Blaise Stiles não tinha mau coração. Se a dura vida do Oeste o não tivesse empedernido, seria tão frágil como a sua filha mais nova. Foi por isso e pelo entranhado amor que sentia por Vicky que se propôs cuidar do ferido e defendê-lo da melhor maneira que soubesse e pudesse. Não ignorava os perigos que o cercavam e sabia a quanto se arriscava escondendo um assassino procurado pela justiça, mas estava firmemente disposto a prosseguir na obra iniciada.
Enviou para tal fim um dos seus servidores de mais confiança à povoação de Lamar, a inteirar-se minuciosamente de todas as ocorrências, conhecer a identidade do ferido e, se tanto fosse possível, descobrir os motivos que deram origem ao que se passara.
Foi ao anoitecer desse dia, quando o criado regressou, que Vicky pôde ouvir e presenciar a conversa que ele teve com seu pai. Foi dessa forma que ficou a saber que Aloísio Marty tinha morrido e a razão dessa morte.
Foi como uma espécie de punhal que se lhe cravasse no coração. Tinha ainda nos ouvidos as palavras que lhe dissera e sentia ainda na sua boca o calor dos beijos que recebera dos seus lábios.
A verdade é que ela não tinha chegado a sentir amor por ele. Tudo se passara durante uma tarde, embriagara-se de emoções, de sensações... daquelas sensações que provocam o despertar da vida. E quando uma rapariga desperta para a vida na idade de Vicky, pode ser arrastada até muito mais longe do que ela o fora.
O horror de si mesma não deu lugar à vergonha. Mas na alma da jovem operaram-se diversos fenómenos. Inclusivamente, depois de saber toda a verdade, começava a olhar para o ferido de maneira muito diferente.
Até certo ponto sentia-se responsável por tudo o que acontecera. Não sabia dizer bem porquê, mas a verdade é que estava convencida de que tinha tomado parte ativa naquele trágico assunto.
Começou a pensar na horrorosa situação da irmã de Frederick Wheeler ao encontrar-se sozinha com uma criança nos braços; uma criança sem apelidos, de quem tinha de cuidar, a quem tinha de educar e dar os necessários predicados para suportar pela vida fora a falta dos apelidos do pai.
Morto o homem que a seduzira, morto o irmão que a vingou. Seria com o maior prazer que ela se prontificaria a ajudá-la, mas sabia que Elsie, com quem falara apenas uma vez, se recusaria a aceitar o oferecimento.
Ela e sua mãe governavam-se suficientemente bem na herdade, alimentando a quimérica esperança de que Fred ainda viria um dia a ser publicamente perdoado.
— Os ianques oferecem mil dólares de prémio pela cabeça de Frederick Wheeler — disse o criado. —E o pai de Lou oferece outras tantas a quem lho apresentar vivo ou morto.
— Dois mil dólares é muito dinheiro — disse Blaise pensativo.
Tinha-se a impressão de que nada haveria a fazer para salvar o proscrito. Um trabalhador ou qualquer outra pessoa podia denunciá-lo. Ou, mesmo depois, quando Frederick pudesse já levantar-se, alguém que, por acaso, o descobrisse, podia igualmente denunciá-lo ou assassiná-lo pelas costas.
— Fred alistou-se pelos confederados — comentou o pai. — Que se passou com ele?
O criado explicou tudo com a maior clareza. As suas pesquisas tinham sido de tal maneira conscienciosas que parecia conhecer a vida de Wheeler, em todos os seus pormenores.
*
Frederick Wheeler foi dos primeiros homens que se alistaram. Tinha acabado de completar vinte e dois anos. Desapareceu da povoação e nunca mais ali tinha voltado.
Contavam-se muitas histórias acerca dele, mas apenas uma era digna de crédito tendo em consideração sua maneira de ser. O caso passara-se no Texas. Frederick tinha ficado prisioneiro, juntamente com um cabo e mais dois soldados. Os soldados adversos que os tinham aprisionado comportavam-se da melhor maneira para com eles, pelo que suportavam resignadamente a sua pouca sorte.
Tudo se passaria pelo melhor, se não se tivesse cometido aquele horroroso crime que Fred jamais na sua vida esqueceria. Foi na Praça Maior de Austin.
Tinha sido levantada uma forca para punição dos criminosos de guerra. Aí execuções eram dirigidas e comandadas por um capitão federal, auxiliado por um tenente. Os cadáveres dançavam suspensos da extremidade de uma corda de onde eram retirados ao cabo de cinco minutos, para voltar a ser utilizada logo a seguir, para justiçar outro desgraçado. ~
Aquelas execuções em série horrorizaram Fred, que apesar disso, tudo suportou com estoicismo.
