser o chefe, voltou-se para o grupo, dizendo:
— Podeis votar naquele que entenderdes que possui melhores qualidades.
Procurou obter a concordância de Simons, mas encontrou-se em frente do negro buraco do cano de um revólver.
— Queremos arranjar um chefe que se não deixe surpreender, que seja invencível e que se não deixe enganar e tu deixaste enganar-te desta forma?
— Escuta, «Simão» ... Não pretendes, certamente, matar-me, não é?
— Naturalmente que sim. Demonstro assim que tu és mais fraco e que eu sou mais inteligente; e liberto-me, de um inimigo que podia vir a ser muito perigoso.
— Bem, «Simão». Ganhaste.
— Não, amigo. Nada disso.
— Que pensas fazer?
Começava a tornar-se pálido.
— Matar-te. Quero mostrar a todos que posso ser o chefe. Pode acontecer que sejas muito perigoso, que sejas mais rápido a disparar, que sejas tudo o que tu quiseres, mas, afinal, de que te valeu tudo isso ante a' astúcia de um verdadeiro chefe?
— Bem, mas eu...
Simons sorriu sinistramente. Levantou o percutor e estendeu a mão. Apertou três vezes o gatilho. O outro recuou ao primeiro choque, soltando uma praga, e levou as mãos à barriga. Não conseguiu alcançar o ferimento causado pela primeira bala e levou as mãos ao segundo que se apresentava como uma flor vermelha em pleno peito. Ao terceiro tiro, o homem estatelou-se no solo com uma bala alojada no olho esquerdo.
Ficou completamente imóvel, rodeado por um charco do sangue que lhe emanava dos ferimentos.
Reinava o silêncio mais absoluto, o que foi aproveitado por Simons para olhar para os componentes do grupo. Sabia que a sua atitude não seria muito aplaudida, mas era, sem dúvida, uma boa lição.
Fora um acto de dureza que o consagrou como chefe indiscutível. Fosse como fosse, o que era indispensável era que existisse um homem sem quaisquer escrúpulos, que fosse capaz de tudo, e — isso é que era verdadeiramente importante — capaz de se impor e sufocar a mínima rebeldia.
— Dicken.
— Sim, chefe.
— Robin.
— Sim, chefe.
— Ide à vossa missão.
A resposta foi dada simultaneamente:
— Sim, chefe.
Afastaram-se, caminhando a pé. Não existia outro cavalo além do do chefe. Os cavalos escasseavam muito depois da guerra e eram mais necessários do que nunca. Simons arrecadou o revólver e ordenou:
— Levai daí esse cadáver. Todos se apressaram a obedecer. Vinte e tantos homens, que ali se encontravam, quiseram proceder à remoção do corpo. Simons afastou-se, voltando orgulhosamente as costas.
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