sexta-feira, 27 de setembro de 2019

KNS004.03 Filha do Oeste

Os treze cavaleiros detiveram-se, ficando imóveis durante uns momentos, contemplando o horizonte dilatado, que se lhes oferecia aos olhos.
O sol avermelhado caía sobre o crepúsculo, dispersando carmim sobre o azul celeste.
Uma brisa suave agitava, de vez em quando, o capim dos prados e as copas altas das árvores velhas.
Os cavalos fatigados levantavam a cabeça, farejando água e descanso. O vale descia em curva suave que acabaria em Free Town, sua meta final.
Shelby King, com o rosto ainda mais queimado, devido ao implacável sol da pradaria, olhou para os seus cavaleiros. Os dez «cowboys» pareciam soldados, como se formassem um esquadrão. Donovan mascava tabaco.
Carol Stanley parecia segura de si. King olhou-a demoradamente, admirando-a. Nos dois meses que demorava a travessia, não tinha soltado um único queixume. O seu corpo de adolescente, era duro e flexível como o aço, e como ele vibrava se algo feria a sua alma. Apenas falara na dor que lhe massacrava a alma. Nem uma só vez, mostrara o seu verdadeiro espírito alegre e buliçoso, brincalhão como um cachorro selvagem. A trágica morte do seu pai, tinha-a modificado completamente.
— Acamparemos junto a esse ribeiro — decidiu Donovan, conhecedor do terreno.