Chegara a vez de ser enforcado um homem já bastante idoso, de espessa barba branca e de uma palidez intensa. O infeliz tremia, convulsivamente. Quando foi considerado em culpa, soltou um grito de terrível desespero.
Nem o capitão, nem o tenente, mostraram a mínima piedade pelo pobre homem, determinando que as execuções prosseguissem.
Uma mulher apareceu em cena. Era muito jovem. Não teria mais de vinte anos. Suplicou ao capitão que poupasse a vida de seu pai, mas não foi escutada. Pareceu que enlouquecera no mesmo instante e abraçou-se ao prisioneiro, lavada em lágrimas.
Foi afastada rudemente do velho, ajustaram-lhe a corda ao pescoço e aguardaram as ordens do capitão. Este pareceu hesitar e olhou durante um minuto para os algozes. O tenente segredou qualquer coisa aos seus ouvidos e o capitão ordenou friamente a execução com um simples gesto.
A jovem, desesperada, atirou-se contra o tenente, ficando ambos unidos num abraço mortal. Um instante depois, ouviu-se um grito horroroso, acabando a rapariga por se estatelar no solo com o ventre jorrando sangue.
O tenente limpou à sua própria roupa a lâmina de que se servira para a ferir, e afastou-se do cadáver com uma indiferença de arrepiar.
Frederick não pôde suportar semelhante coisa. Arremeteu contra o soldado que tinha à sua ilharga e propinou-lhe um tão violento murro que o desprevenido rapaz se foi estatelar ao comprido, atordoado.
Todos os soldados se lançaram contra o confederado, o que foi aproveitado pelos restantes prisioneiros que acabaram por se revoltar, também, aumentando enormemente a confusão.
Foi tamanho o rebuliço provocado, que, além de Fred, muitos outros dos seus companheiros, de mistura com parte dos condenados, conseguiram alcançar a liberdade.
Somente quando já se encontrava longe da praça-forte, é que conseguiu apoderar-se de uma arma para se defender. Se a tivesse obtido antes, muito possível seria que dela se utilizasse contra o tenente assassino.
Montou num cavalo do exército ianque e saiu da cidade a todo o galope. Meio ano depois rendia-se a cidade de Lin. Fred encontrava-se então em Tennessee, com os restos da sua desbaratada companhia. Viram-se obrigados a render-se, mas Fred, rebelando--se mais uma vez, conseguiu de novo alcançar a liberdade. Juntou-se a um sargento, com quem tinha combatido lado a lado.
— Nada conseguiremos com esta fuga, Fred. A nossa causa está completamente perdida. Se todos juntos não conseguimos vencer, menos o conseguiremos nestas condições.
Fred, de sua natureza impulsivo, valente e recalcitrante, não compreendia muito bem aquelas teorias. O sargento começou então a falar-lhe de paz, do fim de todos aqueles horrores, da tranquilidade do lar...
— Não te agradaria regressar a casa? — perguntou.
Frederick sentira durante aqueles longos quatro anos uma viva preocupação por causa de sua mãe e de sua irmã e foi por isso que, ao ouvir o que lhe dizia o seu superior e amigo, notou que um novo mundo cheio de ilusões se abria para ele.
A rendição significaria o regresso à herdade, ao trato dos animais, ao amanho das terras, à paz e à prosperidade. Ter a seu lado sua mãe, a quem nada faltaria, e a companhia de sua irmã, a quem adorava.
Curvou a cabeça e acedeu. Montaram a cavalo e encaminharam-se para Chatanooga. Eram muitos os confederados que já ali se encontravam, cabisbaixos e humildes. Eram tantos ou tão poucos que, se lhes passasse pela cabeça revoltarem-se, teriam podido desembaraçar-se facilmente dos federais que os vigiavam.
As armas tinham sido depostas. Do alto das janelas, muitos rostos de velhos e de mulheres olhavam, com raiva mal contida, para os soldados que se rendiam. Era evidentemente a paz; mas era também a derrota.
Frederick tentou recalcar os seus sentimentos. Montado sobre um cavalo, aproximou-se do lugar onde o capitão pronunciava um discurso, do qual sobressaíam com frequência as palavras «paz» e «vitória». Quando se encontrava perto do orador, reconheceu-o no mesmo instante. Era o tenente que assassinara a desventurada rapariga. Empalideceu de tal maneira que o facto não passou despercebido ao seu companheiro.
— Que diabo se passa contigo?
Frederick continuou avançando. Quando se preparava para desmontar, apenas disse:
— Nunca me renderei a um assassino.
Foram vários os soldados que o ouviram. Eram todos confederados e todos o olharam com inquietação. Fred, com um sangue-frio e uma serenidade arrepiantes, empunhou o revólver e apontou-o ao coração do orador que, precisamente naquele instante, tinha os braços abertos e erguidos para o céu.
Alguém, entre os presentes, pretendeu evitar que disparasse, mas chegou tarde. Do cano da arma saiu um jacto de fogo e o tenente, atingido em pleno peito e com os braços ainda na mesma posição, olhou com um desvairo para os circunstantes, deixou pender os braços e caiu fulminado no solo. Ouviram-se gritos, ordens e contraordens e gerou-se a confusão...
— Safa-te, Fred!
Guardou o revólver com a maior tranquilidade e fazendo dar meia-volta ao seu cavalo, o confederado acicatou a montada e desapareceu num galope vertiginoso.
Não foi possível alcançá-lo, mas como havia ali muitas testemunhas, presenciais, fácil foi identificar o autor da proeza, cujo retrato foi publicado e estampado, não só nos jornais, como também em folhetos e cartazes distribuídos profusamente por todos os cantos e recantos.
Durante cerca de dois meses a sua casa foi alvo da mais aturada e cuidadosa vigilância. Mas tanto sua mãe como sua irmã descendiam de boa cepa, e souberam suportar com estoica resignação as terríveis notícias acerca dos acontecimentos.
Entretanto, Frederick continuava na mesma vida errante, sempre com a morte suspensa das patas do seu cavalo.
*
— Ë um belo rapaz. Não te parece?
Em circunstâncias normais, Vicky ter-se-ia escandalizado. Naquela ocasião, porém, não sucedeu tal coisa. Ela pensava também da mesma forma.
Quando o médico voltou, achou o doente muito melhor.
— Daqui por quinze dias pode correr e saltar como um menino da escola. Já recuperou a noção das coisas?
—Por enquanto, não. Tem delirado uma vez por outra; agita-se também, por vezes, mas, de uma maneira geral, tem permanecido sempre na mesma posição.
Continuava com muita febre, transpirava abundantemente e mantinha nos lábios aquele ricto doloroso.
— Se ao menos cinquenta por cento das transfusões de sangue dessem o apetecido resultado, não hesitaria em fazer a experiência (1); mas estou absolutamente convencido de que vai reagir da melhor forma e recuperar prontamente a saúde. Dentro de quinze dias, mais ou menos, deve encontrar-se em grande forma.
— Manter-se-á assim, ainda por muito tempo?
— Desmaiado? Não. Deve voltar a si esta mesma noite.
Vicky, mal o médico saiu, começou a pênsar que seria muito feliz se fosse o seu próprio rosto a primeira coisa que ele visse quando abrisse os olhos pela primeira vez. Acabada a refeição, Madalena, veio fazer-lhe companhia.
— Queres saber o que eu pensei? — disse ela, ruborizando-se. — Que... — hesitou. — Que se lhe déssemos um beijo, ele não daria conta, pois não?
Vicky também se pusera muito corada. Também ela pensara o mesmo..., mas de maneira muito diferente. Tinha sido uma ideia um tanto estranha, uma coisa assim como pretender aliviar-lhe a febre que lhe escaldava a boca, com os seus próprios lábios.
E o facto de sua irmã manifestar aquela ideia, ainda lhe avivou mais o seu estranho desejo.
Seu pai e sua irmã tinham-se já recolhido. A criada deixou-a ficar ali, enquanto lavava e arrumava a loiça.
E foi por este conjunto de circunstâncias que Frederick Wheeler, a primeira coisa que viu quando abriu os olhos, foi aquele rosto angelical que o contemplava com ansiedade.
Sorriu-se, desapareceu-lhe da boca aquele ricto doloroso, e voltou a fechar os olhos. Esteve cerca de meia hora acordado, vendo e sentindo os olhos da rapariga permanentemente fixos no seu rosto.
Frederick Wheeler reconhecera o rosto de Vicky.
(1) Como até ao ano de 1900 não tinham sido descobertos ainda os vários grupos sanguíneos, nem todas as transfusões davam resultados satisfatórios. (N. do A.).
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