Os cavalos moveram-se novamente. King situou o seu, ao lado do de Carol, olhando para ela de soslaio, para não tornar muito ostensivo o seu interesse. Ela tinha as mãos queimadas pelo sol e finas, embora fortes. As rédeas não lhe escapavam um milímetro das mãos.
Era bonita. Era extremamente bonita. As suas roupas masculinas, mostravam as suas redondezas prometedoras. A camisa preta moldava um busto virginal, às vezes agitado pelo exercício, que lhe ruborescia as faces. As calças de montar, não escondiam o torneado perfeito das suas pernas. O conjunto, harmonioso e feiticeiro, tinha feito apaixonar Shelby.
Chegaram ao lugar indicado e desmontaram. Cada qual se ocupou em primeiro lugar dos cavalos e depois das mulas, que transportavam víveres e munições.
A carroça tinha sido vendida em Abilene, porque atrasava a marcha e depois de Carol ter insistido em dormir como os outros, no chão, embrulhada numa manta, junto à fogueira.
Depois montaram o acampamento. Um dos «cowboys» fez uma fogueira com ramos secos. Cada qual improvisou o seu leito com ervas. Repararam o seu frugal repasto e quando acabaram de comer era já noite cerrada. Embora fatigados, não tinham sono ainda.
Medina, um dos «cowboys» mais novo e muito alegre, que passava o tempo, cantando e assobiando, agarrou na guitarra, a sua fiel companheira, e começou a cantar uma das suas rancheiras favoritas. Aquele era um dos momentos mais gratos do dia. Os músculos desentorpeciam, como se fosse por ação da música e as notas primitivas da guitarra faziam-nos sonhar.
Carol levantou-se e afastou-se para um pequeno bosque perto do qual tinham acampado. Shelby viu-a e imitou-a. Sem que ninguém desse por isso, tal era e torpor em que a guitarra os punha. Sem fazer ruído, o rapaz aproximou-se da rapariga. Ela estava encostada a uma árvore, com os olhos marejados de lágrimas, que brilhavam como prata devido ao luar.
— Amanhã chegaremos ao nosso destino — disse ele, dando assim a conhecer a sua presença.
Ela procurou limpar as lágrimas.
— Que me importa isso?
Ele aproximou-se mais ainda.
— Compreendo-a perfeitamente, Carol. Mas tem de reagir. Você é ainda uma menina e tem uma vida inteira à sua frente.
Ela voltou-se, rápida.
— Quem lhe disse que sou uma menina?
Não. Efetivamente, já não o era. O seu rosto oval, os lábios carnudos, os enormes olhos escuros mostravam já a pujança da adolescência.
— Ainda o é, apesar de tudo. Cresceu demais... e teve infelizmente de enfrentar a desgraça muito cedo ainda. Mas tem de se lembrar que a vida tem muitos momentos felizes. Quase tantos, como os tristes.
— Não acredito nisso. Pensa por acaso, que tudo se acabou para si? O meu pai morreu! O meu pai foi... assassinado! -- disse, num sussurro.
— E apesar disso, a vida continua, embora seja triste dizê-lo...
— Não! Para mim tudo mudou.
— Não. Só o coração está ferido.
— E parece-lhe pouco?
Shelby respondeu:
— Não. Eu passei pela mesma situação. Também vi o cadáver ensanguentado do meu pai.
Ela pareceu humanizar-se ao ver a dor alheia. A guitarra, perto dali, continuava a tornar a noite ainda mais romântica.
— E também não sei, se aquele que me tornou tão infeliz, acabará por ser castigado.
— Prometo-lhe que farei tudo para isso.
Ela agradeceu-lhe com um sorriso.
— Porque faz isso? Por mim?
— É a minha obrigação. Não se esqueça da amizade que me ligava ao seu pai.
Carol esfregou os braços desnudos que começavam a arrefecer com o relento da noite.
— E você, o que pensa fazer? — prosseguiu Shelby, contemplando-a.
Ela encolheu os ombros, sem responder. O rapaz continuou:
— Devia ir para o Este. Ali há menos perigos para uma rapariga como você. Não tem família?
— Não.
— Mesmo assim, estaria melhor do que aqui. Repito-lhe que é uma criança... e as crianças não vivem tranquilas, nestas terras selvagens. Creio ter percebido que o seu pai vendeu o rancho de Free Town e que as reses que levou a Abilene, eram as últimas que tinha.
— Exatamente. Pensávamos ir viver para o Este.
— Faça-o agora. Cumpra o desejo de seu pai.
Ela repeliu a ideia.
— Não quero ir só. Antes agradava-me, mas...
— Já pensou nos perigos que a cercam? Tem uma bela maquia, que lhe permitirá viver sem preocupações em S. Luís, Nova Orleans, Boston ou Atlanta. Qualquer destes lugares, é melhor que o Texas.
— E qualquer deles é mau, estando só.
Shelby disse-lhe impulsivamente:
— Eu bem gostaria de cuidar de si, toda a vida... mas receio que não pareça correto.
Ela emudeceu, baixando os olhos. Dir-se-ia que as faces se lhe encheram de carmim, mas o luar disfarçou aquele rubor.
— Obrigado. Nunca lhe poderei pagar o que fez por mim.
O rapaz pôs-se à sua frente, com os seus olhos azuis cravados nos dela, procurando adivinhar-lhe os mais íntimos pensamentos.
— Oiça bem, Carol; você não tem nada que fazer no Texas. Peço-lhe que parta. É muito perigoso. E deixá-la só em Free Town, ou noutra povoação qualquer, seria uma loucura. Nunca perdoaria a mim mesmo, se lhe acontecesse qualquer coisa. E o seu pai, não me perdoaria.
— É que não vou ficar só, Shelby — disse ela.
— Como?
— Vou com vocês. Com o meu pessoal e consigo.
— Isso é impossível! Pensamos comprar outra manada e levá-la a Abilene...
— Ajudá-los-ei. Nem que seja para fazer a comida. Não posso abandonar o meu pessoal.
Shelby negou:
— Não é o seu pessoal, mas sim o meu pessoal. Estavam desempregados em Abilene e eu contratei-os. Nenhum compromisso a liga a eles.
— Nisso é que se engana. Tenho para com eles e consigo, o compromisso da gratidão. Tudo quanto vão fazer, os perigos que vão correr, quando saírem com a manada de Free Town, são devidos ao desejo de descobrir quem matou o meu pai. Vou eu ser menos que uns estranhos?
Era um raciocínio lógico que eliminava qualquer discussão, mas Shelby insistiu:
— Não o consentirei! Ver-me-ei obrigada a acompanhar-vos. Sou filha do Oeste e conheço as leis da pradaria. Não se pode negar companhia e um lugar à fogueira, ao viajante solitário com boas intenções.
O rapaz admitiu a sua derrota, mas não o deu a entender.
— Espero que aceite as minhas ordens, Carol. Não gosto de meninas desobedientes.
Sem mais palavras, deu meia volta afastando-se dali. Medina tinha acabado de cantar e agora, os seus dedos ágeis procuravam nova melodia, nas cordas da sua guitarra. A noite estava silenciosa e só, de vez em quando, uma ave noturna emitia o seu canto característico, chamando o seu par.

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